No final de maio, os Royal Blood atuaram no festival Big Weekend, na Escócia, patrocinado pela BBC Radio 1 (um dos canais da rádio pública britânica). Em pouco mais de meia hora de concerto, foi-lhes concedida a tarefa ingrata de aquecer para os dois grandes nomes pop do alinhamento do dia, Niall Horan e Lewis Capaldi, inevitavelmente aqueles que mais público arrastaram até ao evento. Resultado: o rock n' roll dos Royal Blood teve tanto impacto quanto uma pluma, levando o baixista e vocalista Mike Kerr a apelar à sua enorme costela sarcástica e a cuspir, ainda em palco, alguém gosta de rock? Nove pessoas? Lindo.

O momento, ao que se seguiu o atirar do baixo elétrico contra o chão e dois manguitos lançados na direção de ninguém em concreto, presumivelmente ao público presente ou ao mundo inteiro, ficou registado em vídeo e correu as redes sociais. Se alguns acharam alguma graça à ideia de um grupo rock mostrar tamanha hostilidade em palco para com uma audiência (normalmente é ao contrário; os Nickelback que o digam), outros deixaram duras críticas à postura dos Royal Blood, adjetivando-os de “arrogantes” ou “imaturos”, e levando a que, semanas depois, Kerr e o baterista Ben Thatcher tentassem justificar o sucedido, em entrevista à BBC Radio 1. “As proporções que isto tomou espantam-me. Na verdade, adorei dar esse concerto”, afirmou o baixista. “Senti-me como uma espécie de wrestler, como um vilão. Não creio que tenha feito nada moralmente abjeto”.

Talvez naquelas palavras tenha existido algum sentido de humor, alguma ironia misantropa, tantas vezes aplaudida pelo povo britânico. Mas as críticas devem ter provocado alguma coisa nas cabeças da dupla, já que, poucos minutos antes de o SAPO 24 iniciar esta entrevista, nos foi indicado que não poderíamos colocar quaisquer questões sobre o que sucedeu no Big Weekend. É bem possível que os Royal Blood não tenham, à semelhança de muitos críticos, achado grande piada ao que aconteceu. Independentemente de se poder considerar este caso como uma birra ou uma graçola que correu mal, o que Mike Kerr fez é o que centenas de artistas e fãs de rock têm feito ao longo da história: considerar o seu género musical superior a todos os demais, pelo menos bastante superior “a essas tretas pop comerciais”. E escrevemos “tretas” para não escrever outra coisa.

O rock é o seu ímpeto, e foi com o rock meio sujo do seu álbum de estreia, homónimo, que os Royal Blood se destacaram, em 2013/2014. A culpa era de 'Out of the Black', o seu primeiro single, uma batida marcial e um riff apelativo, ao lado de letras sobre uma suposta traição, sem que se perceba bem de onde ela veio – de uma namorada, uma esposa, um amigo, um colega? – o que acaba por torná-la universal. Tanto, que atingiu a segunda posição das tabelas rock nos Estados Unidos, o que para uma banda nova, e ainda por cima oriunda do outro lado do Atlântico, é um feito algo considerável.

Depressa a imprensa especializada, sempre predisposta a tentar localizar a next big thing, lhes concedeu o título de “salvadores do rock”, esquecendo-se que o rock não só não precisa de ser salvo como não precisa de vender em barda para salvar quem seja. Mike Kerr, menino bonito com atitude, e Ben Thatcher, o seu parceiro mais silencioso: havia ali algo quase caricatural, de desenho animado, dois amigos que se juntam para combater o crime, armados apenas com os seus instrumentos – que tocavam, como deve ser feito sempre, no máximo volume. 

“Royal Blood” conquistou uma série de fãs e deu início à história do costume: banda lança um belo disco, banda dá concertos aclamados por todos quantos os vêem, banda dá entrevistas com frases para a posteridade, banda lança segundo álbum menos conseguido, banda vai buscar influências fora do género que os deu a conhecer para o seu terceiro trabalho, banda cai no vício, banda ergue-se do vício e acha agora que o mundo é belo e cheio de flores por cheirar. É neste último ponto que os Royal Blood, e sobretudo Mike Kerr, se encontram de momento. 

