13.

O filme de Scorsese inclui uma sequência — que aparecia originalmente em Renaldo and Clara, que, no final dos anos 70, vi duas vezes, sem me deixar intimidar pelos 235 minutos de duração, dos quais pelo menos metade não valia a pena ter sido filmada, menos ainda vista — de Dylan e Allen Ginsberg a visitarem o túmulo de Jack Kerouac em Lowell, Massachusetts. Eles olham para as palavras escritas na lápide: «Honrou a Vida.» Na sequência mais longa de Renaldo and Clara, entram numa espécie de medição de pilinhas sobre campas de escritores. Quando Dylan lhe pergunta se ele esteve na de Tchékhov, Ginsberg responde que não, mas que esteve na de Maiakovski, em Moscovo. Dylan visitou o túmulo de Victor Hugo em Paris, mas Ginsberg visitou o de Apollinaire, depositou um exemplar de Uivo no de Baudelaire (como é óbvio) e consegue dizer a Dylan o que está escrito no túmulo de Keats em Roma: «Aqui jaz um daqueles cuja fama está escrita na água.» (Ginsberg está enganado. O que diz é «nome» e não «fama», mas ser pedante vai contra o espírito do romantismo e dos Beats). Quando Ginsberg aponta para a campa de Kerouac e pergunta a Dylan se é isso que lhe vai acontecer, Dylan diz que quer ser enterrado numa campa anónima.

Há um momento maravilhoso em Walk Me Home (1993), um filme escrito e protagonizado por John Berger, quando a personagem de Berger diz que quer ser enterrada em terras sem dono. Entretanto, no filme de Scorsese, saltamos da cena de Dylan e Ginsberg na campa para uma entrevista de estúdio com um Dylan entretanto envelhecido e grisalho que diz acerca do grande romance de Kerouac: «Ele estava a falar sobre a estrada da vida.»

14. 

17.

A fotografia, tirada por Cohen, de Kerouac a sintonizar o rádio para se ouvir a si mesmo, capta não apenas um momento, mas a vida toda; não apenas o homem, mas a lenda — e vice-versa. Está a ouvir-se a si próprio, ao registo dos seus próprios feitos, mas sentimos também que ele está a tentar localizar o que tinha perdido, por causa do sucesso, por causa da idade, e porque o que perdera só poderia ser alimentado pela fome provocada pela rejeição. É a voz dele que está lá mas, incapaz de a criar ativamente, só a pode rebobinar e reproduzir. Condenado a viver a vida na esteira da sua lenda, está a tentar reencontrar a voz que se desvanece mesmo ao ser lembrada, ao ecoar na memória. Os ecos visuais e gestuais são do seu eu mais novo inclinado sobre a máquina de escrever a martelar a sua prosódia bop espontânea ou do pianista Bill Evans sobre o teclado. É pungente e belo, porque, embora para Kerouac os ecos fossem do passado, estavam em vias de ser transmitidos para o futuro através da rádio, 

34.

Este é o pano de fundo da experiência de ouvir o adágio nos meus auscultadores, deitado num banco na Toscana, a olhar para o céu estrelado, consciente do ligeiro estorvo da poluição luminosa, da ligeira bruma das nuvens, do ligeiro desconforto de estar deitado aqui assim, ligeiramente frio, da tentação que distrai de voltar a casa para ir buscar uma camisola com capuz e uma almofada para poder remover o obstáculo do eu — da consciência corporal — da visão das estrelas. Também me lembrei de outras linhas de Lawrence, de Crepúsculo em Itália, sobre ser «assim que concebemos as estrelas. Dizem-nos que estas constituem outros mundos. Mas as estrelas são as luzes cintilantes, aglomeradas e solitárias, no céu noturno do nosso mundo».1

Será que as estrelas parecem assim — não como memórias mortas de si mesmas, mas como memórias vivas do nosso mundo — inclusive quando vistas de cima, do próprio espaço?

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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51.

