Sábado, 17 de fevereiro de 2018, 17h00. O Centro de Congressos de Lisboa dividia-se entre dois eventos. Se de um lado o laranja imperava com o 37.º Congresso do PSD, do outro as cores eram mais sóbrias. Numa faixa branca, uma simples indicação: Faith’s Night Out.
Deixando o rebuliço político, a movimentação da fé. Ainda às voltas, elementos das Equipas de Jovens de Nossa Senhora davam conta dos últimos preparativos para a série de 12 conferências de sete minutos que aconteceriam naquela noite.
Mariana Roquette, uma das responsáveis pela comunicação do evento, responde à curiosidade pelas paredes meias entre dois eventos tão diferentes. “Temos dois oradores que provavelmente estão ali daquele lado e que vêm para aqui diretos. Primeiro assustou-nos um bocado, porque era uma coisa muito grande aqui ao lado, mas depois foi interessante ver como há estas coincidências, quer de oradores, quer de pessoas mais velhas que vêm ao Faith’s Night Out (FNO) e que acabam por circular entre os dois eventos”, conta ao SAPO24.
Mas, afinal, quem são os jovens que organizam o evento? E o que se faz ali? “Somos das Equipas de Jovens de Nossa Senhora, um movimento que nasceu já há 40 anos e que junta jovens católicos. Temos entre 16 e 26 anos e discutimos vários temas mensais, e estamos em vários países. Existem encontros nacionais e internacionais”, começa por explicar Margarida Montanha Rebelo, responsável de conteúdos do FNO.
“O primeiro FNO aconteceu em 2013, para angariar fundos para um encontro internacional. É inspirado nas TED Talks, fizemos um evento, uma noite, em que vieram 14 oradores, cada um falava sete minutos. Vieram 200 pessoas assistir, era uma coisa muito amadora, tinha acabado de começar nos Salesianos. Agora estamos aqui no Centro de Congressos de Lisboa para a 5.ª edição. Já no ano passado tivemos 1500 pessoas e hoje temos novamente sala cheia, com uma lista de espera gigantesca e uma organização cheia de voluntários a ajudar”.
O objetivo das conferências é ter “a oportunidade de ouvir, partilhar e falar sobre muitas histórias de fé diferentes”, num “ambiente contagiante e descontraído”. Mas para isso acontecer muitas pessoas estão envolvidas: foram cerca de 80 os voluntários que permitiram que tudo corresse pelo melhor".
Madalena Correia de Oliveira tem 20 anos e há três anos que participa no FNO como voluntária, sendo também membro das Equipas. Os que têm vontade de ajudar são divididos em grupos: “uns ajudam na preparação do cocktail, outros tratam dos cadernos e panfletos que são distribuídos e ainda há quem tenha como função encaminhar as pessoas para a sala”, explica.
Quanto à importância do evento não tem qualquer dúvida. “Este evento tem ganhado proporções brutais e de facto cria impacto nas pessoas. Os oradores que cá passam e a mensagem que transmitem são importantes. Não há mais nenhum evento destes que toque em termos relacionados com a fé e o ser católico. São temas que abrangem muitas áreas, os oradores têm sempre alguma mensagem para nos passar, algumas histórias de vida que despertam nas pessoas muitas emoções e às vezes casos de conversão”.
E é esta ideia que reforça Bernardo Lobo Xavier, de 18 anos, e voluntário pela primeira vez. “Há pessoas que nem estão em movimentos e vêm cá e podem ter um momento de chamamento para viver a fé. Este evento é espetacular nesse sentido. Hoje em dia há muito a ideia de, como o Papa Francisco diz, ficar no sofá e cair na indiferença. Aqui, através de exemplos concretos de quem vive a nossa realidade, ouvimos a felicidade que é aceitar este modo de vida. Através dos testemunhos levamos também algo connosco”, refere.
Depois de conversas e correrias, o quase silêncio. À hora combinada, todos os voluntários param. São 17h30 e há uma oração em grupo. “Que neste serviço eu saiba dar testemunho de Ti, na atenção cuidada e no sorriso permanente”, ouve-se a uma só voz. No fim, uma Ave Maria como última prece. Faltam poucas horas e ainda há coisas a preparar.
E vozes a afinar também. Misturados com os voluntários estão seis jovens que vão ter um papel muito específico no FNO. São os Overjoyed, uma banda acapella que começou em 2015. Na sala onde ensaiam ouve-se Blackbird, de Paul McCartney, uma última vez antes de subirem ao palco com mais de 1500 pessoas a assistir.
Afonso Soares dos Santos, António Guedes, Helena Bleck, José Blanco, Maria Beatriz Simões e Teresa Esteves da Fonseca param por minutos para uma breve conversa com o SAPO24.
“Já cantávamos todos juntos em coisas beatas e como achávamos que cantávamos bem eu tive a ideia de nos juntarmos para fazermos uma coisa mais profissional. Tinha na ideia algo mais coral, nem tanto de músicas comerciais. Mas à medida que fomos crescendo fomos percebendo qual era o nosso próprio estilo e o que gostávamos mais de cantar. Não são só coisas beatas nem só coisas comerciais. Tentamos sempre mostrar que somos católicos, à moda antiga, praticantes que vão à missa”, conta Afonso.
