PRÓLOGO

Nova Iorque
Segunda-feira, 6 de dezembro

A doutora Susan Passero, especialista de Medicina Interna do Manhattan Memorial Hospital, conhecido coloquialmente como MMH, conduziu a sua quadragésima primeira, e última, paciente do dia, Florence Williams, para fora da sala de exames. Eram quase seis da tarde. Despediu-se calorosamente e encorajou Florence a continuar no bom caminho, cumprindo um calendário de medicação algo complicado. De regresso à sala, Sue respirou fundo, reajustou a máscara de proteção contra a covid-19 e sentou-se novamente ao terminal do computador para concluir o registo necessário. Tal como a maioria dos médicos, desprezava estar tão presa às exigências da ficha de saúde eletrónica, devido à interferência que esta invariavelmente causava entre ela e os pacientes, mas sabia que a medicina moderna assim o exigia. Quando terminou, e após assinalar devidamente todos os quadrados necessários, lavou as mãos pela milésima vez nesse dia, guardou o estetoscópio no bolso e dirigiu-se à clínica propriamente dita.

Como de costume, era a última médica a terminar consultas de pacientes agendados, por isso a clínica estava praticamente vazia. No extremo oposto, a equipa de limpeza já começava o trabalho diário. Sue acenou-lhes, uma vez que tratava pelo primeiro nome várias pessoas, e elas retribuíram o gesto. Até então, fora uma segunda-feira normal e atarefada, e as segundas-feiras eram sempre o dia mais movimentado da semana, uma vez que, além das consultas programadas, certos pacientes que tinham entrado no Serviço de Urgência durante o fim de semana costumavam precisar de seguimento.

Sue Passero era uma mulher afro-americana atlética e corpulenta cujo porte ainda refletia as façanhas no desporto universitário como, por exemplo, futebol, básquete e softbol. Cuidadosa com a aparência, trajava um vestido de seda por baixo da bata branca de médica, e usava o cabelo num estilo contemporâneo, curto e espetado. Sendo extrovertida, era simpática com toda a gente do hospital, particularmente com o pessoal da restauração e da limpeza. Apesar de ser especialista em Medicina Interna e com a subespecialidade em Cardiologia, nunca se arrogava ares superiores com os outros funcionários do hospital, como alguns médicos narcisistas que conhecia. A razão era simples. Por necessidade, durante o secundário e a faculdade, fizera quase todos os trabalhos menores em centros médicos académicos, incluindo limpar jaulas de macacos. O resultado traduzia-se em apreciar sinceramente a opinião de toda a gente. Em simultâneo, era uma pessoa exigente. Não importava a função, a pessoa tinha de dar cem por cento, e era assim que ela sempre encarara as suas funções.

Hugo Gonçalves junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 11 de abril, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz "Revolução", o seu último livro, editado pela Companhia das Letras.

Saiba mais sobre o livro e o autor aqui.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso novo canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

— Está tudo feito! — exclamou Sue para Virginia Davenport, debruçando-se no balcão das rececionistas. Tal como Sue, Virginia era sempre a última administrativa a acabar o turno. No seu papel de funcionária mais antiga da clínica, levava o trabalho muito a sério, e por isso ela e Sue davam-se lindamente e trabalhavam bem juntas.

— Aqui está o horário dos seus pacientes para amanhã — disse ela, levantando-se e entregando uma cópia impressa a Sue. Virginia era uma mulher alta e esguia, com um rosto oval emoldurado por caracolinhos loiros e pontuado por olhos escuros e dentes muito brancos.

— Obrigada, miúda! — disse Sue, pegando no papel como se fosse o testemunho numa corrida de estafetas, já a avançar rapidamente pelo corredor fora. Agora que já acabara de ver pacientes, queria dar o dia por terminado, meter-se no carro e ir para casa, em Nova Jérsia. Enquanto se dirigia para o seu minúsculo gabinete, olhou para o horário. Parecia um dia como outro qualquer, com trinta pacientes marcados, embora isso invariavelmente aumentasse.

— Também imprimi aquele artigo sobre o assassino em série que a doutora me pediu — acrescentou Virginia, correndo para acompanhar Sue. — E aqui estão as chamadas telefónicas que chegaram enquanto a doutora via pacientes e que precisam de uma resposta.

Sem abrandar, Sue pegou nas mensagens telefónicas e no artigo, olhando de relance para este último. Era um artigo do New York Times de outubro sobre um enfermeiro do Texas que fora dado como culpado de matar quatro pacientes pós-operatórios, mediante injeção de ar nas artérias. Entrando no gabinete, Sue passou para trás da secretária e sentou-se.

