Henrique Pinto de Vasconcellos levantou os olhos do jornal. Nunca se cansava daquele mar, daquela baía, daquela entrada da barra, das ondas verde‑garrafa nos rochedos pardos, dos casteletes burgueses a montante do comboio. No princípio de Julho, com o sol a aquecer, já aparecia gente pelas praias: velhos tímidos e senhoras com crianças cá por cima, famílias na areia, dois ou três rapazes no banho, um cargueiro e um petroleiro no horizonte.

Gostava daquela sua rotina matinal, sobretudo nos primeiros dias de Verão. Acordava antes das oito, às nove o chauffeur apanhava‑o em casa e em menos de meia hora estava no banco. O Jorge dizia‑lhe, com ar de senhor feudal que recompensa o vassalo fiel, que aquele seu Boca‑de‑Sapo era quase igual ao do Pompidou.

Afundou‑se no banco de trás do carro e voltou ao jornal. Discursos oficiais, tomadas de posse, inaugurações, notícias económicas. Por cá, naquela espécie de diários do Governo que eram os matutinos, não acontecia nada de especial, nem era de esperar que acontecesse. A guerra de África morria nos comunicados da segunda página, que davam conta das «operações de polícia» e de «manutenção da ordem» no Ultramar.

Só o prendiam as notícias de Angola e a política internacional.

O Pompidou, o tal que tinha um carro quase igual ao dele, fora encontrar‑se em Reiquejavique com o Nixon, que acabara de se ver livre da Guerra do Vietname com uns acordos fabricados pelo Kissinger.

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Erauma capitulação a prazo mas dava uma saída airosa aos americanos, que abandonavam mais um país aos comunistas.

Talvez tivesse razão o Alfredo Varela: "Meu caro, tem cuidado. Os cemitérios de todo o mundo estão cheios de amigos dos americanos!"

Mas com o fim dos impérios a Europa deixara de contar. Henrique admirara a resistência de Salazar, mas não via que a sua política pudesse agora ter continuidade. A breve passagem pelo Governo, a cátedra de Direito Internacional e o facto de ser da família tinham‑ lhe dado o lugar de administrador do Banco Fonseca Magalhães. A ele, que detestava balanços, contas, direito comercial. Mas nem tudo era mau. O lugar permitia‑ lhe arejar da pasmaceira doméstica.

Estava a chegar a Lisboa. O Armando parou na Rua do Ouro e esboçou uma saída ritual, mas Henrique antecipou‑se, bateu a porta do carro e entrou no banco. O porteiro, engalanado como um almirante, correu a chamar‑lhe o elevador.

O Fonseca Magalhães era uma casa tradicional, «um potentado e uma referência», um «grande banco num pequeno país», como diziam os mais bajuladores e os jornalistas que já faziam lobby. Enfim, não seria um potentado mas era uma instituição média e sólida num país médio e, até ver, sólido. Em três gerações, a pequena casa bancária fundada por Fortunato da Fonseca Magalhães, comerciante de lotarias na Baixa lisboeta nos finais do reinado do Senhor Dom Luís, transformara‑se num dos maiores bancos nacionais. Um banco que vinha, em activos, logo a seguir aos grandes bancos públicos, a Caixa e o BNU, e que media forças com o Espírito Santo, o Sottomayor e o Totta.

Quando Henrique chegou, já estavam todos à volta da mesa para o conselho das nove e meia, à espera do Jorge. Sentou‑se à direita do Prof. Boaventura. Como vice‑presidente do banco e membro mais antigo do Conselho de Administração, o velho Boaventura ficava sempre à direita do Jorge na imensa mesa oval de mogno.

Ao lado de Henrique estava o Vasco Lucena, que representava um dos ramos dos Fonseca Magalhães, e à frente o Luís Lencastre, cunhado do Jorge e detentor de outra posição accionista importante. Os outros não pertenciam à família, eram directores ascendidos ao núcleo duro do BFM.

«O banco já não é um negócio familiar. Estamos na Bolsa e precisamos de gestores profissionais», dizia o Jorge para justificar as nomeações dos «metecos», como lhes chamava o Vasco. Os metecos, além de competentes, eram criaturas dele, criadas para lhe serem cem por cento fiéis.

Mesmo assim, entre o banco e as outras empresas – seguradoras, companhias ultramarinas, comércio automóvel, hotelaria e participadas –, haveria cerca de meia centena de descendentes de Fortunato Magalhães a trabalhar no grupo. Nada mal. Era também para isso que serviam os grupos familiares.