Entre os sete membros — falta Laura Sumares, por estar em Erasmus —, os estilos são variados. Comercial, pop, jazz, alternativo. Há músicas “beatas e não beatas”. Afinal, todas podem ter um bom aproveitamento. “Encontramos muito alguma coisa cristã quando a letra é verdadeira, quando fala sobre a verdade, sobre a beleza, sobre o amor. Para nós isso pode logo mostrar qualquer valor cristão da música. Gostamos que não seja óbvio”, refere Maria Beatriz.
António Guedes ajuda a colega: “A maravilha da Criação é a Criação em si. Qualquer ato que se faça com verdade e com beleza é uma imagem de Deus”.
12x7 minutos inspiradores, de pessoas que arriscaram dar voz àquilo que vivem
Do lado de fora da sala das conferências há uma exposição. São sete obras, de sete artistas convidados, alguns deles membros das Equipas de Jovens de Nossa Senhora. Num dos quadros vê-se Madre Teresa de Calcutá, noutro é o próprio Cristo e mais ao lado o sudário esquecido. Há também espaço para o abstrato, para o mar, caminhos e para a figura humana. Como fio condutor está o Evangelho de S. João: “A verdade vos fará livres”.
Às 19h as pessoas acumulam-se à entrada. Pouco tempo depois a sala está cheia e tudo a postos. A variedade de oradores não podia ser maior. À fé juntam-se várias áreas: ciência, tecnologia, filosofia, música, jornalismo, medicina. Os caminhos são vastos e as histórias muitas e cheias de lições a reter.
A apresentação das intervenções está a cargo de mais um elemento das Equipas, Carlota Leitão, que não esconde o orgulho ao ver a sala composta. E não resiste a lembrar a edição anterior, em que Peu Madureira foi apresentador. “Hoje não está cá porque vai cantar no Festival da Canção. Amanhã [18 de fevereiro] quando cantar já sabem, vamos todos votar nele”, brincou, e o cantor passou de facto à final.
Esta é uma noite para ouvir histórias, umas em que sobressai a fé como conceito, noutras a verdade. No fim, o objetivo é o mesmo: conseguir levar para casa testemunhos de quem não tem medo de falar sobre aquilo que vive.
Dos estandartes de uma guerra pela paz à fé que nasce nas trincheiras
A história de Inês e Gonçalo Dias da Silva foi a que mais aplausos arrancou à audiência. São casados há 10 anos e têm quatro filhos: receberam, em 2017, o prémio “Família Numerosa Europeia do Ano”. É Inês quem começa a falar. “Não sei se sabem, mas existem 220 mil palavras no vocabulário português e, pelo menos eu, tenho sempre uma palavra pronta. Quando eu tinha 18 anos ouvi várias palavras muito bem estruturadas num debate da campanha do aborto. E mal ouvi fiquei convencida de que era legítimo abortar uma criança deficiente”, diz.
"Internamento após internamento, crise após crise, já éramos seus pais mas também voltámos a aprender a ser filhos de Deus. Muitas vezes fomos levados a usar a fé e a defesa da vida como um estandarte de guerra"
Contudo, a realidade de Inês fê-la mudar de opinião. A sua mãe teve mais duas filhas, ambas com uma doença genética rara e incapacitante. “Mas naquele dia, quando voltava do debate, cheguei a casa fiz aquilo que fazia todos os dias — fui ao quarto da minha irmã, cumprimentá-la. Ela estava ali no chão, deitada, numa posição de onde não conseguia sair sozinha; ajoelhei-me, dei-lhe um beijo e ali ela olhou para mim e, sem dizer uma única palavra, destronou todos os argumentos que eu trazia do debate”, conta Inês.
Para Gonçalo, o amor por Inês foi sempre maior do que o medo. Dadas as circunstâncias genéticas, Inês também deveria ser portadora da doença, embora esta não se manifestasse. Quando foram juntos ao médico, já noivos, tiveram a confirmação. Mas nada mudou. “Quando casámos — e somos relativamente novos —, havia muitas soluções que a ciência nos podia dar para resolver este nosso problema, mas nós entendemos que, tal como tínhamos feito no nosso namoro, não queríamos que mais ninguém entrasse na nossa relação a não ser Deus. Portanto entendemos que a ciência, os médicos, a tecnologia não deviam entrar na intimidade que nós tínhamos como casal. Por isso decidimos que não íamos usar nada do que nos era oferecido, além daquilo que Nosso Senhor nos trouxesse”, revela Gonçalo.
Um casamento feliz. Nasceram o Gonçalo e o Francisco, “crianças fáceis e saudáveis”. O terceiro filho, Pedro, agora com cinco anos, revelou-se “um estranho e o futuro metia medo”. A doença das tias revelava-se nele a causava estranheza aos pais. “Não olhávamos para o Pedro como olhávamos para os outros”.
Têm sido cinco anos de internamentos, ambulâncias, salas de reanimação. A dada altura, o casal ficou conhecido como “o pai e mãe do Pedro”. E isso foi o essencial. “Foi nessa altura que nós começámos a amar o Pedro. Percebemos que o Pedro precisava dos seus pais”.