— É uma querida— disse ela, olhando para Virginia, que a seguira. Esta última interação entre elas era parte da rotina diária antes da partida de Sue. — Por acaso leu o artigo?

— Li, pois — respondeu Virginia. — Seria difícil não ler, vendo o título. É horrível que as pessoas sejam capazes desse tipo de comportamento, especialmente na profissão médica.

— O que me assusta, neste caso em particular, é que a motivação do enfermeiro fosse manter certos pacientes na Unidade de Cuidados Intensivos para poder ter mais horas de trabalho. Será possível? Quer dizer, para mim, é inédito. Consigo compreender, de uma forma doentia, os chamados assassinos por misericórdia que, erradamente, professam estar a salvar pessoas da dor e do sofrimento. Até consigo compreender intelectualmente a síndrome do herói, mais assustador, em que os malucos sociopatas tentam melhorar a sua imagem pondo os pacientes em perigo, para depois ganharem o mérito de os terem salvado. — Enquanto falava, Sue tirou uma grande pasta azul dentre dois suportes para livros. Abriu-a e introduziu o artigo, que se juntava a vários outros semelhantes.

— É um pensamento aterrador, seja qual for a motivação — disse Virginia. — O hospital serve para salvar pessoas e não para matar. Só lhe digo, o mundo parece estar a ficar cada vez mais louco.

— Alguma dessas chamadas exige atenção imediata? — perguntou Sue, segurando a lista de nomes e números de telefone. — Ou posso telefonar a caminho de casa?

— Nada de extraordinário — assegurou Virginia. Apesar de ter formação em Psicologia e Assistência Social, e não em cuidados de
saúde propriamente ditos, Virginia aprendera, nos dez anos de trabalho na Clínica de Medicina Interna, a reconhecer as verdadeiras urgências médicas. Com a experiência, Sue aprendera a confiar nela. — O MMH alguma vez teve um problema destes?

— É interessante que pergunte. Receio que a resposta seja sim. Há cerca de quinze anos, a minha amiga Laurie Montgomery, ao seu estilo inimitável de médica-legista extraordinária, denunciou uma enfermeira daqui que estava a ser paga por uma organização duvidosa, por seu turno a trabalhar para uma companhia de seguros de saúde, para matar pacientes em pós-operatório que tivessem marcadores de genes, digamos, menos bons.

Virginia conhecia Laurie por ter organizado vários almoços e até um jantar ocasional para ela e Sue. As duas médicas eram velhas amigas dos tempos de faculdade.

— Porquê?

— Para poupar dinheiro à companhia de seguros. Com essa bagagem genética, os pacientes envolvidos estavam destinados a precisar de muitos cuidados de saúde onerosos.

— Oh, meu Deus — exclamou Virginia, cobrindo a boca com a mão em desalento. — Que horror. É pior do que o enfermeiro do Texas. Quantos pacientes estavam envolvidos?

— Cerca de meia dúzia — respondeu Sue. — Não me lembro ao certo. Foi mau, e tentei esquecer os pormenores, mas não a lição. Foi uma terrível lembrança do quanto os interesses comerciais se sobrepuseram à Medicina. Especialmente com os fundos de investimento privados a tentarem obter até ao último cêntimo de compensação.

— Infelizmente, é verdade — disse Virginia. — E o facto de a doutora mencionar interesses comerciais faz-me lembrar que tem uma reunião do Comité de Conformidade amanhã ao meio-dia.

— Obrigada pela lembrança, e, se não houver mais nada, é desta que me vou embora.

Sue deu uma palmada no tampo da secretária, levantou-se e tirou a bata branca. O facto de ter outra reunião do comité não a surpreendia. Enquanto membro particularmente dedicado da equipa do MMH, sentia ter o dever de oferecer os seus préstimos a vários comités. Atualmente, era membro do Comité de Mortalidade e Morbilidade, do Comité de Controlo de Infeções e do Comité de Reorganização do Ambulatório, bem como do Comité de Conformidade. Além disso, estava a concorrer a um cargo na direção do hospital. Felizmente, Virginia Davenport estava disposta a ajudar com todo este trabalho adicional.

— Está tudo em dia — assegurou-lhe Virginia, dirigindo-se para a porta. — Conduza com cuidado a caminho de casa. Até amanhã.

— O mesmo para si, no metro.