– O Dr. Jorge manda pedir desculpa, mas está ao telefone com o senhor ministro das Finanças. Diz para aguardarem mais uns dez minutos – avisou a Maria Emília, naquela voz das secretárias socialmente assimiladas pelos patrões. Entretanto, um criado fardado chegava com cafés e águas para todos numa bandeja de prata.

– Gosto muito daquele retrato do senhor Fortunato – confidenciou‑lhe o Prof. Boaventura. – É um excelente Columbano. Para alguém, como eu, que ainda conheceu o modelo, devo dizer que o apanhou muito bem.

O quadro, datado do princípio dos anos 20, era típico do pintor.

Sobre um fundo empastelado de ocres e sombras, pairava, como uma nuvem, uma mesa de trabalho com livros e papéis. O banqueiro aparecia em primeiro plano, de fato escuro, colete e gravata. O branco dos colarinhos rígidos e dos punhos da camisa e a pérola da gravata quebravam a mancha escura e quase indistinta do fato e do cenário. Tinha as mãos em pose, uma metida no colete, outra segurando um charuto. Mas o que o artista apanhara bem fora aquele olhar jovial e matreiro, ingénuo e experiente, inocente e cúmplice, um olhar sem cor nem idade.

O olhar de alguém a quem a vida tinha, a custo, dado quase tudo, sem nunca lhe ter tirado a vontade de ter mais. E que achara isso natural e ficara ali a vigia‑los, paternal mas céptico quanto à capacidade de eles darem conta do recado.

– Sabe, era um homem notável. Tive a sorte, como amigo do senhor seu sogro, do meu querido Francisco que Deus tem, de privar com o senhor Fortunato, era eu muito novo. Às vezes ia lá a casa estudar e acabava por ficar para jantar.

Henrique foi‑lhe dizendo que sim, que era o que sempre ouvira a toda a gente que conhecera Fortunato, ocultando‑lhe o que o pai não se cansara de lhe repetir: que o banqueiro era um oportunista de grande estofo, um homem que se safava muito bem.

Mas sim, Fortunato Magalhães fora notável. Soubera aproveitar o final da Monarquia, continuando depois em jogo e no jogo com os republicanos. Contavam os descendentes que o velho Magalhães dizia que era nas crises que estava o ganho.

«O banco não faz política, nem se mete em política» era outro dos ditos de Fortunato citado pelos herdeiros como confirmação do exemplar espírito de independência do fundador. Mas nos Conselhos de Administração e nos outros órgãos sociais, além dos filhos e genros, Fortunato Magalhães soubera sempre manter um leque representativo das opções correntes e emergentes: um republicano moderado, um monárquico, um católico, um republicano mais radical. Também não descuidara nunca as forças fácticas do Exército e da Guarda. Ficara célebre a sua ligação a um general de Cavalaria que, a dada altura, fora o homem forte da tropa, fazendo e desfazendo governos. «É o Magalhães quem paga», denunciavam então os jornais radicais de esquerda e de direita.

Mas a acusação era falsa. Tecnicamente, o fundador do BFM «nunca pagara uma revolução». Revolucionários e contra‑revolucionários, tivera alguns na sua folha de pagamentos, mas sempre a título pessoal, ajudando só pessoas, nunca causas. Operava assim, com um misto de astúcia e de generosidade, de cálculo e de largueza de self‑mademan.

Chegado ao patamar do muito dinheiro, dispunha dele como um instrumento de poder e de bem‑fazer, de influência e de mecenato, como os reis antigos que fantasiava a partir dos romances históricos e de capa e espada que nunca deixara de ler.

Livro: "Novembro"

Autor: Jaime Nogueira Pinto

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 9 de abril de 2024

Preço: € 27,70

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Fora, a seu modo, um destribalizado. Oriundo da pequena‑burguesia, banqueiro em vinte anos de trabalhos e negócios bem‑ sucedidos, subido à alta‑burguesia pelo dinheiro e pela influência que o dinheiro traz, Fortunato nunca quisera presumir do que não era. Nunca procurara dar‑se com a sociedade, com aqueles nobres e snobes de quem passara a ser rival ou sócio nas empresas, nos negócios e nas associações de classe. Alguns eram até seus empregados ou dependentes e gostariam de o ter levado para um dos clubes da Baixa ou de Cascais, mas ele era realista e prático. Primeiro, não se queria expor a um chumbo ou a um vexame, depois, enxergava‑se: não jogava ténis, não caçava, dançava mal e não emparentava, por si ou pela mulher, com os sócios desses lugares chiques.

