
O vento arrasta as nuvens para a selva, a água parou de cair. Já não vejo casas, as árvores são substituídas por outras, manchas verdes que impõem limites ao rio. O menino remexe-se, olha para mim com os seus olhos negros. A capa deixa-me ver o nariz – achatado, redondo, pequeno –, suspira e sussurra a pergunta:
– Já estamos quase a chegar?
– Não, acabámos de sair.
Carmen Emilia tem os olhos fechados. Não sei se reza ou se dorme. Conseguirá um adulto dormir com este barulho? Vento, palavras entrecortadas, a água contra a madeira e a condutora a cantar aos gritos – desafinada, com os olhos fechados – uma canção de uma tal cachaloba quitamaridos.
Tiro a capa ao menino, dobro-a ao meio e estendo-a diante do nosso lugar. Sem nuvens, o sol cai sobre nós e seca-nos a roupa. O cheiro do colete e do meu corpo unificam-se: cheiro a cão molhado, e o menino também. Ele não se importa, está concentrado a olhar para Carmen Emilia. Mexe as mãos diante dela para verificar se ela dorme ou finge, tal como ele faz quando recebemos visitas em casa. A senhora nem se mexe.
O rio dorme, navegamos em cima de um tigre que a qualquer momento pode engolir-me inteira, a mim e ao menino. Quantas vezes pintei, em menina, este rio nos meus desenhos? Repeti até à exaustão que era um dos mais caudalosos do mundo. Como me sentia orgulhosa dele. Profundo, importante, perigoso. A cada época das chuvas, na nascente ou na aldeia, metia-se nas cozinhas, inundava a escola. Não havia uma semana em que uma menina não chegasse à sala de aula com os sapatos húmidos. As freiras davam por isso e obrigavam-nos a tirar os sapatos e a entregar-lhos. Punham-nos a secar atrás dos frigoríficos da cantina da escola, onde guardavam os refrigerantes.
Quando chegávamos a casa, as mamãs zangavam-se connosco por causa das meias sujas.
O menino adormece e Carmen Emilia acorda. Abre a boca como uma ursa, estica as mãos, penteia-se. Tira uma banana do seu saco e oferece-me outra.
– Quantos anos tem?
– O quê? – pergunto.
– O menino. Vai a dormir, ou quê? – responde a mastigar a banana.
Gosto do sabor da fruta antes de se estragar. Tem manchas, vincos, golpes, mordidas de lagartas. Uma fruta de pele lisa nunca sabe tão bem como a que sentiu a passagem do tempo. Carmen Emilia pede-me que, já que estamos em modo de confiança, lhe conte a história do menino. As pessoas perguntam sempre coisas para ter uma desculpa para contar as suas histórias fabricadas, urdidas ao longo de anos. Não a conheço, mas ainda temos muito rio pela frente. Suspiro, estico as pernas e respondo à pergunta que ficou por fazer.
– Desde que o menino chegou, passei mais noites à sua cabeceira do que na minha cama, atenta ao seu respirar, ao ar quente, de cachorrinho, que entrava e saía do seu nariz, dava-me motivo suficiente para trabalhar e dar-lhe tudo o que me pedisse; o que adivinhasse nos seus olhos negros. Uma manhã, depois de dormitar ao lado da sua cama, o menino acordou-me a chorar.
– Porque é que eu sou preto e tu branca? – perguntou-me. Tinha quatro anos, e eu não estava preparada para aquela pergunta. Se ele tivesse crescido dentro de mim, se o tivesse parido, não teria sido menos difícil responder. Talvez lhe tivesse dito que no mundo há pessoas de muitas cores e que, ao misturarem-se, nascem cores novas. Que o seu pai era preto e eu branca, que ele tinha ficado com o melhor de nós: a pele do papá, os olhos e o andar da mamã. Mas ele não tinha papá, e não tinha nascido de mim.
Carmen Emilia não tira os olhos de cima de mim, sabe escutar. Pega na casca da banana que tenho na mão, e atira-a fora. Não sei se acredita em mim. Fica a olhar para o rio, cor de café como ela, como a madeira do barco, como o menino. Depois de um curto silêncio, continuo:
– O que acontece a alguém que cresce sem mãe? É o vento que cuida dele, uma professora, a senhora da loja da esquina? Quem lhe ensina a rezar, a temer, a deixar de fantasiar? Quem lhe diz: «Menino, isso não se faz!» Quem lhe corta as asas e quem lhas cose? Quem lhe põe os pés na terra? Não a ter, às vezes, é o mesmo que tê-la. Uma mãe é uma coisa que dói. É ferida e cicatriz. Para uma criança, a mamã é a pessoa que pergunta se quer leite no chocolate, que se zanga quando anda descalço pela casa, que prova a sopa primeiro, queima a língua e espera que arrefeça um pouco mais. Uma mamã é a pessoa que está.
Nesse dia não o mandei para a escola.
