Já lá vai o tempo dos Them, quando 'Gloria' deixou a cabeça de uma jovem Patti Smith tão à roda que ela teve a necessidade de se apresentar ao mundo com uma versão desse mesmo tema, inadvertidamente dando início ao movimento punk. Também já lá vai o tempo de “Astral Weeks”, álbum que misturava folk, blues, jazz e até música clássica, que só depois do seu lançamento, em 1968, se transformou num álbum de culto, sendo considerado por muitos como um dos melhores álbuns de todos os tempos. Van Morrison voltou a Portugal não para celebrar o passado, mas para celebrar o presente, e o presente é “Moving Of Skiffle”, disco duplo que editou o ano passado, repleto de versões de canções que terão marcado o seu percurso musical.

Apesar desse disco ter sido bem recebido pela crítica especializada, Van Morrison tem sido notícia, nos últimos tempos, pelas suas posições anti-vacinas e pela luta contra o que chamou de “pseudo-ciência” - sem se alicerçar em quaisquer factos para fazer valer as suas posições. O músico norte-irlandês chegou mesmo a ser processado pelo Ministro da Saúde do seu país, Robin Swann, por difamação: Morrison tinha-o apelidado de “fraude”, ao mesmo tempo que editava três canções anti-confinamento, acreditando que a sua liberdade tinha sido ameaçada por não poder dar concertos numa época em que a esmagadora maioria das pessoas tinha interesse em não falecer por causa de um vírus.

Nesta noite em Cascais, escutámos uma delas, 'Gov Don't Allow', uma versão de 'Mama Don't Allow' com uma nova letra, anti-governo (o que seria de valorizar sem esse background). Foi, também, a primeira vez que Van Morrison se dirigiu ao público presente no Hipódromo Manuel Possolo, local onde habitualmente se realiza o Cool Jazz: “muito obrigado”, limitou-se a dizer, explicando logo de seguida que esta noite serviria para apresentar o seu novo trabalho.

Antes, havia apresentado as canções ali presentes quase de rajada. Perante uma plateia longe de estar esgotada, onde se destacava um forte contingente estrangeiro, o músico subiu ao palco quando ainda não eram 20h30, a hora marcada para o início do espetáculo. Foi a banda a subir primeiro, anunciando Sir Van Morrison, fincando o estatuto de um homem que marcou gerações atrás de gerações. Acompanhado pela sua harmónica, Morrison, chapéu na cabeça, óculos escuros e blazer azul, descartou quaisquer agradecimentos perante os aplausos do público e lançou-se de imediato a 'Streamline Train', deixando que a música falasse por ele. Um casal, menos tímido (em que ele parecia uma cópia quase exata de Iggy Pop), ia dançando na lateral.

A voz balbuciante, que ao vivo nunca foi tão percetível quanto isso, ia-se perdendo debaixo do instrumental, até que o seu volume foi ligeiramente aumentado. O instrumental era o skiffle, género nascido antes do rock n' roll, o mesmo que levou os Beatles a seguir uma carreira na música. Guitarras, washboard (basicamente uma tábua para lavar a roupa), contrabaixo, bateria, congas. A tradição parecia ser o que é – e mesmo no presente, há algo de revivalismo nesta música. No meio, o microfone dourado, porque um Sir necessita, como é óbvio, de ostentação.

'Yonder Comes A Sucker', com um belo solo de guitarra à antiga – tudo muito simples, sem grandes artifícios, mais ritmo que eletricidade – revelou-se como um dos grandes momentos neste início de concerto passado a correr. Depois, vemos um roadie a auxiliá-lo com a partitura, para que 'Travellin' Blues' se revelasse com todo o esplendor de uma guitarra acústica. Olhamos para o público em redor e notamos vários homens de braços cruzados, alguns abanando ligeiramente o pé. Se com vergonha ou pouca paciência para se dedicarem à música, não o saberemos. Outros iam conversando alegremente, porque aparentemente é mais importante manter a conversa em dia que escutar o que se está a passar em palco. Por outro lado, não temos como criticar: íamos na quinta canção e ainda não tinha existido nada que nos tivesse prendido à séria, algo que assinalasse a existência de Van Morrison em palco.

O vento que se fazia sentir, não sendo catastrófico, incomodava. 'This Loving Light Of Mine', a primeira original da noite, boogie-woogie para dançar, fez esquecer o frio. Em 'Greenback Dollar', Van Morrison atira-se a um solo de saxofone – e merece aplausos por isso, tal como em 'Come On In', com os ânimos a esmorecer logo de seguida: 'I'm So Lonesome I Could Cry', uma das melhores canções de Hank Williams, fez-se ouvir e lembrou-nos que um dos grandes reis da música country cumpriria este ano o seu centésimo aniversário, caso fosse vivo.

Outra de Hank Williams, 'Cold, Cold Heart', mostrou alguma da humanidade do Sir: “porque raio paraste de cantar?”, gritou a um dos membros da sua banda. Tudo sanado, surgiria mais tarde 'Cotton Fields', de Lead Belly, antes de 'Green Rocky Road' ser acompanhada pelas palmas do público (até um dos rapazes cujo trabalho era levar os presentes aos seus lugares dançou) e 'Worried Man Blues' fechar tudo ao som do gospel. O público inteiro de pé, Van Morrison saiu do palco sem nada dizer e deixou a sua banda terminar aquele que foi um concerto morno, mas que provou que mesmo aos 77 anos o músico ainda tem algo a cantar.