Quando tinha oito meses de gravidez, Harriet foi ao Dr. Brett e pediu-lhe que provocasse o parto.

Ele olhou de forma crítica para ela e comentou:

— Pensei que eras contra isso.

— E sou, mas isto é diferente.

— Que eu veja não.

— É porque não quer. Não é você que carrega este... — cortou o «monstro», com medo de o antagonizar. — Olhe — continuou ela, tentando parecer calma, embora a sua voz estivesse zangada e acusadora —, o senhor diria que eu sou uma mulher irracional, histérica, difícil? Apenas uma mulher patética e histérica?

— Eu diria que estás completamente esgotada, arrasada. Nunca achaste a gravidez fácil, pois não? Já te esqueceste? Já
estiveste aqui sentada por quatro vezes, com toda a espécie de problemas, e, mérito teu, conseguiste aguentar sempre
tudo muito bem.

— Mas não é a mesma coisa, é absolutamente diferente, não percebo como é que não consegue ver isso. Não vê?

Ela espetou a barriga, que estava a elevar-se, sentia-o bem, fervilhando de excitação enquanto ela estava ali sentada.

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O médico olhou com ar duvidoso para a barriga, suspirou e receitou-lhe mais sedativos.

Não, ele não conseguia ver. Ou melhor, não queria — era essa a questão. Não era só ele, eram todos — não queriam ver como era diferente.

E, enquanto caminhava e corria pelos caminhos campestres, ela fantasiava que agarrava numa grande faca de cozinha, cortava a própria barriga e tirava a criança — então, quando ficassem de olhos nos olhos, depois daquela longa guerra cega, o que é que ela veria?

Daí a pouco tempo, quase com um mês de antecedência, começaram as dores. Uma vez iniciado, o trabalho de parto dela processava-se sempre muito rapidamente. Dorothy telefonou para David, que estava em Londres, e levou Harriet imediatamente para o hospital. Pela primeira vez, e para surpresa de todos, ela tinha insistido em ir para o hospital. Quando lá chegou, teve dores extremamente violentas, piores do que de qualquer das vezes anteriores. O bebé parecia estar a lutar para sair. Ela sabia que estava magoada, que por dentro devia ser uma enorme nódoa negra... e nunca ninguém iria saber.

Quando chegou por fim o momento em que se pôde entregar ao esquecimento, ela gritou:

— Graças a Deus! Graças a Deus que tudo acabou finalmente!

Ouviu uma enfermeira dizer:

— Este é mesmo rijinho! Olhem para ele!

Depois, a voz de uma mulher dizia:

— Senhora Lovatt, senhora Lovatt, está a ouvir-nos? Vamos, volte a si! O seu marido está aqui, minha querida!

Tem um bebé saudável!

— Um autêntico lutadorzinho — comentou o Dr. Brett.

— Veio a lutar com o mundo inteiro.

Ela soergueu-se com dificuldade, porque a parte inferior do seu corpo estava demasiado dorida para se poder mexer. Puseram-lhe o bebé nos braços, um bebé de cinco quilos; os outros não tinham ultrapassado os três quilos e duzentos. Era um bebé musculoso, amarelado, comprido. Parecia que estava a tentar pôr-se de pé, empurrando os pés contra ela.

Livro: "O Quinto Filho"

Autor: Doris Lessing

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 18 de abril de 2024

Preço: € 16,60

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— E um rapazinho bem engraçado — comentou David, parecendo desanimado.

Não era um bebé bonito. Nem sequer parecia um bebé. Tinha ombros fortes e encurvados como se estivesse agachado. A testa era inclinada desde as sobrancelhas até ao alto da cabeça. O cabelo tinha um formato invulgar: nascia na parte superior da cabeça e ia até à testa em forma de cunha ou triângulo, virado para a frente, eriçado, forte e amarelado, enquanto o cabelo dos lados e de trás crescia para baixo. As mãos eram grossas e pesadas, com almofadas de músculos nas palmas. Ele abriu os olhos e fixou diretamente o rosto da mãe. Eram olhos focalizadores verde-amarelados, como bocados de pedra-sabão. Ela há muito que esperava encontrar o olhar do ser que, tinha a certeza, estivera a tentar magoá-la, mas não houve qualquer reconhecimento. E o  coração dela encolheu-se de pena por ele: pobre animalzinho, com uma mãe que não gostava nada dele... Mas ouviu-se a si própria dizer nervosamente, embora tentasse rir:

— É como um duende, ou um gnomo, ou qualquer coisa assim...

E acarinhou-o, para se reconciliarem. Mas ele era rígido e pesado.

— Então, Harriet — disse o Dr. Brett, zangado com ela.

Ela pensou: «Já passei por isto quatro vezes com o maldito Dr. Brett e ele sempre foi maravilhoso, mas agora parece um mestre-escola.»

Harriet destapou um seio e ofereceu o mamilo ao filho. As enfermeiras, o médico, a mãe e o marido ficaram a observar com os sorrisos que aquele momento impunha. Mas não havia qualquer atmosfera de festa, de realização, não havia champanhe; pelo contrário, havia uma tensão, uma apreensão entre todos. O bebé teve um reflexo de sucção forte e depois as suas gengivas duras apertaram o mamilo, e ela encolheu-se. O bebé olhou para ela e então mordeu com força.