“Internamento após internamento, crise após crise, já éramos seus pais mas também voltámos a aprender a ser filhos de Deus. Muitas vezes fomos levados a usar a fé e a defesa da vida como um estandarte de guerra. Aprendemos técnicas e aprendemos a usar máquinas de suporte de vida, que temos em casa e trazemos para onde ele vem. Já não à espera da cura, mas sim para tentar confortá-lo e ter estabilidade. Uma estabilidade que talvez um dia nos pudesse permitir vir a ter outro filho. A estabilidade hoje ainda não chegou, mas o filho, ou melhor, a filha, tem três anos”, diz Inês.
Apesar dos receios, o casal optou pelo quarto filho. “Rezámos muito, falámos com muitos amigos, mas nem sequer tínhamos chegado a uma conclusão como casal sobre se fazia sentido estarmos abertos a mais uma criança ou não. Mas mais uma vez Nosso Senhor destronou-nos completamente. Primeiro pôs-nos o desejo no coração, depois um dia fizemos um teste e tínhamos lá um traço a dizer quer a Inês estava à espera de um bebé”, acrescenta Gonçalo.
Quanto ao Pedro, já não existem dúvidas, embora o medo seja inapagável. “Se existem momentos em que sentimos que Deus se calou ou nos abandonou, aprendemos que são esses momentos que nos tiram da distração para que possamos exatamente reconhecer como Ele é e não para ficarmos a pensar no que devia ser. Como Deus decidiu vir ao mundo: numa criança que precisou de um pai e de uma mãe”.
E é dessa vivência de Deus, entre a fuga e o regresso, que Henrique Leitão, especialista em História da Ciência em Portugal e distinguido com o Prémio Pessoa em 2014, fala quando sobe ao palco.
“A vida às vezes tem interrupções, é como se um raio rasgasse por entre nuvens e nos fizesse colocar de novo a questão. Pode ser uma tristeza — como aconteceu, por exemplo, com Santo Agostinho: morre-lhe um amigo e, como ele diz, ‘olhei à volta e tudo é morte e então tudo é para mim um grande problema’. O seu caminho de conversão começa por aqui. Quem está deitado na maca à porta de entrada de um bloco operatório para ser operado tende a largar a artificialidade da vida e a ver as coisas de outra maneira. Por isso é que há aquele ditado ‘não há ateus nas trincheiras’. Eles sabem isto muito bem”, refere.
“Acreditar em Deus é ter intuição de que há pelo menos algo mais, outra coisa, de que há uma força, um Ser. Usemos a expressão que quisermos. Esta intuição, depois de trabalhada por tanta gente, é tão transversal à Humanidade, tão permanente na História, que tem uma imponência a que é difícil escapar”, salienta o investigador.
Contudo, a fé cristã “não é a mera descoberta da sobrenaturalidade do mundo”, diz Henrique. “O Cristianismo tem a ver com uma coisa muito maior, muito mais complicada, quase incompreensível, tão difícil de entender. Deus, com todo o mistério que tem, estabelece connosco uma relação estranhíssima. Estabelece connosco uma relação de um interesse, de uma intensidade, de uma bondade contínua, de tal modo benéfica e positiva que nós não temos outra palavra para a descrever se não Amor”.
Tens um post-it perdido à tua frente. Veio de Deus
Estranhas, únicas e profundamente pessoais. Quando o tema é fé, Alberta Marques Fernandes, jornalista, decide falar sobre os recados de Deus, sinais que aparecem sob todas as formas, mas que nem sempre conseguimos ou queremos ver. Sinais que compõem um relacionamento.
"O trabalho é tão absorvente que quer ficar com a minha vida toda. Deus tem-me dito através dos tais post-it que a melhor parte da minha vida está fora da profissão. Ele quer-me noutro lugar”.
“Deus decidiu mandar-me recados. Não estou a falar nem em instinto, nem em sexto sentido, nem em intuição. Estou a falar de recados, de sinais, de papelinhos espalhados ao longo da minha vida como se fossem post-it azuis, amarelos, cor-de-rosa. Às vezes eu vejo esses recados, outras vezes não vejo, outras vezes vejo e faço de conta que não estão lá”, conta a jornalista.
“Distraio-me com uma enorme facilidade com coisas que não servem absolutamente para nada. Ando com isto a minha vida toda. Uma coisa sei, a profissão tem-me puxado para um lado, Deus tem-me puxado para outro. Ou melhor, o trabalho é tão absorvente que quer ficar com a minha vida toda. Deus tem-me dito através dos tais post-it que a melhor parte da minha vida está fora da profissão. Ele quer-me noutro lugar”.
Alberta Marques Fernandes não o diz de ânimo leve. Tem histórias pessoais que o confirmam. Primeiro, a morte do pai, quando esta tinha apenas 22 anos. Mais tarde, a morte da mãe, com cancro. Aqui a mensagem de Deus foi clara: “entendi-o como um sinal para colocar a família em primeiro lugar. Mas colocar a família em primeiro lugar não é estar convencido de que se sabe o que é melhor para a família, não é impor soluções, não é sentir-se dono da verdade: isso é soberba”, afirma.
E é também na família que continua hoje a ver sinais de Deus, mais concretamente na filha. “Casei cerca de um mês depois da morte da minha mãe, engravidei pouco depois, tive uma gestação de risco, a Luísa nasceu prematura. Senti aí a força da fé e da oração, senti o colo de Deus, a minha fé reforçou-se com o olhar daquele ser minúsculo que lutava para viver e que se tornou na miúda fantástica de 17 anos que é hoje. Acredito que a Luísa é um dos canais que Deus privilegia para me enviar os tais sinais”.