Com os filhos e filhas já fora outra história. Frauleins e mademoiselles em casa, colégios de jesuítas ou de freiras, viagens pelo estrangeiro, cavalos, barcos. Educados, não só para tomarem conta do negócio da família, mas para serem, eles, uns senhores, e elas, umas senhoras, isto é, para se casarem com senhores. Como todos os autocratas inteligentes, Fortunato era um manipulador subtil: fazia dos outros o que queria sem nunca mandar ou determinar directamente o que quer que fosse.

Assim, levara os filhos a casamentos que os tinham integrado na tal sociedade a que ele não pertencera nem quisera pertencer mas onde gostava de os ver. Privilegiara as «boas famílias» – católicas, tradicionais, com nome e estatuto social. Dinheiro, tinha ele de sobra.

O filho mais velho, o Francisco, casara-se com Olga, filha dos condes da Penha, gente com uma genealogia irrepreensível desde a Restauração, casas com pedras de armas e criados velhos. Casamento de que tinham nascido o Jorge, que nunca mais chegava para a reunião, e a Maria Isabel, a sua Isabelinha. Olga Corte‑ Real de Melo era alta, elegante, cabelo bem loiro, olhos azul‑porcelana, e os filhos tinham herdado as características das raças mais distintas, tal como as imaginava Fortunato, leitor de folhetins.

O velho plebeu, baixo, de pescoço largo, sobrancelhas escuras, quase magrebino de tez, alegrara‑se ao ver nos primeiros netos essas marcas de distinção. A par de gostar deles como carne da sua carne, divertia‑o reconhecer naqueles seus rebentos a pinta especial dos privilegiados, loiros e dolicocéfalos. Verdadeiros ricos, com cara de bem‑nascidos à nascença. O que era outra coisa.

Nos anos finais do Regime Democrático, Fortunato tornara‑se conservador e até religioso. Educado sem religião, achava, como qualquer livre‑pensador, que o catolicismo, com os seus mistérios, a sua liturgia complicada, a confissão, as penitências, a sublimação do sofrimento, o pecado, o Inferno, o horror ao sexo, não era coisa feita para homens.

Pelo menos não para ele nem para os seus iguais. Seria boa, talvez, para os nobres e para os pobres, como a tropa no Ancien Régime. E, claro, para as mulheres de qualquer condição. Fora a mulher, D. Jacinta, quem o arrastara para a missa dominical e encaminhara os filhos da pia baptismal até à comunhão solene. Nos últimos anos de vida, Fortunato aproximara‑se da Santa Madre Igreja, nunca se saberia se por Graça do Senhor, se por receio do Além ou se por um muito seu «não tenho nada a perder e posso até ganhar alguma coisa», chegando até a entrar na Igreja de São Nicolau para rezar pelo bom sucesso de uma ou outra operação creditícia.

E morrera confessado, comungado e com a extrema‑unção dada a tempo e horas no dia 27 de Maio de 1926, ao princípio da tarde, num quarto cheio de luz, de retratos de família, gravuras pias e bênçãos papais. O prior, que o acompanhara na doença, afiançara o trânsito tranquilo daquela alma de homem rico pelo estreito buraco da agulha evangélica, que, caso a caso, as boas obras próprias e as orações das boas almas próximas podiam alargar.

À hora em que entrara nas convulsões finais, com a respiração a acelerar até ao suspiro derradeiro, um Cadillac partia do Porto para Braga.

Nele, arrastado por três jovens oficiais, seguia o general que ia sublevar a guarnição de Braga e acabar com a República democrática. Fortunato morrera com o regime.

Na parede da sala do Conselho de Administração, ao lado do progenitor, Francisco Fonseca Magalhães ficara também imortalizado num quadro mais académico, de um pintor do Estado Novo.

O contraste entre pai e filho era marcante. Francisco fora retratado de pé, com um ar quase régio, apoiado numa mesa Luís XV. Vestia um fato azul, bem cortado, que lhe moldava a figura, sobre um fundo de cores cardeais. Em vez do olhar vivo e matreiro do velho Fortunato, havia a serenidade mais baça e sombria de uma pessoa importante, tranquila, consciente do seu lugar, com o sorriso composto de quem se leva a sério. «O continuador aplicado e disciplinado», pensou Henrique.