As últimas gravações de John Coltrane em estúdio, feitas a 22 de fevereiro de 1967 com o baterista Rashied Ali, foram lançadas postumamente com o título Interstellar Space. Coltrane morreu menos de cinco meses depois, a 17 de julho de 1967, aos quarenta anos. Em qualquer outro campo de atividade, seria uma vida desesperadamente curta. Só no jazz é que está completamente de acordo com as normas atuariais. E, dado que Coltrane adoeceu e morreu tão subitamente, não podemos falar de um período tardio da sua obra — era demasiado cedo para isso —, mas apenas de uma última fase. Em vez de um período tardio no sentido aceite em que Beethoven chegou a um estilo tardio, houve apenas um cessar da incessante torrente de som.

Da mesma forma, a doença e a morte súbita de Garry Winogrand em 1984, aos cinquenta e seis anos de idade, implicou que deixasse um oceano de imagens — mais de 300 mil negativos, segundo algumas estimativas — que ele mal tinha vislumbrado.

O interesse das gravações da fase final de Coltrane reside em parte no que preservam e em parte nas pistas que contêm sobre para onde ele poderia ter ido a seguir. Considerando os títulos da composição daquela última sessão — «Marte», «Vénus», «Júpiter», «Saturno» —, a pergunta pode ser legitimamente feita: onde é que ainda faltava ir? A resposta dada pelo trompetista Charles Tolliver a essa pergunta retórica é difícil de superar. Coltrane, disse ele, tornou-se «cósmico».

Uma das descobertas recentes — mais exatamente redescobertas, visto que houve partes do concerto que circularam em produções-piratas de má qualidade —, na escavação arqueológica em curso da obra de Coltrane, foi gravada na Temple University, em Filadélfia, a 11 de novembro de 1966. Há uma certa ironia sobre a data, o Dia do Armistício, com o seu tradicional minuto de silêncio, por causa dos guinchos, do ruído e da loucura — o anti-silêncio feroz — da música. Na altura, as coisas estavam a acontecer tão depressa no jazz — e em particular com Coltrane — que tinham passado apenas catorze meses desde a última e parcialmente magnífica gravação com o quarteto clássico (McCoy Tyner, Elvin Jones, Jimmy Garrison), a 2 de setembro de 1965.

Ao ouvir First Meditations (for Quartet) depois de ouvir a gravação da Temple, considerei-a, se tal coisa é possível, ainda  mais esmagadora do que quando a ouvia regularmente nos anos 80 (1). 

Digo «parcialmente magnífica» porque ainda me perde após as duas primeiras peças, «Love» e «Compassion». Por várias vezes no passado, o quarteto tinha trazido de volta uma música do silêncio em que tinha mergulhado (em «Spiritual» de Live at the Village Vanguard, ou «Alabama» em Live at Birdland). A transição entre «Love» e «Compassion» será a última dessas ressurreições, ainda mais milagrosa porque, em «Love», a saudade no grito de Coltrane é realçada pela resignação: pelo reconhecimento (uma antecipação da secção com o mesmo nome em A Love Supreme [«Acknowledgement»]) de que não será ouvido. Coltrane pode não ter tido uma fase tardia, mas é certo que o seu quarteto a teve.

Tyner e Jones permaneceram algum tempo, as contribuições deste último diluíram-se com a entrada de Rashied Ali, que aparece, juntamente com Pharoah Sanders, na versão revista de Meditations gravada a 23 de novembro. Este era o álbum que estava a tocar no Jazz Café no Burning Man quando fiz a minha intervenção inoportuna e aparentemente pouco apreciada no seminário sobre free jazz, exortando os presentes a ouvir a versão original do quarteto. Após a saída de Jones e Tyner, apenas o baixista do quarteto, Jimmy Garrison, permaneceu na última banda de Coltrane (embora por acaso não esteja no concerto do Temple, substituído por Sonny Johnson), com Sanders, Ali, e a mulher de Coltrane, Alice, ao piano.