Mas nem sempre corre tudo bem e as certezas também se desvanecem. “Quando pouco depois o meu casamento falhou, eu tive uma profunda crise de fé, zanguei-me profundamente com Deus. A zanga durou muito tempo. Senti que ele me tinha abandonado e falei com uma amiga que me contou a história do bombeiro”.
E com esta história que Alberta Marques Fernandes diz tudo o que poderia dizer. “Certo dia começou a chover numa aldeia, que foi atingida por fortes cheias. A aldeia foi evacuada mas o padre ficou dentro da igreja. O bombeiro foi chamá-lo mas ele não quis ir: disse que estava na casa de Deus e que Deus o protegeria. Mais tarde, dada a elevação do nível das águas, o padre subiu ao campanário e o bombeiro veio de bote de borracha chamá-lo. O padre disse que não, utilizando o mesmo argumento. O bombeiro ainda regressou mais uma vez, arriscou a vida, mas o padre foi irredutível: dada altura a igreja foi engolida pelas águas e o padre morreu. Quando o padre chegou ao céu perguntou zangado a Deus porquê que não o tinha protegido. Deus respondeu 'quantas vezes é que Eu te mandei o bombeiro?’”. São estes os post-it da jornalista. “Não podemos ignorar os sinais e às vezes são tão evidentes e nós não queremos ver”.
Agora podem dizer que isto é tudo um embuste
Para Rodolfo Nona, o orador mais jovem da noite, com apenas 25 anos, não há como falar de fé sem falar de dúvida.
"A grande maioria olhava para ele e achava 'Jesus é louco, isto é tudo um embuste e eu não acredito em nada disto’"
Entrou no palco com ar nervoso, justificando-se por isso fazer “um exercício”. Depois de colocar a audiência de mãos entrelaçadas e a bater palmas, fez um truque com os indicadores. Magia? Não: uma forma de olhar para a Igreja. “Há-de haver meia dúzia de vocês que perceberam o que eu fiz e portanto estão mais ou menos confortáveis. E depois todos os outros acham que é um embuste e que eu sou louco. Isto é um bocado a história da Igreja: era desta forma que as pessoas olhavam para Jesus. Havia meia dúzia de pessoas que olhavam e pensavam 'ok, eu acredito nesta pessoa, isto faz sentido', mas a grande maioria olhava para ele e achava 'Jesus é louco, isto é tudo um embuste e eu não acredito em nada disto’.
Rodolfo encontrou a resposta para a dúvida no Antigo Testamento.
“Uma vez perguntaram-me 'Oh Rodolfo, porquê que tu fazes isto? Porquê que acreditas em Deus?' e eu fiquei à rasca, porque houve uma altura em que me aproximei da Igreja e comecei a ficar apaixonado pela Igreja e por esta história de Jesus e portanto queria saber responder a todas as perguntas. Às tantas sabia falar da castidade, da riqueza da Igreja, de mil e um temas... e não sabia responder a esta pergunta”. Para isto, o Antigo Testamento foi a peça chave. “Se não acreditardes não compreendereis”. Ou seja, a lógica divina funciona ao contrário. “É-nos dito que primeiro temos de acreditar e só depois é que vamos perceber. Na prática isto quer dizer que eu primeiro tenho de abrir o meu coração porque só assim é que vou conseguir perceber. Se não abrir o meu coração, nunca vou ser capaz de compreender onde é que Deus se manifesta na minha vida”.
Contudo, o grande problema é perceber qual é o caminho a seguir. O que quer Deus de cada um? “Isto resolvia-se de uma forma muito fácil. Era Deus abrir o céu com um relâmpago, vir montado numa nuvem com uma música dos AC/DC a mandar arco-íris por todo o lado. E acreditem em mim, qualquer pessoa sabe que se resolvia isto assim. Guess what? Isto já aconteceu. Não desta maneira pateta que eu estou a descrever, mas o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. Traduzindo: por amor, Deus fez-se homem e veio ter connosco para que o Homem pudesse chegar até Deus. E, mesmo assim, nós decidimos não acreditar, nós decidimos não O ver. Isto de facto é engraçado. Deus veio cá, mostrou-nos o caminho e nós não acreditamos”.
Nunca ninguém viu o wifi, o amor ou o vento. Mas existem
Não ver, mas crer. Viver com o que se sabe e não ter medo de responder “não sei”. E, entretanto, fazer tudo o que está ao nosso alcance para gozar de uma vida plena, tendo a morte como única certeza.
José Luís Nunes Martins estudou filosofia e trabalha com companhias aéreas, preparando-as para a eventualidade de um avião cair e morrer a maior parte das pessoas que estão lá dentro.
