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Newsletter diária • 09 jun 2022

 
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Paula Rego: uma “obsessão” em contar histórias — a nossa história

 
 

Edição por Tomás Albino Gomes

Paula Rego deixou-nos hoje, aos 87 anos, rodeada da sua família. A última vez que Ana Viegas e a pintora se cruzaram foi em agosto de 2021. “Fui a Londres para os anos de uma amiga em comum e fui visitar a Paula. Encontrei-a já bastante em baixo, mas com obsessão total da pintura, de ir trabalhar, de quando é que vinha a Lila, quando é chegava a Lila, a sua modelo preferencial, para poder trabalhar — ela costumava ir ter com a Paula à tarde. Ainda com o olho muito vivo, mas já muito abatida”, conta.

Um mês antes, tinha tornado real um dos seus maiores sonhos como artista: expor no museu Tate Britain, em Londres, uma casa de exposições que sempre viu como um baluarte masculino.

Ali apresentou uma exposição retrospetiva — com mais de 100 obras dos seus 60 anos de carreira — um feito simbólico que Paula Rego conquistou, já que sempre se tinha sentido discriminada por não poder ali levar a sua obra, sendo mulher e estrangeira.

Acabou por ser a mais completa exposição de Paula Rego no Reino Unido, incluindo, além da pintura, esculturas, colagens e desenhos, desde os anos 1950, até aos mais recentes. A mostra incluiu a série "Mulher Cão", dos anos 1990, e “Aborto”, uma das que mais impacto político e social tiveram em Portugal, produzida durante a campanha pela despenalização da interrupção da gravidez no país.

Foi uma exposição que podia ser quase uma biografia, de Paula e do que a rodeou, de Paula e do que a antecedeu, de Paula e do que a indignou. O artista plástico português José de Guimarães, que chegou a cruzar-se várias vezes com a artista, inclusive em Londres, para onde Paula Rego foi viver em 1952, relembra a colega como "uma contadora de histórias, uma contadora sofisticada de histórias" que criou "uma obra bastante singular", "fora do comum", com "uma 'maldadezinha' na alma naquelas coisas".

As últimas palavras do parágrafo são ponte perfeita para um momento do documentário de 2017 "Paula Rego, Histórias & Segredos", da autoria do filho mais novo, Nick Willing, quando John McEwen, amigo e autor dos catálogos "Paula Rego" e "Victor Willing" diz: "A Paula tem uma espécie de poder mágico. Conheço pessoas que posam para a Paula com uma rigidez de puro susto porque ela lança feitiços sobre as pessoas, não é? Se não gosta de nós e nos põe num quadro, temos de ter cautela".

Basta ver o documentário e ter ido, pelo menos, a uma exposição da artista para perceber estas palavras. A própria dizia que exorcizava os males através da pintura, as suas angústias, um processo que tinha para aliviar a dor e expô-la ali, noutras formas, com a possibilidade de serem entendidas das mais diferentes formas por quem as visse.

A interpretação dos quadros era algo que a fascinava. Conta numa entrevista ao Expresso: "Nos quadros é que a gente vê qual é a história. Partimos para eles com a história que conhecemos e depois acontece sempre qualquer coisa que nos faz mudá-la. É um processo extraordinário que ainda hoje me espanta. Como é que foi possível? O que é que me passou pela cabeça? Por exemplo, há uma coisa que nunca percebi. Uma vez fiz um quadro, há muitos, muitos, muitos anos, que era o “Salazar a Vomitar a Pátria” [1960]. Era uma obra mais abstrata do que as que pinto normalmente, uma bola, umas pernas e um vómito. Depois de o fazer comecei a ter uma pena do Salazar, veja lá, que coisa tão estúpida! Ele era um homem terrível, mas comecei a ter pena dele. Quando acabei o quadro fiquei espantada com o que tinha feito, com a maneira como tinha desenhado aquele homem terrível. Os quadros chegam a surpreender-me".

Maria Paula Figueiroa Rego nasceu em Lisboa a 26 de janeiro de 1935 numa família de tradição republicana e liberal, começou a desenhar ainda criança, um talento que lhe foi reconhecido pelos professores da St. Julian's School, em Carcavelos, e partiu para a capital britânica com 17 anos, para estudar na Slade School of Fine Art. Esta é parte da sua história.