“O que recordo da Paula, totalmente, era a obsessão. Ela mergulhava completamente, neste caso, em azulejo. Ela mergulhava completamente, tinha uma capacidade de se concentrar naquele quadradinho e de produzir e de organizar todo aquele espaço de uma maneira perfeitamente mágica. Ela estava ali, era ela e o trabalho. Não havia mais nada que a distraísse. Era obsessiva a trabalhar. Totalmente. Até o ano passado ia para o atelier dela — e não sei se não foi este ano. Portanto, a obsessão dela era o trabalho. Ela tinha de deitar aquelas coisas cá para fora. Isso era vital para ela”, conta Ana Maria Viegas.

A fundadora da Galeria Ratton, dedicada às cerâmicas e com grande destaque para o azulejo, começou a trabalhar com a pintora portuguesa em 1987. Paula Rego fez parte do primeiro grupo de artistas daquela casa, juntamente com Bartolomeu Santos, Júlio Pomar, Menez e Lurdes Castro. “Costumava brincar com ela, dizia que era a última resistente daquele primeiro grupo”, recorda Ana Viegas.

No final dos anos 90, lançou-lhe o desafio, através de Fernando Mascaranhas, proprietário do Palácio Marquês de Fronteira, em São Domingos de Benfica, Lisboa, de completar os azulejos que limitam o Jardim Formal do palácio. Os painéis representam os Quatro Elementos, mas um deles, o que representa o Fogo, perdeu-se e a pintora portuguesa foi convidada a completá-lo, uma tarefa a que se entregou de alma e coração, com Ana a ir buscá-la à sua casa no Estoril, naquele verão, todos os dias para pintar.

Paula Rego deixou-nos hoje, aos 87 anos, rodeada da sua família. A última vez que Ana Viegas e a pintora se cruzaram foi em agosto de 2021. “Fui a Londres para os anos de uma amiga em comum e fui visitar a Paula. Encontrei-a já bastante em baixo, mas com obsessão total da pintura, de ir trabalhar, de quando é que vinha a Lila, quando é chegava a Lila, a sua modelo preferencial, para poder trabalhar — ela costumava ir ter com a Paula à tarde. Ainda com o olho muito vivo, mas já muito abatida”, conta.

Um mês antes, tinha tornado real um dos seus maiores sonhos como artista: expor no museu Tate Britain, em Londres, uma casa de exposições que sempre viu como um baluarte masculino.

Ali apresentou uma exposição retrospetiva — com mais de 100 obras dos seus 60 anos de carreira — um feito simbólico que Paula Rego conquistou, já que sempre se tinha sentido discriminada por não poder ali levar a sua obra, sendo mulher e estrangeira.

Acabou por ser a mais completa exposição de Paula Rego no Reino Unido, incluindo, além da pintura, esculturas, colagens e desenhos, desde os anos 1950, até aos mais recentes. A mostra incluiu a série "Mulher Cão", dos anos 1990, e “Aborto”, uma das que mais impacto político e social tiveram em Portugal, produzida durante a campanha pela despenalização da interrupção da gravidez no país.

Foi uma exposição que podia ser quase uma biografia, de Paula e do que a rodeou, de Paula e do que a antecedeu, de Paula e do que a indignou. O artista plástico português José de Guimarães, que chegou a cruzar-se várias vezes com a artista, inclusive em Londres, para onde Paula Rego foi viver em 1952, relembra a colega como "uma contadora de histórias, uma contadora sofisticada de histórias" que criou "uma obra bastante singular", "fora do comum", com "uma 'maldadezinha' na alma naquelas coisas".

As últimas palavras do parágrafo são ponte perfeita para um momento do documentário de 2017 "Paula Rego, Histórias & Segredos", da autoria do filho mais novo, Nick Willing, quando John McEwen, amigo e autor dos catálogos "Paula Rego" e "Victor Willing" diz: "A Paula tem uma espécie de poder mágico. Conheço pessoas que posam para a Paula com uma rigidez de puro susto porque ela lança feitiços sobre as pessoas, não é? Se não gosta de nós e nos põe num quadro, temos de ter cautela".

Basta ver o documentário e ter ido, pelo menos, a uma exposição da artista para perceber estas palavras. A própria dizia que exorcizava os males através da pintura, as suas angústias, um processo que tinha para aliviar a dor e expô-la ali, noutras formas, com a possibilidade de serem entendidas das mais diferentes formas por quem as visse.