No quintal da casa, junto ao limoeiro, pus a mesa de madeira em que então trabalhava. Levei lápis de cor, folhas e sentei o menino à minha frente. Antes de lhe contar a verdade, pedi-lhe que desenhasse linhas de todas as cores. Abusou do verde, fez círculos roxos e azuis, encheu a folha de cor de laranja, amarelo, cor-de-rosa, preto, vermelho, creme e cor de café.
Partiu a ponta ao azul-celeste. Com a folha pintada sobre a mesa, expliquei-lhe que o mundo era assim, colorido, e que isso incluía as pessoas, que nós somos natureza.
– Eu sou uma árvore? – perguntou.
– Uma árvore com olhos e pés e língua – disse.
– E tu, és o quê? – perguntou a sorrir.
– O que achas? – disse, pondo-me de pé para que me olhasse completa.
– Então, és uma mamã – gritou.
Sentei-me ao seu lado e contei-lhe a verdade:
– És preto e eu branca porque tens duas mamãs: uma é a mulher preta que te carregou na barriga nove meses e te trouxe ao mundo. A outra sou eu, que cuido de ti todos os dias, desde que eras um bebé. O menino olhava para as laranjas enquanto ouvia.
– A mulher de que nasceste não pôde ficar contigo, connosco – disse.
Peguei numa folha, desenhei duas mulheres, uma preta, outra branca, e um menino, preto também. Expliquei-lhe:
– Esta é a tua mamã preta, esta é a tua mamã branca, e este és tu. Disse-lhe também que ele tinha muita sorte, porque quase todos os meninos tinham só uma mamã e ele tinha duas. Sorveu o ranho, parecia feliz e convencido. Teria podido resolver a questão dizendo-lhe que eram coisas de Deus, mas já lhe tinha ensinado que só ouvíamos a voz de Deus dentro de nós, às oito da noite, antes de ir para a cama. Quem lhe podia explicar como é que Deus falava em voz alta e às dez da manhã?
Pedi que fizesse o seu próprio desenho. Além de duas mães e um menino, encheu a folha de círculos verdes, cor de limão. Antes de terminar disse, apontando para a minha figura:
– Ma, quase não se te vê.
– A cor branca é deslavada. Desenha-me um vestido. Então, em cima do branco pintou com todas as cores. Eu tinha aspecto de uma manta de retalhos. Mas no centro, a combinação de todas as cores deu lugar ao preto.
No fim, perguntou-me se a outra mamã nos traria presentes quando nos viesse visitar. Disse-lhe que sim.
– Voltou a perguntar pela mamã preta?
– Não. Mas emoldurei os desenhos que fizemos nesse dia e coloquei-os no quarto dele. Ele sabe que tem duas mamãs, mas não voltámos a falar do assunto. Sei que quando lhe perguntam na escola porque tem uma mamã como eu, ele responde que tem duas mamãs e ri-se dos outros, que só têm uma. Desata a correr, esconde-se na casa de banho e chora. Não sabe porquê, mas chora.
O sol pica, as árvores lutam com a água: querem meter-se, roubar espaço ao leito do Atrato. Ouve-se a algazarra de um pássaro, primeiro furtivamente, depois cada vez mais alto, tenho medo de que acorde o menino. Carmen Emilia aponta para uma árvore, diz-me que é um gavião-pedrês. Aponta para outro e a seguir outro. Também diz que é uma pena não se saber quando um pássaro está a chorar ou a cantar. Não digo nada. Vai-me acordar o menino.
– Gosta de ser branca? – pergunta-me, rompendo o silêncio. Passo a mão pelos cabelos do menino, ajeito-lhe a camisa e tiro-lhe os sapatos verdes. O passarão já não canta. Olho para a Carmen Emilia e conto-lhe uma recordação.
***
Na semana que vem é o Dia da Raça e é a nossa vez de representar uma peça de teatro no pátio grande do colégio, diante de toda a gente. Não sei actuar; sei fingir que estou com gripe, que o corpo me pica, que me dói o pescoço, mas representar, não. Às três horas e quinze minutos chegámos ao salão de música, ao lado do jardim das plantas, para o primeiro ensaio da obra. De cor creme, sem janelas e com um ventilador encaixado na parede, o salão tem espelhos até no tecto, por isso as freiras nunca entram, é-lhes proibido olhar-se ao espelho porque podem ir para o inferno por serem vaidosas. Ou por serem feias. Este ano não tivemos aulas de música; o salão ficou abandonado quando o professor morreu de um infarto de que não fomos a causa, com os nossos gritos desafinados, como nos dizia com a sua voz de tenor.
Reunidas em círculo como índias à volta da fogueira, Karol, que tira sempre as melhores notas, é a encarregada de dirigir a peça e de nos dar as instruções. A professora Eloísa usa-a sempre como exemplo, deixa-a mesmo a tomar conta do grupo quando vai à casa de banho pôr um perfume que cheira a flores de cemitério. Olhando-nos por cima do ombro, Karol distribui umas fotocópias que explicam como nos devemos vestir, diz que a história já a tínhamos estudado na aula, e que temos de improvisar os diálogos, de modo natural. Eu não sei improvisar, mas é a primeira vez que me convidam para alguma coisa, pelo que não digo nada.
Comentários