O pretexto que aparece mais à cabeça dos protestos em “Cortejos da Liberdade” é o da restrição de liberdades decididas pelos governos em planos de combate à pandemia. Mas em fundo à contestação está um fio invisível que agrega muitas revoltas e que tem em comum a desconfiança social.

Os que protestam e declaram intransigência “No Vax” reivindicam solidariedade – mas eles não se solidarizam com a maioria que quer cuidar-se e que se vacina para barrar a propagação da pandemia.

Os que protestam invocam a liberdade (organizam-se em “Freedom Convoy/Cortejo da Liberdade”) – mas estão há uma dúzia de dias a instalar num inferno a vida de quem reside no centro da capital de um país que cultiva a calma, a tolerância e a concórdia como é o Canadá.

Os camionistas canadianos são ao todo 120 mil, dos quais a maior parte, 85%, com vacinação completa. A Canadian Trucking Alliance, que reúne as 4.500 principais empresas de camionagem é defensora da vacinação de todos. Em 15 de janeiro o governo canadiano decretou que os camionistas que conduzem transportes internacionais estão obrigados à vacinação anti-Covid. Passou a ser a base para o protesto.

Assim surgiu o Freedom Convoy. Uma minoria, de início algumas centenas de camionistas, desencadeou uma ação relâmpago: concentrou-se com aqueles enormes e reluzentes camiões em volta do edifício do parlamento do Canadá, em Otava.

Instalaram um arraial no centro da capital canadiana. A polícia começou por entender que não deveria impedir o direito à manifestação e permitiu que a concentração crescesse. Os cerca de 600 camiões de grande tonelagem que se juntaram na primeira manhã, a de 28 de janeiro, já eram cerca de 4.000 no dia seguinte. O protesto tem sempre sido ruidoso. A noite é atravessada por buzinões com os estridentes “claxons” dos camiões.

Muitos dos residentes declaram-se com medo. Não sentem conforto para, por entre a algazarra e algumas brigas, irem à rua tratar das compras básicas.

A polícia reconheceu que o centro da capital canadiana ficou cercado e ocupado pelos camionistas. São apenas 5% dos motoristas do longo curso no Canadá, mas com meios para bloquear a vida da capital. Ao quinto dia de cerco, o mayor de Otava declarou o estado de emergência. Mas a polícia, que não quer usar meios violentos, não consegue parar a concentração com ruidoso arraial. Está a tentar cercá-los e impedi-los de se reabastecerem, método que não está a mostrar-se eficaz.

O protesto alastrou. Mais 80 camiões foram o bastante para bloquear por cinco dias a principal ligação rodoviária entre o Canadá e Detroit nos EUA, a Ambassador Bridge. É uma ponte por onde em tempos normais passam diariamente dezenas de milhar de carros e camiões e centenas de milhões de dólares em mercadorias. As fábricas de automóveis da GM, Ford e Toyota nos dois lados da fronteira tiveram de interromper a montagem de novos automóveis. A polícia, numa operação com grandes meios mas muita paciência, conseguiu neste fim de semana fazer reabrir a Ambassador Bridge. Mas os bloqueios continuam em outras cidades.

A polícia canadiana está a ser criticada por se concentrar na vigilância de ativistas indígenas que protestam contra a extração de recursos naturais e de líderes ambientalistas mas descurarem o controlo do que de facto promove disrupções que limitam a liberdade de outros.

Este protesto canadiano tem um líder, chama-se James Bauder e tornou-se conhecido por comandar movimentos de protesto.

Em 2019 criou uma página no Facebook  para organizar um protesto nacional no Canadá contra a “Carbon Tax” decidida pelo governo de Justin Trudeau. Fracassou: o cortejo apenas juntou 30 camiões e cerca de 100 outros veículos comerciais.

Em 2020 Bauder fez-se delegado no Canadá da campanha de Donald Trump. Organizou comícios em que juntou alguns milhares de pessoas. Arenga que o 11 de setembro de 2001 foi uma conspiração de poderes ocultos dentro dos EUA. Insiste que esses mesmos poderes roubaram a reeleição a Trump.

Agora, é este James Bauder o promotor do Freedom Convoy e tem a solidariedade do ex-presidente dos EUA: Trump é apoiante deste “protesto pacífico contra as medidas insanas do lunático esquerdista Justin Trudeau”.

Os apoiantes de Trump estão a cavalgar com estes protestos. A recusa da vacina é vista pelas direitas radicais como uma afirmação de liberdade frente aos sistemas que “governam o mundo”. Há gente de Trump a convocar movimentos Freedom Convoy em Washington e em outras cidades dos EUA.

A notícia da contestação no Canadá entusiasmou aqueles que em França tinham levantado em 2019 o movimento “Gilets Jaunes”, entretanto interrompido pela pandemia. Mas o Freedom Convoy foi replicado em França como Convoi de la Liberté, encabeçado por gente que voltou a vestir o colete amarelo ou que o tem no coração.

Escolheram para o ressurgimento uma concentração em Paris no último sábado e nesta segunda-feira em Bruxelas. Mas a polícia francesa aprendeu com os tumultos nos primeiros meses dos “gilets jaunes” e, desta vez, mobilizou 7.000 polícias e meios pesados para garantir o cumprimento da proibição de entrada do cortejo na capital francesa. Mesmo assim a polícia teve de recorrer a gases lacrimogéneos.

Os serviços da polícia francesa estimam que o protesto deste sábado envolveu 32.100 manifestantes, dos quais 7.000 entraram em Paris.

Este protesto em França (com réplicas em Amesterdão) também teve como palavra de ordem a resistência à vacina e ao certificado de vacinação. Mas tornou-se claro que a maior motivação é a reivindicação de ganho de poder de compra e, de modo generalizado, contestação ao sistema político que governa a França.

Percebe-se que está em crescendo uma nova era de protestos – por parte de quem se sente oprimido e está contra qualquer coisa que represente o poder oficial.

Entra um desafio principal para os decisores políticos e as forças de segurança: que saibam promover o complexo equilíbrio entre o direito à manifestação e protesto que faz parte da democracia, mas em modo que não ponha em causa a liberdade dos outros e o funcionamento da sociedade.

A liberdade de expressão é, como o direito ao protesto, sempre inquestionável. Mas sabemos que a liberdade de cada um tem travagem no ponto onde choca com a liberdade de outros.