A interpretação dos quadros era algo que a fascinava. Conta numa entrevista ao Expresso: "Nos quadros é que a gente vê qual é a história. Partimos para eles com a história que conhecemos e depois acontece sempre qualquer coisa que nos faz mudá-la. É um processo extraordinário que ainda hoje me espanta. Como é que foi possível? O que é que me passou pela cabeça? Por exemplo, há uma coisa que nunca percebi. Uma vez fiz um quadro, há muitos, muitos, muitos anos, que era o “Salazar a Vomitar a Pátria” [1960]. Era uma obra mais abstrata do que as que pinto normalmente, uma bola, umas pernas e um vómito. Depois de o fazer comecei a ter uma pena do Salazar, veja lá, que coisa tão estúpida! Ele era um homem terrível, mas comecei a ter pena dele. Quando acabei o quadro fiquei espantada com o que tinha feito, com a maneira como tinha desenhado aquele homem terrível. Os quadros chegam a surpreender-me".

Voltando ao início, Maria Paula Figueiroa Rego nasceu em Lisboa a 26 de janeiro de 1935 numa família de tradição republicana e liberal, começou a desenhar ainda criança, um talento que lhe foi reconhecido pelos professores da St. Julian's School, em Carcavelos, e partiu para a capital britânica com 17 anos, para estudar na Slade School of Fine Art.

Em Londres aprendeu a técnica que lhe faltava e que desejava dominar. “Todo o risco é muito importante. A pressão, o riscar, que tem também a ver com o ferir. Todo o trabalho, desde o princípio, envolve desenho, mais do que pintura. O traço tem de dizer qualquer coisa, senão seriam riscos e gatafunhos, e eu não faço riscos e gatafunhos. Já fiz, mas agora não faço”, sublinha em entrevista a Anabela Mota Ribeiro.

Com as ferramentas necessárias começou a traduzir nas telas histórias, desde a relação com a mãe, uma mulher "capaz de desenhar qualquer coisa", que dizia ser "vítima da sociedade em que viveu" e que foi sempre uma figura conservadora e opressiva quanto ao que Paula ainda não sabia que queria ser: uma artista.

Mais tarde, abordaria temas muito à frente do seu tempo, começando pelo aborto, com a série de quadros do mesmo nome, que foram expostos na Fundação Calouste Gulbenkian, a propósito do primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez em 1998, que teve um resultado nulo, por falta de participação nas urnas.

Na sequência daquele que considera, no documentário, "ser a melhor coisa" que fez "porque são profundamente verdadeiros", os quadros, surge uma tristeza profunda de ver, à distância, o seu país perder mais nove anos até legalizar o procedimento —  isto vindo de uma mulher que assumiu por várias vezes ter feito vários abortos quando era estudante.

A saúde mental também teve um grande espelho na sua obra. A própria confessa: "sempre sofri de depressão". Esses quadros, desenhados durante uma depressão "particularmente severa" que sofreu entre 2006 e 2007, estiveram vários anos guardados numa gaveta,"por vergonha", tendo sido exibidos pela primeira vez na sequência das gravações do documentário produzido pelo filho. Este confessou, numa entrevista ao The Guardian, que apesar de saber da existência dos desenhos, só os viu ali pela primeira vez. Eram um exorcismo escondido.

O marido, o artista britânico Victor Willing, foi também tema dos seus quadros, tanto quanto foi tema central da sua vida. Conheceu-o quando estudava na Slate, apaixonou-se por ele quando este era casado com a bailarina Hazel Whittington, foi sua amante e viu deixá-la quando engravidou da primeira filha.

"O pai dos meus filhos era casado. Um dia, estava eu sozinha em casa, ele telefonou-me. Disse-me: “Olha, vou voltar para a minha mulher. Já não te vejo mais”. Fiquei passada. Ele sabia que eu estava grávida. Então telefonei ao meu pai a contar-lhe. Ele respondeu-me: “Não te importes. Estou aí daqui a dois dias"", conta ao Expresso.

"Foi ter comigo e fomos os dois ao Soho beber Coca-Cola. E falar, falar, falar. Depois voltámos para baixo, para Portugal, de carro, a comer bem, muito contentes os dois. A ouvir ópera. Viemos para casa e pronto". Paula, todavia, reconciliou-se com Willing. "Depois tudo se resolveu e viemos a casar [1959]", continua.