Sue trocou a bata branca pelo casaco de inverno, pendurado atrás da porta que dava para o corredor. Pegou no telemóvel, na mala e na lista de pacientes que tinha de contactar e seguiu Virginia até ao corredor, onde se despediram. Sue pretendia sair da garagem no silo do edifício antes que a multidão de carros chegasse para o turno da noite, que começava às 19h00. Embora a maioria dos empregados viesse de transportes coletivos, as viaturas particulares eram suficientes para haver um pequeno engarrafamento.

O percurso exigia a passagem pela ponte pedonal do edifício das consultas para o edifício principal e, a partir daí, por uma segunda ponte pedonal para a garagem. Embora alguns funcionários do turno da noite estivessem a chegar, bem como alguns visitantes, o espaço não se encontrava concorrido como aconteceria entre as 18h30 e as 19h00. Sue encontrou o carro onde alguém do serviço de arrumadores o estacionara nessa manhã, na secção do corpo clínico, que já estava quase vazia, como era habitual. Quando se aproximou do seu estimado BMW com vidros fortemente fumados, levou a mão ao bolso do casaco e tocou na chave eletrónica para premir o botão de abertura da porta. O carro reagiu acendendo as luzes interiores e exteriores.

Livro: "Turno da Noite"

Autor: Robin Cook

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 4 de abril de 2024

Preço: € 18,80

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Sue abriu a porta do condutor e atirou a mala para o banco do lado sentando-se ao volante. Como fazia sempre, pendurou o cordão de identificação no espelho retrovisor. Tentou carregar no botão de arranque, mas a mão não chegou lá. Para seu choque e horror, um capuz de pano foi-lhe atirado para cima da cabeça e puxado para baixo à volta dos ombros. Quando tentou levar as mãos acima para arrancar o capuz, um braço rodeou-lhe a garganta, puxando-a para trás contra o encosto de cabeça com tanta força que as suas costas até ficaram arqueadas e afastadas do assento. Largando o capuz, ela tentou puxar o braço com as duas mãos, enquanto gritava de terror. Infelizmente, a voz estava abafada devido ao capuz e à compressão no pescoço. No instante seguinte, sentiu uma dor lancinante na coxa direita.

Cerrando os dentes, Sue conseguiu afastar o braço que lhe rodeava a cabeça o suficiente para respirar. Mas, depois, o segundo braço veio em auxílio do primeiro, desalojando-lhe uma das mãos e prendendo-lhe a cabeça contra o encosto, limitando-lhe novamente as vias respiratórias.

Em desespero, Sue tentou morder o braço que lhe rodeava o pescoço, mas o esforço estava limitado pelo capuz de pano. O agressor reagiu aumentando a compressão no pescoço e a hiperextensão das costas de Sue. Com toda a força que tinha, ela tentou então cravar as unhas de ambas as mãos nos braços que a prendiam, mas, quando se esforçou para isso, apercebeu-se subitamente de que perdia forças. Era como se os músculos dos braços e do pescoço estivessem a perder a reação. No início, pensou que poderia ser cansaço por estar a fazer um esforço sobre-humano, mas a sensação foi progredindo sem parar. Rapidamente, as mãos perderam o controlo sobre os braços que lhe envolviam o pescoço. Depois, ainda mais assustador, deu por si a lutar por respirar.

Com a pouca força que lhe restava, Sue tentou mais uma vez gritar, mas não lhe saiu nenhum som, e, com um rugido agonizante aos ouvidos, perdeu a consciência…

CAPÍTULO 1

Terça-feira, 7 de dezembro, 6h45

Sem dar nas vistas, o doutor Jack Stapleton esforçou-se na ligeira subida da West Drive, no Central Park, junto ao açude. Dera-lhe alguma satisfação ultrapassar um grupinho de ciclistas mais jovens e sérios em bicicletas de estrada importadas, todos eles vestidos com roupas justas e extravagantes, a fazer publicidade a todo o tipo de produtos europeus, e calçados com sapatilhas próprias caríssimas. Ele, claro, estava na sua relativamente nova bicicleta Trek, fabricada nos Estados Unidos, que era tão elegante como as outras, mas a sua indumentária era muito diferente. Usava o habitual casaco de bombazina castanho, calças de ganga azuis e uma camisa de cambraia índigo com uma gravata de malha verde-escura. Em vez de calçado próprio, tinha uns ténis Nike. A sua única concessão aos sete graus que se faziam sentir eram luvas e cachecol.

Como fizera praticamente todas as manhãs desde que chegara a Nova Iorque para começar uma vida nova, e a segunda carreira médica de médico-legista da cidade de Nova Iorque no Instituto de Medicina Legal, ou IML, Jack servia-se da bicicleta para se deslocar da residência no Upper West Side para o lado leste da cidade. Era um meio de transporte muito diferente de quando ele era um oftalmologista conservador do Centro Oeste. Nessa altura, conduzia um Mercedes para o consultório todos os dias, trajava um fato axadrezado e sapatos cuidadosamente engraxados.