“O wifi, o amor e o vento são coisas que nunca ninguém viu. E Deus não se conhece senão pelos seus feitos. O amor não se vê, conhecem-se os efeitos que tem na nossa vida”
“Em 2008 estive num auditório com 800 pessoas à minha frente, todas elas familiares enlutados de um acidente aéreo da Spanair, e todos a quererem fazer perguntas — pensavam que aquilo não podia ser possível. ‘Não é possível que o meu marido tenha morrido; não é possível que a minha filha, que eu preparei para ir ao meu funeral porque tenho cancro, tenha morrido’. A verdade é que todos nós vamos morrer e cada um de nós é o único ator e o único espetador da sua vida. É bom que antes desse momento tenhamos tudo feito por aqueles que amamos. Amar é dar-se. Não é dar flores, não é dar outra coisa que não nós próprios”.
E o que há a fazer por alguém em processo de luto? É simples: é preciso estar presente — “não é uma presença virtual, não é mandar um SMS, é sentar ao lado, ombro no ombro” —, saber ficar em silêncio — “o silêncio é, sem duvida nenhuma, a manifestação absoluta da maior das verdades. Foi com isso que Jesus Cristo respondeu a Pilatos quando lhe perguntou o que é a verdade; respondeu talvez com a presença” —, e ter um serviço simples — “ser herói é aceitar humildemente que o mais importante não são coisas estapafúrdias, são coisas simples e é muito difícil viver uma vida reduzido ao que é simples. É difícil porque são muitas as tentações para nos desviarmos do nosso caminho”.
“Eu acho que cada um de nós tem de aprender a viver nesta incerteza absoluta de não saber quando é a morte, de não saber em que condições é que vem a morte. Temos a obrigação de usufruir da vida. Todos nós vamos ser cinza, pó. Mas neste momento estamos a arder e é bom que iluminemos o mundo”, diz.
E, até lá, fé.
“Quando soube que eu vinha a esta conferência, ela [a sua filha] perguntou-me do quê é que eu ia falar. Disse que era sobre a questão da morte. ‘Oh pai, no inferno não há wifi. E no céu?'. Disse-lhe que também acho que não. 'Então como é que eu sei para onde é que eu quero ir?’”
Para este pai não há dúvidas. “O wifi, o amor e o vento são coisas que nunca ninguém viu. E Deus não se conhece senão pelos seus feitos. O amor não se vê, conhecem-se os efeitos que tem na nossa vida”.
Um bacalhau na sala? Não, mas havia por lá sal suficiente — e também luz
Celebrar a vida, sem medo da morte, é ter presente um ideal de felicidade — e de sal e luz, aos olhos do Evangelho. Luís Mascarenhas de Lemos, professor de Anatomia na Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa, começa por dirigir uma pergunta à audiência: “Quem é que neste auditório se sente feliz ou gostava de ser feliz?”. A sala reagiu levantando os braços. “Esta é, provavelmente, a resposta mais importante da noite de hoje. Acho curioso, porque ter um auditório em Lisboa com 1500 pessoas que põem o braço no ar e dizem que querem ser felizes ou que são felizes é provavelmente revolucionário no mundo hoje em dia. Passamos a vida a lamuriar-nos por coisas que vão acontecer, com isto ou com aquilo e não há aqui nenhuma televisão para amanhã poder pôr em grandes letras 'há 1500 pessoas a sentirem-se felizes sem nenhuma pistola apontada'. Isto é relativamente moderno e único hoje em dia”, brinca.
Contudo, a mensagem é séria. “Esta demonstração de que queremos ser felizes ou somos felizes não é mais do que a procura de uma experiência de amor, do encontro com Deus. É uma experiência que nós recebemos gratuitamente. Às vezes até fico admirado como é que a fé é gratuita, como é que Deus disponibiliza isto assim, mas acho que só temos de aceitar. César das Neves diz que não há almoços grátis, se calhar a fé é o único almoço grátis que podemos ter todos os dias, portanto vale a pena”.
O objetivo de qualquer cristão tem de ser, segundo Mascarenhas de Lemos, “sal da terra e luz do mundo”. A frase, proveniente do Evangelho de S. Mateus, reflete os ensinamentos de Jesus aos seus discípulos. Com uma ironia que provoca risos na plateia, surge um exemplo prático. "Nesta sala que está completamente cheia, se entrasse de repente um bacalhau por aquela porta e saísse por aquela, saía já salgado, fatiado, pronto para ser embalado e vendido no supermercado. A quantidade de sal nesta sala é inacreditável. Vós sois verdadeiramente sal, na medida em que sendo felizes aceitam uma proposta de relação com Deus que depende de uma fé que vos é dada e que vocês têm tendência para procurar, observar e por isso são seguidores de Cristo, discípulos. São o sal e são luz do mundo”, diz.
Já a luz, essa serve para “abrir caminho” e permite “motivar e transformar a vida dos que estão à nossa volta.
Mas este sal e esta luz não são privados. Têm de ser espalhados pelas pessoas. “É suposto salgar a terra e dar luz ao mundo, não é para consumo próprio. A fé cristã é uma proposta de vivência espiritual aberta à relação com o mundo.
É de Deus, é belo
"A beleza não é algo meramente exterior, que pode ser adjetivado. É uma experiência, sobretudo. E é nessa experiência que encontramos a transcendência divina”.
Na Igreja, a noção de serviço é inegável. O que é feito pode e deve ser partilhado como forma de “sal e luz”, de transformação. Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica, veio falar de arte, do belo, da cultura. E tudo por intermédio da Criação. Afinal, o que os outros fazem e chega até nós também é um caminho até Deus.
