Portugal é um país masoquista. Temos um género musical, o fado, onde a amargura é cantada com uma alegria prenhe de saudade por aquilo que se perde e não volta. Temos um mito em D. Sebastião, sobre o qual julgamos ainda que voltará, numa manhã de nevoeiro, para erguer novamente o país a patamares dos quais nos possamos orgulhar. E temos Benjamin Clementine, homem nascido em Londres mas radicado em França, que uma vez mais nos deu rosas numa relação que promete perdurar.

Há muitos anos, o patrão da mítica Factory Records, Tony Wilson, dizia sobre Vini Reilly (The Durutti Column) que a fatia maior do seu público se encontrava em Portugal (e sim, também há amargura saudosista das suas canções, e sim, também gostávamos muito dele). O mesmo se poderá aplicar a Clementine, que depois de uma primeira estreia (2015) e de uma mini-digressão pelo país (no mesmo ano) uma vez mais veio até nós para apresentar, desta feita, as canções de “I Tell A Fly”, segundo álbum ainda por editar – sai em setembro.

O anglo-francês, que durante a tarde deu uma conferência de imprensa no Centro Cultural de Paredes de Coura, onde afirmou que gostaria de vir a morar em Portugal, deverá ter sido o principal responsável pela enchente que se verificou neste último dia do Vodafone Paredes de Coura: tanto os passes gerais como os bilhetes diários se encontravam esgotados. Ao piano, acompanhado por banda e por um coro, Benjamin Clementine foi espalhando uma música melancólica, com garra sofredora, lamento poético pela saudade e, até, grito contra essa mesma saudade. Sim, gostamos – Portugal – mesmo muito dele. Está-nos nos genes.

Das novas canções, ficaram na memória uma sobre um tal “Billy the Bully”, tema autobiográfico (Clementine foi vítima de bullying na escola), e “God Save the Jungle”, onde a selva é citadina, caótica, bombas caindo em guetos repletos de sofredores. No novo álbum, que também foi apresentado à imprensa em primeira mão naquela mesma conferência, é o cravo a ditar as suas regras por oposição ao piano; diz o músico que foi em nome de um som mais “europeu”. Inglês, francês e negro, Benjamin Clementine há de ser um dos expoentes da Europa livre e sem fronteiras, dos seus ideais de confraternização e amor. Mesmo que, aqui e ali, alguns teimem em construir muros.

Num concerto que mais soou a uma longa valsa triste pela ausência, com laivos do Tom Waits de discos como “Bone Machine”, tanto a nível dos vocais como do instrumental, Clementine foi abençoado com efusividade por parte de um público apaixonado. Cantou-se o seu nome, ele correspondeu com “Portugal!”. Acenderam-se as lâmpadas costumeiras e oferecidas como brinde. Cantou-se a letra de “Condolence”, o que muito o espantou – e que o levou a puxar por estes milhares de pessoas, a quem pediu que enviassem “os seus pêsames ao medo”, de olhos bem fechados para que o mundo não se abatesse sobre a paz. Em Coura, como o foi no Coliseu, na Casa da Música, ou em Faro, Aveiro e Coimbra, Benjamin Clementine foi um lavar da alma. Continuaremos apaixonados por ele. Claro que continuaremos.

Se Benjamin Clementine fez de psicólogo, os Lightning Bolt foram a droga que faltava a um festival eclético, que não faz de género algum bandeira mas que bebe de variados sítios. No palco secundário, a dupla norte-americana não tocou pop, não tocou rock, não tocou eletrónica; tocou isto tudo mas tocou sobretudo um barulho intenso, demolidor, de punho erguido aos céus e braços encadeados como um animal selvagem em auto-estrada. Uma hora de terremoto serviu para muitos se entregarem à fisicalidade do mosh e, até – tal como este mesmo escriba – ao crowdsurf. O som a isso obrigava. Estando em contexto de festival, não foi possível observar os Lightning Bolt a tocar no meio do público, como tantas vezes o fizeram – incluindo no parque de estacionamento do Parque de Camões, em Lisboa, 2008 –, mas a jarda verificada deixou todo um público sedento de ruído mais que satisfeito. Grandioso? É favor.

Ty Segall procurou ser grande, mas depois de um monstro como os Lightning Bolt era difícil aumentar o volume rock em Paredes de Coura, se bem que o norte-americano se tenha mostrado em forma. Autor de alguns dos melhores discos do género dos últimos dez anos e homem dotado de uma energia e criatividade imensas, já que nenhum riff, com ele, soa reciclado, o norte-americano esteve em modo fast forward e debitou eletricidade atrás de eletricidade, em movimento quase grunge, e que muita poeira fez levantar, tal como os Japandroids o haviam feito na noite anterior. Rock e Segall, no século XXI, arriscam-se a ser quase sinónimos. Assim como Manel Cruz foi sinónimo de poética gandula, ele que não interpretou quaisquer canções dos Ornatos Violeta, preferindo apresentar-se em registo chill out e em tronco nu (o que muito fez as delícias das meninas), e assim como os Foxygen elogiaram os mesmos genes que levam os portugueses a gostar de Benjamin Clementine, sendo nós para eles «mais bonitos que os franceses» e capazes de, um dia, «entrar num filme de Hollywood». Quem somos nós para duvidar de quem escreve canções como “San Francisco”?

Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Mal terminam os Foals, depois de um concerto energético que muito agradou aos fãs, uma vez mais são dados os parabéns ao festival de Paredes de Coura, com serpentinas caindo sobre o público e “All My Friends”, tema mítico dos LCD Soundsystem, a dar voz ao sentimento primário que faz mover o evento: o de que este é um festival de e para os amigos. A 26ª edição, essa, já tem datas: 15, 16, 17 e 18 de agosto.

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