A notícia está de volta à agenda, com a agravante, em relação à anterior, de que não são apenas 79 dias de trabalho mas 217 anos para atingirmos a igualdade salarial entre homens e mulheres.

O tema regressa consecutivamente à discussão pública sem que o panorama efectivamente se altere. Assinalou-se o Dia Europeu da Igualdade Salarial e as notícias sobre o tema são claras: a igualdade está longe de ser uma realidade, especialmente ao nível da remuneração. Além da remuneração, as mulheres estão sub-representadas em cargos de gestão e têm menos promoções no emprego, aumentando a diferença salarial entre géneros à medida que aumentam as qualificações. Quer isto dizer que, a acumular ao trabalho não pago ao qual a maior parte das mulheres se dedica, ainda passam parte do ano a trabalhar de graça.

‘É assim’, dirá a maior parte. Mas não tem de ser.

Vejamos o trabalho não remunerado, aquele absolutamente invisível que garante que está tudo bem lá em casa: num qualquer local, urbano e ocidental, às sete da tarde ela abre a porta, entra em casa, pousa os sacos, a mala, as mochilas dos filhos. Larga as chaves e o casaco em desalinho. Vê os sapatos dele no chão, a carteira em cima da mesa, na entrada da casa. Espreita e, ao fundo, o computador portátil está desligado, em cima da mesa. Olha para a sala. Ele está semi-deitado, pernas estendidas, um prato que já teve torradas, televisão ligada. Trocam os piropos habituais e a pergunta da praxe sobre o ‘teu dia’. Os miúdos correm e saltam, invadem o quarto de banho. É preciso despachá-los. Felizmente já se orientam sozinhos entre banhos e escovadelas de cabelo. Ela arrasta os sacos para a cozinha. Vai descalçar-se, colocar-se à vontade. Tira o relógio e os anéis. Volta ao quarto de banho. O mais novo já tomou um duche, está a vestir o pijama. Volta à cozinha. Loiça na máquina, sacos com compras para arrumar, jantar para preparar. Concentra-se na refeição. Chama-os. Pede ajuda para arrumar as compras e tirar a loiça da máquina. Escuta, ao longe, um som quase irado que afirma ‘acabei de chegar a casa! Estou a relaxar!…’

Portanto: ele chegou a casa e já teve tempo para se colocar mais à vontade, fazer torradas, sentar-se no sofá e comer essas mesmas torradas, assistindo a um programa na televisão. Ela chegou e, para seu conforto pessoal, tirou os sapatos e acessórios dos pulsos e das mãos, não sem antes orientar os miúdos nesse processo de gestão dos horários e das tarefas que lhes estão associadas, pensar sobre o que fazia falta comprar no supermercado e definir o que iriam jantar. Relaxar?

Não há relax para a maior parte das mulheres porque se dedicam incansavelmente a essa tarefa invisível de planificação, coordenação e gestão que lhes ocupa parte do tempo, afigurando-se como uma carga mental que se junta à concretização de um conjunto de tarefas domésticas, a par das outras, de carácter pessoal e profissional. Independentemente das razões que levam a que eles passem mais horas de pernas esticadas no sofá porque ‘precisam relaxar’ (desse extenuante dia de trabalho igual ao delas), a verdadeira desigualdade está aqui. Esta é seguramente uma das razões que leva tantas relações a acabarem sem que ninguém perceba a razão por que, afinal, ‘entendiam-se tão bem e pareciam tão felizes’. Excepto no facto de ele precisar ‘relaxar’ quando as tarefas se acumulam, e as horas escasseiam, sem considerar que, para chegarem àquele momento em que é preciso tirar loiça da máquina ou preparar uma refeição, existiu todo um processo mental que ocupou a mulher que, também, precisa ‘relaxar’.

É também isto que afasta muitas mulheres de cargos de decisão porque quando têm filhos e família são consideradas menos empenhadas no trabalho, enquanto eles passam a ser vistos como mais responsáveis. São tudo questões de percepção que se relacionam com a nossa cultura e que é urgente alterar. Mais do que os salários - que também importam - se distribuirmos melhor a carga mental, talvez as mulheres consigam ser (ainda) mais multi-tarefa e empenhadas no seu trabalho profissional, alterando a tal percepção de que se preocupam mais com a família do que com a carreira.

Não defendo a ideia de que homens e mulheres têm de ser iguais, porque não são, mas defendo a ideia de que uma relação se baseia numa partilha e que essa não é apenas da intimidade, mas de tudo o que esta representa, inclusivamente apanhar as meias do chão. Partilhar não é 'dar uma ajuda' ou 'apoiar'. Partilhar é assumir e fazer. Eu sei que é possível porque há quem o faça. E não são os 'choninhas'. São homens responsáveis e respeitadores dos valores da comunhão e da partilha, das diferenças e da complementaridade. Não me venham com essa dos papéis sociais, ou de que a mulher tem maior capacidade para organizar a logística familiar, porque é só uma forma subliminar de sexismo patriarcal de quem defende que cuidar da família é natural para as mulheres. Poderia ser, se não tivessem, também, de trabalhar para garantir o sustento da família. Tudo o resto é só uma ‘natural’ falta de respeito pela pessoa em questão. Quem nunca o fez, que atire a primeira pedra.

Paula Cordeiro é Professora Universitária de rádio e meios digitais, e autora do Urbanista, um magazine digital dedicado a dois temas: preconceito social e amor-próprio.  É também o primeiro embaixador em língua Portuguesa do Body Image Movement, um movimento de valorização da mulher e da relação com o seu corpo.

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