É difícil de descrever o que aconteceu hoje no estádio do Jamor, casa emprestada do Belenenses SAD. A equipa da casa, que conta com 17 elementos infetados, entre jogadores, equipa técnica e ‘staff’, e com outros tantos em isolamento profilático devido a recomendação das autoridades de saúde, apresentou-se em campo com apenas nove jogadores: sete da equipa sub-23, dois deles guarda-redes e nenhum avançado.
Quando o jogo começou, a indignação era compreensível. Porque é que se estava a jogar um jogo nestas condições? Um jogo que, a acontecer, só poderia ter como resultado uma goleada das águias.
Por volta da hora de almoço, Rui Pedro Soares, o presidente dos ‘azuis’, deu uma conferência de imprensa em que revelou que, mesmo perante a situação altamente adversa, que “o Belenenses SAD não pediu o adiamento do jogo, nem ao Benfica, nem à Liga, nem às autoridades de saúde".
"Não houve pedido, nem recusa, nem acordo. Não houve nada. Isso não aconteceu, nem vai acontecer”, esclareceu.
“Temos 38 jogadores inscritos. Confiamos em todos e, se os inscrevemos, é porque consideramos que têm valor para jogar. A decisão é das autoridades de saúde, em quem confiamos plenamente. Quando a decisão for tomada, vamos respeitá-la”, disse.
Rui Pedro Soares lembrou ainda a altura em que o Benfica teve um surto no plantel e foi a jogo frente ao Nacional, na última edição da I Liga: “O Benfica pediu o adiamento, o Nacional não aceitou e o jogo realizou-se. Três dias depois, decorreu um Benfica-Belenenses SAD para a Taça de Portugal, o Benfica pediu o adiamento e o Belenenses SAD aceitou. No entanto, veio a ser realizado porque o Marítimo não deu a aprovação para o adiamento. Não temos nada a ver com as decisões tomadas por outros clubes.”
Como prometido e sem conhecimento de posição contrária quer do delegado de saúde, quer do Benfica, quer da liga, o Belensens SAD entrou em campo.
Dos nove atletas dos ‘azuis’ aptos, dois deles eram guarda-redes – João Monteiro e Álvaro Ramalho -, o que implica que o primeiro tenha alinhado como jogador de campo, frente a um Benfica que se apresentou na máxima força, enquanto o segundo foi o capitão.
O lateral direito Diogo Calila era o jogador mais experiente entre os que jogaram, sendo o habitual suplente de Carraça na presente época, enquanto os centrais Trova Boni e Eduardo Kau também foram titulares – o primeiro iniciou o ano a titular, mas tem jogado na equipa de sub-23, enquanto o segundo apenas efetuou três partidas pela equipa principal do Belenenses SAD, todas já na ‘longínqua’ temporada de 2019/20.
Também dos sub-23, o defesa Henrique Pires e os médios Rafa Santos – o mais velho em campo, com 24 anos - e António Montez completaram o ‘nove’ titular do Belenenses SAD.
Os ‘azuis’ não tinham qualquer futebolista no banco de suplentes.
Já o Benfica fez alinhar Vlachodimos na baliza, um trio de centrais com André Almeida, Otamendi e Vertonghen, com Lázaro e Grimaldo a jogar pelos flancos. No ‘miolo’, estavam, como habitualmente, Weigl e João Mário, atrás dos avançados Rafa, Darwin e Seferovic.
Ao intervalo o jogo estava 0-7 (1' autogolo de Kau, 14' Seferovic, 27' Weigl, 32' Darwin, 36' Darwin, 39' Seferovic, 45' Darwin), um resultado que causava menos surpresa do que um jogo de futebol profissional da sexta liga do ranking da UEFA estar a acontecer nestas condições.
O encontro viria a terminar aos 48 minutos, depois de os 'azuis' terem ficado sem o número mínimo de futebolistas. O Belenenses SAD recomeçaram a partida com apenas sete após o intervalo, com a lesão de um elemento a obrigar ao fim do encontro.
Terminada a partida, os presidentes de ambos os clubes esclareceram o que aconteceu, culpando a liga de clubes.
“Termos jogado aqui hoje foi uma vergonha para todos menos para os nove jogadores do Belenenses que se apresentaram em campo. O que se passou aqui hoje foi uma grande vergonha e não há regulamento nem calendário que justifiquem o que hoje aqui se passou”, disse o presidente dos ‘azuis’.
Rui Pedro Soares revelou que a meio da tarde deste sábado comunicou à Liga Portuguesa de Futebol Profissional, mas que o regulamento obrigou o clube a apresentar-se sob pena de vir a ser penalizado com a perda de pontos.