Para começar, a história de Alan Shewmon, diretor do serviço de neurologia do Hospital da UCLA. “Quando era estudante de medicina em Harvard, ateu, focado materialmente na fisiologia, foi convidado para assistir a um concerto de Chopin. E foi de tal forma avassalador que ele descreve a experiência como um êxtase, como uma epifania. Mudou radicalmente a sua perceção do mundo. Nesse momento percebeu que a beleza não é um mero fenómeno fisiológico, que a beleza é algo mais, e isso fê-lo refletir sobre uma descoberta interior que foi determinante para a escolha da sua especialidade como neurologista”, explica. Tudo estava conjugado para propiciar a sua conversão. “Hoje é um dos católicos com uma intervenção pública mais relevantes nos Estados Unidos. Tiramos desta história que a beleza não é algo meramente exterior, que pode ser adjetivado. É uma experiência, sobretudo. E é nessa experiência que encontramos a transcendência divina”.
Da Criação de Adão, de Michelangelo, a Picasso, Arcimboldo e até mesmo Fiódor Dostoievski ou Dorothea Lange, todas as obras estéticas — sejam pintura, escrita ou fotografia — cumprem o propósito de Isabel Capeloa Gil nesta conferência: mostrar que a fé e a beleza andam de mãos dadas. “O Papa Francisco conferiu um papel central à transmissão da fé por via da beleza, na Encíclica Laudato Si. Inspirou-se na mensagem de S. Francisco de Assis que, no seu cultivo das plantas e das flores no horto do convento deixava sempre um espaço para as ervas daninhas e, dizia ele, que mesmo nestas ervas daninhas se via grandeza da Criação de Deus”, refere.
Deus convida a ser Santo. É pegar (ou ir por outro caminho)
"Jesus teve a liberdade de não se submeter a determinados aspetos do seu tempo e da sua cultura"
Num concerto de Chopin, nas páginas de Dostoievski ou pelo pincel de Picasso, a conversão é para D. José Traquina, Bispo de Santarém, sempre um ato de liberdade.
“Jesus teve a liberdade de não se submeter a determinados aspetos do seu tempo e da sua cultura. Foi de facto livre, tendo sempre como prioridade a vontade do Pai. E convida-nos, apresenta-nos o seu projeto: a condição para ser cristão é a liberdade”, explica.
Contudo, perante uma sala repleta de um público maioritariamente jovem, há uma pergunta que se impõe. Como conjugar o desígnio de Deus e a liberdade pessoal? Este é, para o Bispo de Santarém, o grande desafio que se coloca a todos, mas a resposta é aparentemente simples. “Se alguém quiser segui-Lo, pegue na sua cruz todos os dias e siga-O. A liberdade é uma característica que Jesus exige: todos os que O seguem devem ser livres”.
Na Bíblia, os exemplos são muitos. Há Zaqueu, o cobrador de impostos, que mostra a liberdade de Cristo. Sendo um pecador, foi na sua casa que quis entrar, foi para ele que olhou, “chocando a multidão”. E os nomes que D. José Traquina refere são vários: há Mateus, outro cobrador de impostos que se torna discípulo de Jesus; Simão Pedro e André, pescadores do mar da Galileia que se tornam pescadores de homens; Maria Madalena, uma mulher pecadora que encontra o perdão de Deus. Todos eles têm uma coisa em comum: “tiveram a liberdade do olhar de Deus”.
Da História para a atualidade, o desafio é o mesmo. “A santidade é o desafio sério que Deus propõe, é o desafio que Jesus põe aos seus, mas não como uma fasquia impossível. Se quereis ser perfeitos, sede perfeitos como é o vosso Pai do Céu. A fasquia é enorme, sim. O desafio cristão está sempre à nossa frente”, diz D. José Traquina.
Mas, numa noite que junta crentes e não crentes, em verdade, há algo a registar. "Todas [as pessoas] têm a marca de Deus, ainda que não sendo crentes. Por isso, todas merecem o nosso respeito, ainda que procurem a verdade de outra maneira, por outros caminhos”.
Em nome da verdade, estive ali no evento do lado
José Manuel Fernandes é jornalista e uma das pessoas que se dividiu entre os dois eventos do Centro de Congressos de Lisboa, ao estar “de vez em quando naquela sala ao lado, numa coisa menos agradável”, brinca. E é também por isso que vem de gravata.
Antes de começar a falar sobre verdade, um aviso: não é crente. Mas aceitou o desafio — “a armadilha” — porque, no fundo, a sua profissão é saber lidar com a verdade. “Acho que a primeira coisa de que é preciso ter consciência é da dificuldade de nós atingirmos a verdade. Eventualmente, há mesmo essa impossibilidade, porque a verdade não é bem a perceção que nós temos dos factos. Há factos, mas depois juntam-se a outros factos e pode ser enganador”, diz.
Como exemplo, recua na História da Igreja Católica. “Se não andássemos na escola, se não nos tivessem ensinado nada, todos nós íamos achar naturalmente que estamos num sítio que está parado e que o sol anda à nossa volta. Ele nasce de um lado, põe-se, nasce, põe-se. E não é assim, é ao contrário. Descobriu-se que é ao contrário porque se foi olhar ao pormenor, porque se foi olhar para o que não era óbvio, porque se foi procurar descobrir o quê é que podia explicar pequenas contradições, pequenas coisas que não batiam certo. Este é o primeiro problema: aquilo que parece muitas vezes óbvio pode não ser a verdade. Portanto, a primeira lição é que nós temos de ser humildes, temos de ter consciência das nossas limitações e não procurar ter a arrogância do poder e do saber, como disse Bento XVI”.