Por um lado, é uma ideia extraordinária, acrescentar outro baterista quando já tinha Elvin atrás dos pratos. Neste aspeto, Coltrane parece ter-se sentido obrigado a trazer outros músicos, na esperança de que, ao fazê-lo, esclarecesse melhor a razão de o ter feito. Por outro, pode-se ouvir, em First Meditations, que o quarteto se tornou limitador, que está em vias de encontrar maneiras de se libertar de si próprio — ao mesmo tempo que, inevitável e simultaneamente, frustra qualquer tentativa de o fazer. Os novos músicos forçam a tentativa, levando a música para além da enorme força gravitacional gerada por Tyner e Jones, independentemente do custo ou da direção — mesmo que, em retrospetiva, essa direção pareça inevitável. A Pharoah, um parceiro constante no saxofone nesta fase final, junta-se por instantes na Temple um par de jovens saxofonistas, Steve Knoblauch e Arnold Joyner. Outros quatro percussionistas têm também a oportunidade de tocar na Temple. Aplaude-se a abrangência democrática, embora desconfiando dos resultados. Deve ter sido incrivelmente empolgante ter estado lá naquela noite (mesmo que, por razões circunstanciais, a sala não estivesse esgotada) mas, como muitas vezes acontece com o free jazz, esse empolgamento desvanece-se após o concerto, em disco. Ou talvez torne evidente o que era mais difícil de apreender no frenesim inebriante do momento: que o free jazz tinha feito o seu percurso — chegara aos seus limites — enquanto o percurso ainda estava a ser percorrido e os limites tinham sido ultrapassados. O facto de as coisas se desmoronarem não significa que não possam continuar, sobretudo dada a enorme carga histórica que, naquele momento, a música era obrigada a carregar. A esse respeito, ficamos a pensar na afirmação de Yeats de que os melhores carecem de toda a convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada. 

Coltrane é tão apaixonadamente intenso como sempre. Será que lhe faltava convicção? Talvez a dicotomia yeatsiana seja falsa e a intensidade apaixonada encubra ou disfarce uma falta de convicção mais profunda.

A novidade ou o interesse concreto do concerto da Temple é a forma como Coltrane canta, ou vocaliza, ou emite ruídos e bate no peito a meio de «Leo» e «My Favorite Things». Estes momentos avidamente aguardados soam de facto um pouco disparatados — o que não quer dizer que não tivessem valor. Talvez estes momentos — ou o de Ayler a fazer algo semelhante quando tocou no funeral de Coltrane — se tenham alojado na mente de Pharoah e servido de inspiração para a ocasião em que, no processo de desconstruir o «Olé» de Coltrane no Keystone Korner a 23 de janeiro de 1982, tira o saxofone da boca e grita. O grito é como combustível lançado num fogo já incandescente com a intensidade do solo de Pharoah e a força da secção rítmica. Essa potência propulsora — saturada de elementos explorados pela primeira vez pelo quarteto clássico de Coltrane — diminuíra na cintilação sónica da última fase de Coltrane: algo que sentia que já não precisava, algo que ele até pode ter considerado um obstáculo na sua busca.

Esta busca é geralmente caracterizada como espiritual, mas eu ponho em causa que exista algo audivelmente «espiritual» numa música que tanto servia como mapa (de para onde podia estar a ir) como registo (do que estava a deixar na sua esteira). Se está lá, não o consigo ouvir e não o sinto — como sinto a incapacidade de ler O Som e a Fúria — como uma perda. O que ouço, no Coltrane tardio, é o impulso do que ele tinha feito antes — e de uma situação que ele tinha ajudado a criar — a arrastá-lo para um terminal, um muro de pedra, um beco sem saída caracterizado pelo que Elvin, explicando as suas razões para desistir, chamou «muito barulho». Ora, isto é algo sobre o qual gostaria que a minha amiga astrofísica de Palos Verde tivesse falado. Será possível que, nos paradoxos insondáveis e longínquos da física teórica, o vazio interestelar infinito seja também um beco sem saída?

A sensação de inevitabilidade é atenuada pela figura adjacente e não menos formidável de Miles Davis. É difícil imaginar esse célebre filho da mãe a deixar aqueles miúdos todos participarem no concerto — embora pudesse ter contratado um deles depois de o ouvir no concerto de outra pessoa — ou alguém a descrever a sua viagem musical em termos «espirituais». Por inúmeras razões — musicais, temperamentais, e, fundamentalmente, comerciais —, Miles Davis evitou a armadilha do free jazz enquanto aproveitava grande parte da sua energia imparável. Na altura do concerto de Coltrane na Temple University, Miles liderava o seu segundo grande quinteto (com Ron Carter, Herbie Hancock, Wayne Shorter e Tony Williams) e em breve entraria no minimalismo sideral de In a Silent Way, no turbilhão elétrico de Bitches Brew, e mais além (antes de quase se apagar no seu Lamborghini verde e num nevão branco de cocaína: um exemplo terrestre do vazio como um beco sem saída).