“A meio da tarde comunicámos à Liga que não queríamos realizar o jogo, mas foi-nos dito que tínhamos oito jogadores em condições de ir a jogo, e que se não fossemos seria falta de comparência”, contou o presidente do Belenenses SAD.
Visivelmente alterado, Rui Pedro Soares frisou que aquilo a que se assistiu no Jamor “envergonha o futebol português” e que os únicos que merecem consideração são os jogadores do Belenenses SAD.
“Nunca na minha vida assisti a um comportamento tão digno como aquele a que assisti por parte dos nove jogadores. Em 48 anos já vi muitas atitudes dignas, mas nunca jogadores tão dignos como estes. Eles mostraram a todos o que é ter dignidade”, sublinhou o presidente do Belenenses SAD.
O presidente do Benfica também esteve na sala de conferência de imprensa do Jamor para explicar a posição do clube, garantindo que o emblema da Luz não pode ser responsabilizado pela realização do jogo.
“Quero lamentar o que aconteceu aqui hoje. É uma página negra do futebol português e do país”, começou por dizer o presidente ‘encarnado”, que explicou que “em nenhuma circunstância o Benfica foi tido ou achado para que este jogo se realizasse”.
“O Benfica cumpriu o regulamento, tal como o Belenenses, que foi obrigado a jogar. Devemos estar todos envergonhados, mas o Benfica em nada é responsável por esta página negra. Não nos agradou entrar no campo nestas condições, não dignifica o futebol português, mas não nos coloquem esse ónus. A Liga e a e a DGS não cancelaram o jogo, portanto não cabia ao Benfica essa responsabilidade, e se não nos apresentássemos poderíamos ser nós a ser prejudicados com perda de pontos”, disse Rui Costa.
O presidente do Benfica disse compreender a situação por que passa o Belenenses SAD, recordou que as ‘águias’ viveram cenário semelhante na época passada, e deixou no ar críticas ao regulamento e às autoridades que têm definido os regulamentos.
“Sei o que está a passar o Belenenses e lamento-o profundamente. O Benfica cumpriu o que tinha de fazer, que era apresentar-se em campo, sob pena de perder pontos, mas se tivéssemos falado com tempo, é evidente que teríamos encontrado uma solução. Não deixaria o futebol português passar por esta página se estivesse nas minhas possibilidades. Não gostamos de uma situação destas e sei bem o que os jogadores passaram dentro do campo, mas tive de respeitar a Liga e a DGS”, sublinhou Rui Costa.
A terminar, o presidente do clube da Luz pediu que se defina o caminho para situações semelhantes que possam ocorrer no futuro próximo e lembrou que os próprios jogadores do Benfica foram colocados numa situação de risco ao entrar em campo.
“Não é correto fazer um jogo destes. Afeta o futebol português e o país. Estou triste por ver o que se passou hoje e por ver o meu clube envolvido. Aliás, nós mesmos não sabemos que risco corremos ao estar dentro do campo, pois algum destes nove jogadores do Belenenses SAD pode vir a testar positivo depois de ter estado em contacto com os nossos jogadores”, antecipou Rui Costa.
Não demorou muito até que o que se passou nestes 48 minutos no estádio nacional fosse notícia lá fora. “O jogo que nunca se devia jogar: vergonha mundial em Portugal”, lê-se na página de abertura do sítio do jornal espanhol Marca, com uma imagem dos instantes iniciais da partida. O também espanhol Mundo Deportivo escreve “Vergonha! Belenenses SAD obrigado a jogar com nove contra o Benfica”. Em França, o jornal L’Équipe questiona como é que a partida decorreu numa “noite tão triste quanto incompreensível”, enquanto a estação televisiva inglesa Sky Sports lembra que os “lutadores” pupilos de Filipe Cândido “foram forçados a nomear uma equipa”. A expressão “farsa” é partilhada por outros dois jornais britânicos, com o Guardian a resumir as incidências de um “início caótico” do jogo e o Daily Mail a sublinhar o quão “constrangido” ficou o Belenenses SAD ao “ser forçado a alinhar com nove homens”.
Num período em que o futebol assume a sua dimensão política, que se embandeira para lutar contra o racismo e para promover políticas de saúde pública, que celebra o primeiro jogador profissional assumidamente homossexual, esquece-se do respeito pelo próprio desporto e pelos seus atletas. Sai lesada a modalidade, o Belenenses SAD e a capacidade do futebol português e de todos os que nele participam.
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