Era um protesto de camionistas contra a imposição de mais medidas restritivas para a gestão da pandemia no Canadá. Mas os movimentos de conspiração apropriaram-se do protesto. Há já vários dias, milhares de manifestantes ocuparam a capital canadiana — e insistem que têm vontade de ficar quanto tempo for necessário até que o governo mude as regras sobre vacinação.

A ocupação de Otava, porém, não é o resultado apenas da união dos descontentes: é fruto de uma coordenação sem precedentes entre organizações e ativistas anti-vacinas e anti-governo, conta o jornal ‘The Guardian’, que dá ainda conta de que o protesto tem sido sequestrado por movimentos semelhantes em todo o mundo. É “a revolta dos anti-vacinas”, afirma o jornal.

O movimento autointitula-se “comboio da liberdade” e partiu em direção a Otava ainda a 23 de janeiro. Saiu da mente de James Bauder, um teórico da conspiração confesso, defensor do movimento QAnon, que descreveu a covid-19 como “o maior golpe político da história”. O grupo de Bauder — Canada Unity — aponta para as exigências de vacinas contra a covid-19 e passaportes de saúde diz que são ilegais à luz da constituição canadiana, do código de Nuremberga e de várias outras convenções internacionais.

De um movimento à margem, Bauder tornou-se líder de uma contestação que, originalmente, era apenas de camionistas contra o anúncio do primeiro-ministro Justin Trudeau, no final do ano passado, de que os motoristas que atravessassem a fronteira com os Estados Unidos da América tinham de estar totalmente vacinados contra a covid-19. Foi o mote para que grupos há muito à espera de um ângulo para escalar a contestação ganhassem protagonismo.

Até aqui, as organizações que contestavam a gestão da pandemia faziam-no sobretudo de forma isolada, conta o ‘Guardian’. Houve quem organizasse piquetes à porta da emissora pública do Canadá; quem contestasse as máscaras nos tribunais. Agora, estes grupos (Hold Fast Canada e Action4Canada) são “participantes” do Canada Unity. Para além destas organizações, Bauder conta também com o apoio de pessoas que defendem coisas como a independência de partes do país, denunciam uma “crescente islamização” ou pedem que o primeiro-ministro seja detido.

Desde que todo este comboio chegou à capital, os extremos ficaram mais visíveis: há bandeiras neo-nazis, logótipos do QAnon colados nos camiões e autocolantes com a cara de Trudeau e a legenda “procurado por crimes contra a humanidade”.

Bauder, no entanto, quer que os manifestantes se deixem de concentrar nas vacinas: isto é já uma questão de liberdade. A habilidade na gestão da mensagem, chamou a atenção do partido Conservador, na oposição. Membros do partido já se encontraram com os manifestantes. Mas o apoio chega também de outros lados: Elon Musk, o dono da Tesla, já apoiou o “comboio”, tal como Donald Trump, o anterior presidente dos Estados Unidos.

Memorando de entendimento

Bauder quer um compromisso. Garantiu que o “comboio” vai permanecer acampado em Otava até que as suas reivindicações sejam acolhidas pelo governo. Para o organizador, se um número suficiente de pessoas assinar um “memorando de entendimento”, não só serão capazes de forçar o governo a mudar de ação, mas provavelmente serão também desencadeadas eleições.

Mas há quem vá mais longe, conta o ‘Guardian’: um organizador da Canada Unity diz mesmo que querem obrigar o Senado a “ir atrás do primeiro-ministro” por “corrupção” e “fascismo”, mesmo que, recorda o jornal, não haja fundamento legal para isso.

Mas Pai King, um dos organizadores, já detalhou um plano de ação mais conciso: “O que queremos é focar-nos nos nossos políticos, nas suas casas, nas suas localizações”, disse, em janeiro, numa transmissão no Facebook. Se a pressão política não resultar, defendeu, segue-se o bloqueio das cadeias logísticas.

Os membros do parlamento canadiano já foram aconselhados, por razões de segurança, a evitar o protesto.

O caos alimentado pelo dinheiro

Um comício durante o dia, palco de festas durante a noite. O “comboio da liberdade” tem tornado a vida de quem esteja na baixa de Otava deliberadamente difícil. Os camiões buzinam todo o dia, por vezes até de madrugada — tanto assim é que uma ordem do tribunal desta segunda-feira ordenou que as buzinadelas parassem.

Junto ao parlamento, no cimo de um camião, durante todo o dia há políticos da extrema-direita a discursar ou ocupantes a pegar no microfone para falar mal de Justin Trudeau ou das vacinas contra a covid-19. Durante a noite, o palco transforma-se para conduzir ruidosas festas de dança.

O presidente da câmara de Otava declarou ontem o "estado de emergência" na capital canadiana. Num anúncio oficial, Jim Watson afirmou que declarou o estado de emergência em Otava "devido aos protestos em curso". Na declaração, o autarca esclareceu que a decisão "reflete o grave perigo e a ameaça à segurança dos residentes que se coloca pelos protestos em curso” e “sublinha a necessidade de apoio de outras jurisdições e níveis do Governo".

Além disso, segundo sublinhou, também "proporciona maior flexibilidade dentro do governo municipal para permitir à cidade de Otava gerir a continuidade da atividade empresarial para assegurar serviços essenciais" aos residentes.

A situação está "fora de controlo" na cidade, tinha afirmado Jim Watson poucas horas antes, tendo salientado, na mesma altura, que a capital do país estava paralisada há mais de uma semana pelos opositores às restrições impostas pelo Governo canadiano no âmbito do combate à pandemia de covid-19.

"Estamos a perder a batalha, (...) temos de recuperar a nossa cidade", frisou o autarca, descrevendo como "inaceitável" o comportamento dos manifestantes, que estão a bloquear e as destruir as ruas com os camiões.

As manifestações, que ocorreram pela primeira vez em Otava no passado fim de semana, em 29 de janeiro, espalharam-se a outras grandes cidades canadianas durante este fim de semana.

O movimento, apelidado de "Freedom Convoy", visava inicialmente protestar contra a decisão das autoridades de exigirem, desde meados de janeiro, que os camionistas fossem vacinados para atravessar a fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos, mas rapidamente transformou-se num movimento contra as medidas sanitárias em geral para evitar a propagação da pandemia de covid-19 e também, para alguns, contra o Governo liderado por Justin Trudeau.

Os manifestantes dizem que continuarão a sua ocupação até que as medidas sanitárias restritivas sejam levantadas.

Movimentos semelhantes, mas menores, tiveram lugar em várias grandes cidades canadianas no sábado, incluindo Toronto, Cidade do Quebeque e Winnipeg, e continuaram hoje na Cidade do Quebeque.

Numa reunião de emergência com funcionários municipais, no sábado, o chefe da polícia de Otava, Peter Sloly, queixou-se de não ter recursos suficientes para acabar com aquilo a que chamou um "estado de sítio" e apelou a "recursos adicionais". A polícia de Otava deverá ser reforçada em breve com cerca de 250 membros da Real Polícia Montada Canadiana (RCMP), uma força policial federal.

Os ocupantes organizam-se através de redes sociais, coordenando-se para evitar as autoridades ou para planear a solidariedade com os manifestantes. E a solidariedade é volumosa: os ocupantes já conseguiram angariar mais de 6 milhões de dólares canadianos, ou seja, mais de 4 milhões de euros, através de plataformas de ‘crowdfunding’, em dinheiro e na criptomoeda Bitcoin. Isto já depois de terem sido expulsos da plataforma GoFundMe, onde tinham já angariado mais de 10 milhões de dólares canadianos.