Com ele teve três filhos, Caroline, Victoria e Nick Willing e uma vida. "Era [o amor da minha vida] Foi uma paixão de doidos. Era uma pessoa extraordinária, intelectualmente muito inteligente. (...) Estimulava[-me artisticamente], mas mais do que isso ajudava-me. Ele morreu de esclerose múltipla [1988], que é uma coisa horrível, ficou paralítico na cama, sem poder andar. Mas eu tratei dele sempre. Estava ele na cama e eu trazia-lhe os quadros para lhe mostrar. Pendurava-os na parede à frente dele, e ele dizia o que achava. “As figuras estão muito bem, a encenação também está muito bem, mas as mobílias que estão à volta são uma porcaria. Pinta isso tudo de novo!” E eu ia pintar", revela na mesma entrevista.

Foi também a partir do marido, de uma infelicidade do marido, que assume e leva à falência a empresa que era do pai da artista, deixando-os em severas dificuldades financeiras. É aqui que Paula Rego pede uma bolsa à Fundação Calouste Gulbenkian para fazer pesquisa sobre contos infantis, em 1975. As histórias, a forma como as via, da crueldade à beleza, passando pelo sarcasmo e pela dureza, viriam a ser parte fulcral do seu espólio.

As histórias, reais ou imaginadas, acompanharam a vida da pintora Paula Rego, exercendo um fascínio que começou na infância, quando a tia lhas contava, e inspirou os seus quadros, reconhecidos a nível mundial. Sempre que surgia em cerimónias públicas, a artista portuguesa reiterava a importância das histórias para as pessoas se compreenderem a si próprias e ao mundo.

"[Com as histórias] pode-se castigar quem não se gosta e elogiar quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo", comentou, um dia, na inauguração de uma das suas exposições, no seu museu, em Cascais, ao que chamou exatamente Casa das Histórias.

A obra da pintora raras vezes deixa um espectador indiferente, apreciadores ou não da estética do seu trabalho, marcado pela realidade da condição feminina, pelas injustiças sociais e pela recusa da opressão em todas as suas formas.

O valor internacional da sua obra evidenciou-se sobretudo em 2015 com a venda, num leilão, em Londres, da obra "The Cadet and his Sister" (1988) (“O cadete e a sua irmã”, em tradução do inglês), por 1,6 milhões de euros, tornando-se um novo recorde da artista portuguesa. A data da obra assinala um importante acontecimento na vida pessoal da pintora na década de 1980, a já mencionada morte de Victor Willing (1928-1988).

Esse ano foi de grandes perdas, mas também de grandes ganhos para a carreira de Paula Rego, pois passou a ser representada pela galeria Marlborough Fine Art, em Londres, e distinguida com uma grande retrospetiva do seu trabalho pela Serpentine Gallery, na capital britânica.

Na pintura de Paula Rego surgem diversas imagens típicas da infância, por vezes fetichistas e até traumáticas, relacionadas com a violência, e os animais são frequentemente os protagonistas da sua linguagem pictórica.

Nas últimas décadas, a pintora abordou temas políticos, como o abuso de poder, e sociais, como o aborto — entre outros, do universo feminino, e o seu trabalho foi influenciado pelos contos populares, e também pela literatura, nomeadamente a escrita de Eça de Queirós, que a levou a pintar quadros inspirados em livros como “A Relíquia” e “O Primo Basílio”.

É a história de uma mulher e de várias mulheres, a história política de um país. É o papel da mulher, condição que nunca a teria permitido ser a artista que foi se tivesse ficado em Portugal, como conta. “Tens de sair deste país. Não é país para mulheres.”, ouviu cedo o pai dizer-lhe. Mas acima de tudo, é a história de uma obsessão e uma devoção à pintura. José de Guimarães, quando a recordou, sublinhou a memória de como Paula pintava: "Eu lembro-me perfeitamente, por exemplo, as telas grandes que fazia antigamente eram pintadas no chão. Ela punha uma almofada, ia de joelhos e ia pintando. 'Já viu o nosso sacríficio'?"

O documentário realizado pelo filho termina precisamente com a artista a sorrir quando Nick lhe relembra que um dia lhe disse que "o trabalho é a coisa mais importante da vida". Não será por acaso que alguém que olha assim para o que fez tenha criado um quadro, "O Anjo", para proteger as mulheres grávidas que desenhou noutro quadro "A Gaiola", personagens por quem tremeu por saber que iriam sofrer com a perda do aborto.