Filho de pai rico, o sogro fora criado e educado com outros meios. Não teria a inteligência arguta do velho, mas aprendera o valor do tempo e a organiza‑lo, uma virtude burguesa, desde que a burguesia existia. Depois, ao lado do pai, fora‑se familiarizando com o métier de banqueiro: como ganhar dinheiro a vender dinheiro. Cursara também as boas e más artes de todo o cavalheiro: montar a cavalo, jogar ténis, caçar, dançar, ser capaz de small talk com toda a gente.

E fora dos primeiros portugueses a ter automóvel e a conduzir.

Quando, aos 30 anos, se casara com Olga, entrara pela porta grande na sociedade. Fortunato apreciara e encorajara o matrimónio morganático do filho, para ele um mariage de raison. Por uma vez enganara‑se: Francisco apaixonara‑se por Olga e Olga não deixara de se impressionar e de corresponder ao jovem banqueiro, cuja elegância sóbria contrastava com o espalhafato dos rapazes do seu meio. A princípio, a família dela desdenhara «o Caixa», como lhe chamava, mas acabara por aceitá‑lo. A aliança melhorava‑lhes a fortuna, comprometida pela delapidação dos valores da terra, sobretudo depois da República, e arrombada por duas ou três gerações de diletantes encantadores e perdulários.

Fortunato sempre olhara a política como terreno alheio e coutado, onde se devia ir com cautela, «como a um casino», e só para proteger ou fazer andar os negócios. Ao contrário, Francisco seguia‑a e vivia‑a com interesse e convicção. A Fortunato, o catolicismo chegara‑lhe tarde e por arrasto; Francisco sempre fora um católico convicto. Mais católico do que cristão, mais preocupado com o cumprimento da letra e dos preceitos do que com a caridade evangélica, mas nisso compensava‑o a
mulher, evangélica por devoção mas também por natural inclinação e atenção. As mesmas que a tinham levado a descobrir em Francisco, não «o Caixa» pronto a refinanciar‑lhe o brasão, mas um homem bom, que o dinheiro e as ambições do pai não tinham conseguido estragar e que ela levaria pelo caminho certo. E para Olga o caminho certo não passava só pela piedade e caridade cristãs, mas também pelo bom combate político. Era uma mulher com mundo, com leitura e com convicções.

Achava os democráticos e Afonso Costa um bando de inimigos da religião e da pátria, encorajara o marido a ajudar Couceiro e a financiar os integralistas e fora uma apoiante fervorosa de Sidónio Pais. O 28 de Maio coincidira com as missas de corpo presente de Fortunato, na capela de casa, onde estivera o tout Lisbonne. Nas exéquias do patriarca tinham‑se cruzado um oficial de Marinha, representante do presidente da República, e um enviado especial dos militares de Braga.

Francisco recebera friamente as condolências do marinheiro e fora caloroso com o oficial revolucionário, dizendo‑lhe que estava com a Revolução. Estava e ficou. O país, as pessoas, as finanças, os negócios, precisavam de ordem. Ordem nas ruas, respeito pela propriedade, obras públicas.

Chegara‑se ao limite. Francisco vira o pai, liberal que era, aterrado com os atentados da Legião Vermelha. As esquerdas não tinham emenda e matavam quem se lhes opunha. Francisco, chefe da família e presidente do BFM, tinha agora a carteira do lado do coração.

O banco passara então a ajudar, nos limites da discrição, a ditadura militar e os seus elementos mais radicais, os que triunfaram e foram impondo a sua agenda a partir das batalhas de rua de Fevereiro de 1927. Em Abril de 1928, fora com entusiasmo que vira a chegada do novo ministro das Finanças, político católico e professor de Coimbra. Um homem que já conhecia de escritos e de quem um dos directores do banco (o Paixão, do Centro Católico) lhe falava com admiração.

A sociedade portuguesa ia render‑se ao «mago das finanças», mas Francisco Magalhães fora um dos precursores dessa rendição. No Clube, alguns tinham começado por fazer troça de Salazar. Chamavam‑lhe «Botas», por causa das botas, do ar conimbricense e das origens modestas. Depois, foram‑se calando. O ministro não dava confiança nem aceitava convites de ninguém. Passaram a respeita‑lo. Uns porque pensavam como ele, outros, a maioria, porque lhes devolvera a tranquilidade, garantindo‑lhes que a sociedade ficava como estava e que eles continuariam por cima. Francisco achava que a democracia, que talvez servisse para os ingleses, não servia para Portugal. Éramos emocionais, indisciplinados, pouco educados. Qualquer fala‑ barato com um canudo impressionava os saloios. Tal como Francisco, também Alfredo da Silva, os Espírito Santo, os homens da moagem, os outros bancos, a lavoura, tinham decidido apoiar o novo regime. O Salazar punha ordem na casa, levantava o país, ajudava a economia. Que mais queriam?