No jornalismo, é agora inevitável falar de notícias falsas e até do impacto das redes sociais. “Quando nós encontramos notícias a circular que não são verdadeiras — e há muitas —, nem todas elas são maldosas. Algumas são apenas enganos, são o resultado de pessoas que não leram tudo, são o resultado da precipitação. Mas há outras que são maldosas. E esse é um ponto importante, saber separar umas coisas das outras. O outro ponto importante é nós não pensarmos que de repente tudo isto ficou pior porque há redes sociais. A divulgação das chamadas notícias falsas, dos boatos, é tão velha. Face a estes problemas como é que podemos chegar próximo da verdade? A melhor forma é, além da atitude humilde que faz com que tenhamos uma espécie de dúvida permanente, a verificação das coisas. E a verificação faz parte das regras da minha profissão”, afirma José Manuel Fernandes.
"Temos essencialmente de procurar duas coisas: procurar ser mais inteligentes, pensar sobre os assuntos, questionar e ter dúvidas; e temos de ouvir outras opiniões, abrir as cabeças, abrir os corações e, na medida do possível, aproximarmo-nos."
“Esta semana escrevi um texto sobre um tema que vos diz muito: uma coisa que de facto me impressionou foi a quantidade de pessoas que falaram sobre a nota do Cardeal Patriarca sem a lerem. Tenho a certeza que não a leram, leram apenas bocadinhos e a partir daí foi uma festa, incluindo colegas meus. Nós precisamos de espaço de expressão, mas temos de chegar à verdade ou tentar ser objetivos através de várias subjetividades, através de vários pontos de vista, de vários olhares”.
A lição fica para todos. “Temos essencialmente de procurar duas coisas: procurar ser mais inteligentes, pensar sobre os assuntos, questionar e ter dúvidas; e temos de ouvir outras opiniões, abrir as cabeças, abrir os corações e, na medida do possível, aproximarmo-nos. E em nome da verdade devo dizer que há pelo menos mais uma gravata ali perdida que acabo de ver”, termina em tom de brincadeira quanto ao Congresso do PSD.
Palavras e tecnologia como armas de especial manejo
A necessidade de encontrar a verdade passa, também, pelos significados atribuídos às palavras. No jornalismo não se consegue fugir: cada conceito tem de ser um tiro certeiro. Raquel Abecassis sabe-o bem, quer no contexto jornalístico, quer no político.
Raquel Abecassis vem falar do poder da palavra. “A única coisa que fiz na vida foi trabalhar com as palavras e tentar usá-las para transmitir informação, conceitos e ideias. E de facto eu diria que, hoje em dia, a palavra tem um peso de extrema importância no mundo em que vivemos, como talvez nunca tenha tido no passado. Há aqui um combate político e cultural que se faz sobretudo numa diferente designação das realidades: conforme são nomeadas, assim entram na consciência das pessoas”.
Atualmente, os exemplos são muitos. “A atual designação de morte medicamente assistida em vez de eutanásia; a expressão interrupção voluntária da gravidez em vez de aborto; negro ou preto; direitos sociais ou intervenção social em vez de ação social. A esse propósito digo também que o atual vereador da antiga ação social na câmara principal de Lisboa, vereador do Bloco de Esquerda, fez questão de mudar essa designação para direitos sociais — vereador dos direitos sociais — e não o faz por acaso. Fá-lo porque, associado a um conceito, associado a uma ideia, vem também uma ideologia e uma perceção das coisas e por detrás de cada uma destas expressões ou designações está uma estratégia de atenuar ou não a realidade tal como a conhecemos e como a percebemos. E até manipular consciências que sejam talvez mais críticas ou inquietas. É por isso que a palavra se tem transformado com o tempo no principal instrumento da chamada 'ditadura do politicamente correto' à qual infelizmente vivemos muito subjugados”, refere Raquel Abecassis. A oradora tem como objetivo criar um alerta, em tom de conselho. “É importante saber usar as palavras, saber voltar aos conceitos e perceber que essa é uma arma que temos de saber manejar com o máximo de competência”.
Contudo, não são só as palavras que têm de ser utilizadas com cuidado. Este é também um problema da tecnologia. Elizabeth Shipeio trabalha na Microsoft e, por isso, convive diariamente com o mundo digital. Contudo, acredita que é possível “estar num mundo tecnológico e não nos deixarmos absorver por ele”.
Mas tem Deus alguma responsabilidade nisto? Há uma relação em cadeia, sim. “A história é simples e todos nós sabemos. Deus criou o mundo, Deus criou o Homem e sempre que o Homem interage com o mundo cria alterações. Criam-se diferentes cenários da história e isso é uma oportunidade de adaptação e de mudança no ser humano”, começa por referir.