— Bom — disse Harriet, tentando rir e afastando-o.

— Experimente mais um bocadinho — insistiu a enfermeira.

Ele não estava a chorar. Harriet manteve-o afastado, desafiando a enfermeira com os olhos para que o levasse. A enfermeira, com os lábios apertados em sinal de reprovação, levou o bebé, que foi colocado sem um protesto no berço. Ele não tinha chorado desde que nascera, apenas soltara um primeiro rugido de protesto, ou talvez de surpresa.

As quatro crianças foram levadas à enfermaria para verem o novo irmão. As duas outras mulheres que partilhavam o quarto com Harriet tinham-se levantado e haviam levado os seus bebés para a sala de visitas, mas Harriet recusara-se a sair da cama. Ela disse aos médicos e às enfermeiras que precisava de tempo para recuperar das suas feridas internas; disse isto em forma quase de desafio, descuidadamente, indiferente aos seus olhares críticos.

David estava aos pés da cama, com o pequeno Paul ao colo. Harriet ansiava por este bebé, esta criancinha de quem tinha sido tão prematuramente separada. Adorava o olhar dele, o seu rosto pequenino e cómico, com olhos azuis suaves — como campainhas, pensou ela —, e as suas perninhas macias... era como se ela estivesse a deslizar as suas mãos ao longo delas, apertando depois os seus pezinhos com a palma das mãos. Um bebé autêntico, um filho autêntico...

As três crianças mais velhas olharam para baixo, para o recém-nascido, que era tão diferente deles todos: de uma matéria diferente, assim parecia a Harriet. Em parte porque ela ainda estava a reagir ao olhar dele com a memória da sua diferença no útero, mas em parte também devido à sua massa pesada, amarelada. E depois havia ainda aquela cabeça, em declive para trás desde o alto das sobrancelhas.

— Vamos chamar-lhe Ben — disse Harriet.

— Vamos? — perguntou David.

— Sim, condiz com ele.

Luke de um lado e Helen do outro agarraram nas mãozinhas de Ben e disseram:

— Olá, Ben! Olá, Ben!

Mas o bebé não olhou para eles.

Jane, que tinha quatro anos, agarrou num dos pés dele com uma mão, depois com as duas, mas ele afastou-a com um pontapé vigoroso.

Harriet deu consigo a pensar: «Gostaria de saber como seria a mãe, aquela que acolhesse este... alienígena.»

Ficou uma semana na cama — isto é, até sentir que podia enfrentar a luta que a esperava — e depois foi para casa com o seu novo filho.

Nessa noite, no grande quarto do casal, ela sentou-se encostada a um monte de almofadas a dar de mamar ao bebé. David observava.

Ben chupava com tanta força que esvaziou o primeiro seio em menos de um minuto. Sempre que um seio estava quase vazio, ele costumava apertar as gengivas com força, e por isso ela tinha de o afastar antes de ele o poder fazer. Parecia que ela o estava a privar rudemente do seio, e ela ouviu a respiração de David alterar-se. Ben rugiu com raiva, agarrou-se como uma sanguessuga ao outro mamilo e chupou tanto que ela sentiu como se todo o seio estivesse a desaparecer pela garganta dele abaixo. Desta vez, deixou-o estar no mamilo até ele apertar as gengivas com força, e então ela gritou afastando-o.

— É extraordinário — comentou David, dando-lhe o apoio de que ela precisava.

— Pois é. Não é absolutamente nada vulgar.

— Mas ele está bem, é só...

— Um lindo bebé, normal e saudável — ripostou Harriet com azedume, citando o pessoal do hospital. David ficou silencioso. Era aquela raiva, aquela amargura dela que ele não conseguia perceber.

Harriet segurava Ben no ar. Ele estava a brigar, a lutar, a espernear, chorando na sua forma característica, que era um rugido ou um urro, enquanto ficava amarelado de raiva — e não vermelho como um bebé normal quando está zangado.

Quando ela o endireitou para que ele arrotasse, parecia que ele estava de pé nos braços dela, e ela sentiu-se enfraquecer de medo ao pensar que toda aquela força estivera dentro dela tão recentemente, e ela à sua mercê. Durante meses, ele lutara para sair, tal como agora lutava para se tornar independente do domínio dela.

Quando o deitou no berço, o que a ela sempre lhe agradava porque lhe doíam muito os braços, ele berrou toda a sua fúria, mas depressa sossegou, embora desperto, totalmente alerta, com os olhos concentrados e todo o corpo encolhendo-se e esticando-se com um forte movimento de empurrão dos calcanhares e da cabeça a que ela estava bem habituada: fora isso que a fizera sentir-se dilacerada quando ele estava dentro dela.

Harriet voltou para a cama. David estendeu o braço de forma que ela se pudesse deitar perto dele, aconchegada, mas ela sentiu-se traiçoeira e falsa, pois ele não haveria de gostar do que ela estava a pensar.