– Bom dia, peço desculpa, mas o nosso ministro não se calava.

Jorge de Melo Magalhães avançou pela sala do Conselho, precedido por uma espécie de Claudia Cardinale, arrancada a uma página da Vogue.

Madalena abriu para todos um sorriso de cumplicidade respeitosa e foi‑se sentar no topo da mesa, com um grande bloco de couro negro e um par de canetas Cartier.

Henrique levantou‑se ligeiramente para saudar os recém‑chegados, correspondendo ao sorriso cúmplice da jovem mas sem disfarçar alguma irritação. Madalena entrara para o contencioso do banco ia fazer um ano. Era de uma família conhecida, ainda aparentada com os Magalhães, e Jorge, mulherengo e agora na idade insegura, encantara‑se com ela.

Tinham um affaire e ele nem sequer se dava ao trabalho de disfarçar.

Nos últimos meses, conseguira que ela o acompanhasse nas viagens ao estrangeiro, nomeando‑a assistente pessoal, e que estivesse presente nos conselhos, a pretexto de secretariar e redigir as actas mais confidenciais. A fidelíssima Maria Emília fora dispensada da tarefa e Madalena passara a fazer o compterendu das reuniões. E nos conselhos, qual adolescente ou déspota, Jorge não disfarçava o desejo de brilhar e de impressionar a namorada. Os outros, perplexos, cínicos ou obedientes, não diziam nada. O Prof. Boaventura mostrava‑se frio e já comentara com Henrique que aquilo lhe parecia «um destempero e que até já se falava na praça». Luís Lencastre, irmão da mulher de Jorge e accionista importante, talvez não tivesse percebido ou quisesse fazer
de conta.

Henrique olhou para o Longines de oiro, presente da Isabelinha nos vinte anos de casados, um ano antes de ela morrer. Eram dez e meia e o conselho corria de acordo com a praxe. Jorge falava primeiro, resumindo a agenda do dia, e pedia depois a um dos presentes que fizesse um tour d’horizon da situação nacional e internacional.

Olhando para o cunhado, Henrique reconhecia nele o progresso físico das gerações, o apuramento da raça. Voltou a fixar os quadros dos antepassados, Fortunato e Francisco. O sogro não tinha a pinta do filho primogénito.

Jorge continuava a falar, tinha o tal ar patrício que o avô apreciaria, entre o galã de cinema americano dos anos 50 e um daqueles ingleses de classe alta pintados por Reynolds. Os olhos eram claros e as mãos elegantes mas guardava no sorriso qualquer coisa de perverso. Henrique gostava do cunhado, mas nos últimos tempos começara a preocupar‑se.

Achava‑o soberbo, convencido, impaciente sempre que alguém ou alguma coisa o contrariava. Também o incomodava o clima de conformismo e de bajulação que sentia no Conselho.

Os ganhos do banco e do grupo, nos últimos anos, tinham ultrapassado as taxas extraordinárias de crescimento do país e com as reservas e o entesouramento de Salazar mudara a filosofia económica e comecara‑se a gastar. Uma certa parcimónia marcara a gestão de Francisco Magalhães; com o filho, tudo mudara, sobretudo a partir do fim dos anos 60.

As festas dos Patiños e dos Schlumberger tinham dado o tom e Jorge ia na dianteira dos ricos portugueses que começavam a viver como ricos, com estadão, longe da modéstia tradicionalmente bem‑vista. Fizera grandes obras na casa do Paço da Rainha e comprara uma herdade no Alentejo, onde criava cavalos e organizava caçadas. Tinha avião privado e, última decisão, encomendara um veleiro no German Frers, em Buenos Aires.

Henrique não se escandalizava, como outros, com estes faustos:o cunhado tinha bom gosto e bom dinheiro para o gasto. Eram despeitadas as críticas de alguns consócios do Clube de que semelhantes luxos eram de «gente ordinária» e de «novo‑rico». Preocupava‑o, sim, a euforia de comportamentos, o interesse pela manobra política, o destempero sentimental. Tinha de lho dizer. E seria nessa noite, ao jantar.