O mundo tem evoluído. Primeiro, o trabalho manual. Mais tarde, a revolução industrial — e já vamos agora na quarta. Com isto, é necessário olhar para tudo, para não nos deixarmos perder na realidade tecnológica. Mas que nos ajuda, ajuda. “Como é que eu cheguei até aqui? Agarrei no telefone, cliquei numa aplicação, dois minutos depois — isto é surreal — tinha um motorista à porta de minha casa. Como é que eu lido com a minha família? Pelo meu nome e pela minha cor vocês já viram que é extremamente internacional, por isso como é que eu lido com eles? Fico anos sem saber deles porque estão em vários países do mundo? Não! Através de uma vídeo chamada conseguimos pôr a conversa em dia e até consigo ver o quê que eles vão cozinhar para o jantar”, exemplifica.
Porém, é preciso estabelecer limites. E fazer a pergunta central à temática: a tecnologia é boa ou má? Elizabeth garante que é uma opção pessoal. “Acredito que a tecnologia traz progresso à nossa vida e é boa: no campo da saúde, dos transportes, da análise de consumidores, da segurança. Mas também acredito que há um lado negativo, que é o lado com que nos devemos preocupar”.
“Está sempre em causa a escolha do ser humano”. Por isso, podemos decidir se queremos ou não este “uso abusivo da tecnologia”. “Temos aqui uma grande responsabilidade. A realidade tecnológica é a nossa realidade e a realidade implica sempre mudança. Mas uma coisa que não pode mudar é a nossa essência: somos seres humanos e criaturas de Deus. Se somos criaturas de Deus, se acreditamos nisso, temos uma missão enorme e super desafiante: dar o nosso melhor em tudo o que fazemos e cuidar uns dos outros, amarmo-nos uns aos outros”.
A amizade numa garrafa de whisky
Esta missão de olhar para os outros espelha-se muitas vezes numa palavra: amizade. E as amizades crescem de muitas formas, por vezes através das coisas mais simples.
O título da conferência tem nome de música, não fosse um dos oradores Tiago Bettencourt. “Chocámos tu e eu”, porque traz consigo Filipa Andrade, mais conhecida por Tia Pipos. Ao contrário dos outros oradores, preferem sentar-se de forma descontraída no palco.
A história é contada em analepse. “A Tia vai contando a história e eu vou contando o nosso almoço no outro dia”, explica Tiago Bettencourt. Isto porque existem dois momentos que se complementam: o início da amizade e o descobrir que com os anos nada mudou.
“Eu estava a tomar o pequeno-almoço e tinha deixado uma janela aberta e aparece-me uma cara de um miúdo, com os seus sete anos, cheio de caracóis, com um olhar todo vivaço que disse 'olá, eu sou o Tiago'. E eu percebi que era o novo vizinho que se tinha mudado e que rapidamente ficou amigo dos meus quatro sobrinhos, que também viviam no mesmo prédio”, começa por contar Filipa Andrade.
E a amizade cresceu. Certo dia os sobrinhos não quiseram ir à missa porque “é um frete, aquilo é só betos”. Mas a Tia resolveu. “Surgiu a ideia de irmos cantar na missa dos Salesianos do Estoril porque era uma forma de irmos fazer algo que gostávamos de fazer, que era cantar, e íamos com os amigos à missa. À saída de uma dessas missas apanhei aqui o meu amigo Tiago a tocar em grande estilo. Olhei para ele e achei que ele nem sequer tinha ido à missa, mas queria ser convidado para o coro. E disse-lhe 'Tiago, deixa-te de tretas, entra para o coro' e ele respondeu 'tá bem'. Eu achava que ele tocava bem, de facto, mas a voz... nem pensar. Uma desgraça, não dava nada por esta voz. Afastava-o dos microfones e 'toca, toca, que tocas bem’”, brincou.
Introduzida a história, Tiago conta em seguida o regresso a casa da Tia Pipos, tantos anos depois. “Foi uma sensação muito engraçada, porque comecei logo a ter não sei quantas visões de ensaios que lá se passaram, dos encontros, dos amigos que passaram por lá. Sentámo-nos e começámos a falar e a conversa rapidamente passou para o tipo de conversas que sempre tivemos. A tia tem sempre uma palavra certa”.
E no baú das memórias, a tal garrafa de whisky. “Eu estive 10 anos sem filhos e quando a Joana nasceu foi uma festa. O Tiago apareceu lá em casa com uma garrafa de whisky com uma tetina em cima e disse-me que era para abrirmos quando a Joana fizesse 18 anos, aquilo caiu-me mal porque estava sempre a lutar para que eles não se metessem em porcarias e logo ele a imaginar o meu bebé daqui a uns tempos com álcool”, conta Filipa Andrade.
Mas tantos anos depois, "a Tia mostrou-me a garrafa de whisky e de repente teve um simbolismo muito bonito, que foi, no fundo, quase como uma promessa de que passados 18 anos vamos estar aqui todos juntos de certeza absoluta”.“Quando nós crescemos com a verdade, na verdade e em verdade, essa amizade é para a eternidade. Portanto, com um amigo destes a vida é outra música”. É esta a certeza da Tia Pipos. E Tiago não consegue sequer discordar.
No fim da noite, ainda restava uma surpresa por parte das Equipas de Jovens de Nossa Senhora. Mais duas edições do Faits’s Night Out estão marcadas para este ano: no Porto, a 30 de junho, e em São Paulo, no Brasil, a 6 de outubro.
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