Davis sobreviveu e, após uma ausência prolongada, regressou, diminuído, mas ativo até ao fim da vida. Com Coltrane, não há forma de saber. Talvez o resto não tivesse obrigatoriamente de ser barulho. No primeiro álbum do quarteto para a Impulse, gravou «The Inch Worm» e talvez, no final, estivesse a caminhar lentamente para um buraco negro através do qual seriam possíveis descobertas espantosas. Se tivesse vivido, talvez encontrasse um caminho para múltiplas fases posteriores. 

Livro: "Os Últimos Dias de Roger Federer e Outros Finais"

Autor: Geoff Dyer

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 20 de julho de 2023

Preço: € 19,90

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E ainda que, para voltar àquela dicotomia anterior, a de Coltrane tenha sido uma última fase e não uma fase tardia, há partes da análise definitiva de Adorno sobre o estilo tardio que saltam à vista quando se ouvem as suas últimas gravações. O lugar-comum acerca do estilo tardio de Beethoven, de acordo com Adorno, é o de que ele entrou num reino de pura expressão, livre de convenções. Em obras tardias, a personalidade do artista «quebra o invólucro da forma para melhor se expressar», é assim que Adorno resume esta ideia convencional, «desdenhando dos encantos sensuais com a autoconfiança soberana do espírito libertado». É isso que acontece aqui? E o free jazz não será mesmo isso? Exceto, claro, por Coltrane continuar a regressar a velhas versões e aos favoritos de sempre — abrindo o alinhamento na Temple com «Naima» e terminando com «My Favorite Things» da qual extirpou tudo menos o coração palpitante. (Em comparação com este desempenho, a versão gravada no Japão menos de três meses antes é claramente orelhuda.) Pouco sobra da composição original de Rodgers e Hammerstein, mas no meio de todos os destroços, como Adorno disse do Beethoven tardio, «encontramos espalhadas fórmulas e frases convencionais». O encanto dessas fórmulas e frases é ligeiramente realçado pela paisagem devastada que ameaça sempre devorá-las.

52.

«Spätstil Beethovens» [«O estilo tardio de Beethoven»], de Adorno, foi um ponto de referência importante no início deste livro sobre as últimas coisas, algumas das quais são tardias, enquanto outras são precocemente prematuras. Não que isto alguma vez tenha sido concebido como estudo abrangente das últimas coisas ou da ideia de últimas coisas em geral. É sobre um conjunto de experiências, coisas e artefactos culturais que, por várias razões, se juntaram à minha volta numa constelação rudimentar durante uma fase da minha vida. Embora não seja a minha última, espero eu, esta fase é marcada por uma consciência diária crescente de que a próxima pode muito bem ser a última — tanto assim é que sinto que é melhor fazer isto agora, no caso de acontecer mais cedo do que penso, ou que essa última fase, aconteça quando acontecer, possa distinguir-se por para os quartos de adolescentes solitários, preenchendo-os com a ideia de aventura — não apenas a excitação de andar pela estrada fora, mas a de se tornarem escritores. Podemos ouvi-lo nos versos de uma canção que passou muito na rádio, não uma de Dylan, mas «Dancing in the Dark», de Bruce Springsteen. «Estou farto de estar aqui sentado», canta Springsteen, «a tentar escrever este livro.» Não um livro qualquer, mas, subentende-se, um grande livro. A ambição, a esperança e a fome de Kerouac continuam vivas. Esse romantismo — e a desgraça — nunca morrerá. Ainda se pode vê-lo. Ainda se ouve.

As coisas mudam à medida que se envelhece. Neste momento, não quero fazer nada a não ser sentar-me a escrever — mais precisamente, a rever — este livro.

(1) Ouvi First Meditations pela primeira vez no quarto do meu amigo Chris, em Brixton, em meados da década de 1980, mas foi a segunda vez que a ouvi, alguns meses mais tarde, que me ficou na memória. Estava no corredor de uma festa numa casa onde, por cima do funk a tocar nas divisões principais, conseguia distinguir o que soava a Coltrane. Segui o som vindo de cima, até um quarto onde três ou quatro tipos ouviam o álbum em altos berros, no transe concentrado de quem está completamente pedrado.