O seu novo álbum, o quarto de originais, tem como título “Back to the Water Below” e sucede ao ótimo “Typhoons”, de 2021, onde a sua música bebia tanto do rock garageiro como da música disco. “Typhoons” valeu-lhes algumas das melhores resenhas da sua carreira mas, segundo nos explica Kerr, isso não os pressionou ao compor este novo trabalho. “Nós não lemos nada do que se escreve sobre nós”, afirma. “Não é útil, de todo. A voz que escutamos é a nossa, entendes? Senão, o que fazes é para os outros. Na vida tens de fazer as coisas por ti”.

O próprio Kerr teve, nos últimos anos, de fazer algumas coisas por si. Nomeadamente, livrar-se de um vício em álcool e em drogas, que quase acabou consigo e com os Royal Blood. Em entrevistas passadas, o músico garantiu que, caso não tivesse optado pela reabilitação, hoje a dupla não existiria. Questionamo-lo sobre o maior feito da sua carreira, e a resposta vem rápida: “foi não morrer”. “E o meu maior lamento é ter sido tão cruel para com o meu corpo”.

“Back to the Water Below” pode, por isso, ser visto como um álbum mais alegre, composto por alguém que, ao “NME”, afirmou ter passado uma longa temporada “na máquina de lavar da negatividade”. “Agora, estou no secador da positividade”, diz ao SAPO 24. “[O disco] tem partes alegres, não o pintaria de uma só cor. No que diz respeito ao lugar onde estamos agora, à forma como vemos as coisas, é muito mais positivo”. O seu lançamento está marcado para o dia 8 de setembro, através da Warner, já sendo possível ouvir 'Mountains at Midnight', primeiro single a ser dele retirado.

Essa canção tem marcado presença nos alinhamentos da nova digressão dos Royal Blood, mas é para já o único tema novo a fazê-lo. “O plano é começar a acrescentar mais algumas canções. Se dependesse de mim, só tocaríamos canções novas”, diz Kerr. Apontando a data de “muito em breve” para essa empreitada, o músico deixou no ar a possibilidade de o fazer já este domingo, quando os Royal Blood se reencontrarem com o público português, para um concerto no Campo Pequeno, em Lisboa. Até porque, afiança, “Back to the Water Below” já está mais que terminado. “Tivemos tempo para viver com ele”, acrescenta.

Kerr descreve-o como um álbum “musicalmente muito honesto”, embora sem dar pistas em relação ao som que se escutará. Tão honesto quanto as letras? “Tento sempre ser o mais honesto possível ao escrevê-las”, garante. Perguntamos-lhe o que costuma vir primeiro: se a galinha se o ovo, isto é, se a música ou as letras. “Depende daquilo com que começares, de como tudo encaixa. Por vezes, a letra pode sobrepor-se à música. Não há certo ou errado”. 

A honestidade poderá, também, ser fruto do facto de terem sido os próprios Royal Blood a produzi-lo, e não uma entidade exterior. Estará aqui o início de uma carreira enquanto produtores? “Nunca pensei muito nisso. Nós produzimos os nossos próprios discos porque sabemos muito bem a banda que somos, sabemos como retirar o melhor um do outro”, explica. “Não sei se seria um bom produtor de outras bandas. Claro que não saberei até tentar... Vamos esperar que haja alguma banda corajosa o suficiente”.

Se as houver portuguesas, poderão tentar a sua sorte em Lisboa. Desse espetáculo, espera-se sobretudo uma hora e qualquer coisa de barulho muito, que é como quem diz, grandes temas rock para dançar, fazer crowdsurf, aproveitar esse período fugaz de liberdade. Há alguns anos, em entrevista à “BLITZ”, Kerr afirmou que o público “ainda está sedento por este tipo de sonoridades” rock. Hoje, a opinião do baixista é algo diferente, mas segue o mesmo raciocínio: “se trouxeres energia para um concerto ao vivo - uma bateria, amplificadores, uma guitarra... Quando tens boas canções e instrumentos para as tocar, é difícil rivalizar com essa energia. Vês isso na pop: há artistas que trazem músicos com eles. Há ali algo de muito primitivo. Há alguém a bater nalguma coisa com dois paus grandes”. Este domingo, a partir das 20h, quem estiver no Campo Pequeno poderá ver exatamente isso: uma pessoa a bater com dois paus grandes e outra a acompanhá-la no grito. Por vezes, isso vale mais que tudo o resto.