O atual líder do grupo de ciclistas bem equipados reagiu exatamente como Jack imaginara. Teria sido desmoralizante ver um indivíduo de meia-idade, possivelmente quadro superior, ultrapassá-los, por isso Jack levantou-se e começou uma perseguição. Não havia maneira de o ciclista saber que Jack, provavelmente, andava de bicicleta com maior frequência do que ele. No grupo, também não fariam ideia de que Jack jogava ainda um basquetebol exigente quase diariamente, quando o tempo estava de feição, e que por isso se encontrava em excelente forma física. Os restantes ciclistas seguiram o exemplo do líder, levantando-se do selim e pedalando furiosamente.

Entretanto, sem que fosse óbvio, pois não levantara o traseiro do selim, Jack aumentou o esforço de tal forma que a vantagem aumentou ligeiramente, apesar dos esforços mais óbvios dos ciclistas na sua peugada. Minutos depois, quando Jack subiu a colina e iniciou a descida, parou de pedalar e deixou-se ir devagar, o que permitiu ao grupo apanhá-lo e ultrapassar para recuperar a dignidade desportiva.

Em circunstâncias mais normais, Jack teria continuado aquela corrida imprevista até ao extremo sul do parque, onde saía a caminho do trabalho. Porém, nessa manhã em particular, a sua atenção passou de irritar ciclistas «sérios» para refletir sobre a Brooks School por onde passava à direita, na Central Park West. Era onde o filho, JJ, estava matriculado no quinto ano. Como se fosse ontem e com pesar compreensível, Jack lembrava-se da sua desastrosa ida lá, dois anos antes, quando Laurie, a sua mulher, lhe pedira para falar com a direção, em seu lugar, sobre a eventual necessidade de JJ tomar Adderall para a PHDA, depois de o rapaz se ter envolvido em brigas no recreio.

O que fazia de Jack um substituto impróprio para Laurie, nessa demanda, era o facto de estar absolutamente convencido de que não havia nada de atípico em JJ. E combinava essa realidade com a sua crença numa espécie de conspiração entre a indústria farmacêutica e a indústria da educação, que lhe pareciam ambas demasiado ansiosas por iniciar os miúdos no que era, essencialmente, speed, transformando-os em drogados incipientes. Infelizmente, garantira que a Brooks School soubesse exatamente o que ele sentia. Por conseguinte, incompatibilizara-se com a direção da escola, que ameaçou expulsar JJ. Por fim, Jack aceitou — com a insistência de Laurie — que JJ fosse, pelo menos, avaliado por um psiquiatra, que concordara com o diagnóstico, mas, felizmente, nessa altura isso já não importava. O processo de avaliação demorara tempo suficiente para ser evidente para todos que JJ já não exibia comportamentos duvidosos no recreio. Assim, a insistência da escola na medicação caiu no esquecimento — pelo menos, até à semana anterior, quando JJ tivera outra briga no recreio. De repente, todo o assunto tinha voltado à tona, e era a razão pela qual Jack estava agora a caminho do IML tão cedo. Na noite anterior, Laurie e a mãe desta, Dorothy, tinham insistido com ele, pois defendiam ambas a medicação para a PHDA. Acordando muito antes do despertador, e não querendo sujeitar-se novamente a mais pressão antes de repensar todos os prós e contras da situação, Jack decidira sair de casa antes que mais alguém acordasse.

O percurso normal de Jack tê-lo-ia levado ao canto sudeste do Central Park, mas, devido ao acentuado aumento do recurso a bicicletas em Manhattan, fomentado por um misto de tráfego de veículos demasiado intenso, a pandemia de covid-19 e o advento da bicicleta elétrica, as ciclovias proliferaram consideravelmente. O resultado era que a sua deslocação passava a ser consideravelmente mais rápida e segura, embora Laurie duvidasse desta última vantagem. Agora Jack saía do parque no canto sudoeste para Columbus Circle. A partir daí, seguiu a ciclovia para sul, numa combinação da Broadway e da Seventh Avenue, até à 30th Street. Felizmente, a 30th Street também tinha ciclovia, embora não fosse tão segura, dado ser apenas uma faixa pintada no passeio ao lado dos carros estacionados. O destino de Jack era a esquina da 30th Street com a First Avenue, onde ficava o antigo edifício do IML que ainda albergava a sala de autópsias.