Foi através das personagens e desenhos que criou que conseguiu dos maiores reconhecimentos que uma pessoa e uma artista podem receber em vida. Em 2010, foi ordenada Dama Oficial da Ordem do Império Britânico pela rainha Isabel II e, em Lisboa, recebeu o Prémio Personalidade Portuguesa do Ano atribuído pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal.

Estes foram talvez dos mais importantes prémios que agraciaram Paula Rego, mas não os únicos. A pintora recebeu, em 1995, as insígnias de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, em 2004 a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, e em 2011 o doutoramento ‘honoris causa’ da Universidade de Lisboa, título que possui também de várias universidades no Reino Unido, como as de Oxford e Roehampton.

Jorge Sampaio
Jorge Sampaio Retrato de Jorge Sampaio créditos: Autor: Paula Rego // © Museu da Presidência da República

Para incentivar os jovens estudantes a desenhar, em 2016 foi criado o Prémio Paula Rego, galardão anual para atribuir a estudantes da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Já em 2019, foi distinguida com a Medalha de Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura.

Em novembro de 2021, também a Galeria 111, que, recordemos, representou a pintora em Portugal desde o início da carreira, organizou uma exposição em sua homenagem, e da "relação de amizade e cumplicidade", que titulou "Saudades", com 27 obras que revisitam o seu percurso artístico desde os anos 1980 até trabalhos mais recentes, provenientes do atelier da pintora, em Londres.

Já este ano, a sua obra foi alvo de outro reconhecimento por parte da curadoria-geral de um dos certames mais importantes de arte contemporânea do mundo: A Bienal de Arte de Veneza, com o tema "The Milk of Dreams", que privilegiou o trabalho de artistas mulheres.

Cecilia Alemani, curadora geral da 59.ª Exposição Internacional de Arte Bienal de Veneza, escolheu a pintora como uma das âncoras da exposição-geral, reunindo numa sala azul do Pavilhão Central, nos Giardini, obras em pintura, gravuras e esculturas. Em entrevista à agência Lusa uma semana antes da inauguração, em abril, a curadora considerou Paula Rego uma "artista completa" que "só agora" começou "a ter o devido reconhecimento".

Paula Rego "é alguém que, ao longo de cinco décadas, tem dedicado o seu trabalho a temas e ideias muito fortes, a aspetos das nossas sociedades que foram obscurecidos e ignorados, cancelados, censurados, desde questões políticas, de género, liberdade de expressão, direitos das mulheres. São temas que aborda de forma muito direta e original", salientou Cecilia Alemani sobre a artista.

Será legítimo, perante a obra, o documentário, este texto ou qualquer entrevista da artista, o leitor perguntar-se o que é verdadeiro e o que não é. Afinal é uma história grande, contada em traços exagerados, grossos, estrambólicos, mas é a história completa de Paula. E tanto quanto sabemos, naquele imaginário, aconteceu tudo exatamente assim — mesmo o que pode não ter acontecido — seja no momento, na recordação ou nas memórias de criança onde ela as colocava para as ver, antes de as pintar.

E é difícil ficar indiferente. Prova disso foi quando, já no início deste século, o Jorge Sampaio — à época Presidente da República — convidou a pintora a pensar e produzir um trabalho artístico para a capela do Palácio de Belém, encomenda da qual resultou o Ciclo da Vida da Virgem Maria: oito quadros, a lápis pastel, que retratam os momentos mais importantes de Maria, e que a artista ofereceu ao Palácio de Belém. Como podemos imaginar, não foi o típico trabalho que se espera ver numa igreja, com a artista a assumir uma interpretação contemporânea das cenas. "Toda a gente dizia que o trabalho não seria aceite, que eu teria um grande problema. Liguei então à hierarquia da Igreja, liguei ao Cardeal-Patriarca, vimos os quadros e ele ficou muito impressionado", relembra Jorge Sampaio em "Paula Rego, Histórias & Segredos". O esforço e o carinho pela pintora não surpreendem — foi a ela que Sampaio pediu o seu retrato da presidência.

Hoje esta história chegou ao fim, fica a obra, os fragmentos da imaginação, visão e intervenção de Paula Rego, e os seus ecos. Da sua infância até ao céu.