Enquanto Jack seguia para leste na 30th, o pensamento voltou ao papel da sogra, Dorothy. Reconhecia que ela evocava uma séria ambivalência no seu raciocínio. Em relação à filha, Emma, a quem tinha sido diagnosticado autismo uns anos antes, Dorothy desempenhara um papel positivo. Encarregara-se de organizar e gerir as complicadas entrevistas, escolher e marcar depois os horários dos terapeutas comportamentais, terapeutas da fala e fisioterapeutas que eram responsáveis pelo impressionante progresso de Emma. Todavia, nem a melhoria da filha ficava isenta de alguma controvérsia. Jack estava inclinado a matricular Emma numa escola especializada para crianças no espectro do autismo que ficava perto da Brooks School. Mas Dorothy discordava e, até à data, convencera Laurie do seu ponto de vista.

Pior do que o ligeiro desacordo na situação de Emma era a posição contínua de Dorothy contra as vacinas, uma vez que continuava a insistir que fora a vacina VASPR a causa do autismo de Emma, embora essa possibilidade tivesse sido cientificamente refutada. Continuando a piorar, a posição antivacinas estendera-se à vacina contra a covid-19 e, independentemente do que Jack ou Laurie dissessem, Dorothy recusava vacinar-se. Para cúmulo desta atitude intransigente, Dorothy praticamente mudara-se para o segundo quarto de hóspedes, logo depois de o marido, o severo pai de Laurie, cirurgião cardíaco, ter falecido três meses antes, em setembro.

Em várias ocasiões, Jack tentara abordar a questão de estabelecer um prazo adequado para Dorothy voltar para a sua espaçosa casa na Park Avenue, mas Laurie nem queria falar disso. Era sua convicção que Emma estava a beneficiar muito com a presença constante da avó por perto, e que Dorothy ainda se encontrava demasiado frágil para voltar para um apartamento vazio.

Em suma, Jack sentia que ficava sempre de fora, especialmente estando Laurie a agir cada vez mais enquanto chefe, tanto no trabalho como em casa. Não querendo forçar a questão e possivelmente causar transtorno no frágil ambiente doméstico, Jack procurava trabalhar para ocupar a mente e as emoções. Precisava de arranjar um caso difícil para monopolizar o pensamento. Já dera resultado no passado; investigar a morte de um osteopata ajudara-o a lidar com o diagnóstico de neuroblastoma de JJ, quando o rapaz era bebé. Uma das vantagens de ser médico-legista era todos os dias serem diferentes e haver sempre a possibilidade de se confrontar com uma circunstância desconcertante. Ele e Laurie certamente tinham provado isso ao longo dos anos, sem dúvida.

Depois de esperar pelo sinal verde para atravessar a First Avenue na esquina com a 30th Street, Jack desceu ao longo do velho edifício do IML que há muito ultrapassara a sua utilidade. Fora construído há mais de meio século e, nessa altura, era tecnologia de ponta. Agora já não era nada disso. Aliás, era extremamente necessário um novo edifício de autópsias, com gabinetes para os médicos-legistas e o Departamento de Toxicologia. Estava para ser edificado perto do novo altíssimo IML quatro quarteirões a sul, mas a obra encontrava-se atrasada devido a problemas orçamentais. Era um dos principais projetos da sua mulher, no papel de Diretora da Medicina Legal da cidade de Nova Iorque, e ela contava com o novo presidente da câmara, que tomaria posse em breve, para lhe dar luz verde.

Ao alcançar a zona de receção onde os cadáveres chegavam e partiam, Jack passou por entre as carrinhas Mercedes Sprinter estacionadas, içando a bicicleta ao ombro enquanto subia as escadas laterais para a plataforma.

Depois, com a bicicleta pela mão, passou pelo gabinete da segurança e acenou aos guardas, que estavam ocupados no processo de
mudança de turno. Jack fez o mesmo ao passar pelo gabinete dos técnicos da casa mortuária. À esquerda, onde ficavam os caixões de Hart Island para cadáveres não reclamados, Jack prendeu a bicicleta e o capacete com um cadeado de cabo a um tubo de suporte. Ele era o único que se deslocava de bicicleta para o trabalho, e não havia nenhum sítio oficial onde as prender. Ali perto ficava a sala de autópsias, escura e isolada, para cadáveres em decomposição.

Ansioso por ver se a noite trouxera novos casos, Jack subiu um andar, passou pela sala da síndrome da morte súbita infantil e entrou na parte da área de identificação, onde o dia começava para o IML. Passava um pouco das sete da manhã.