12 HORAS

És uma impressão digital.

Quando abres os olhos no último dia da tua vida, vês o teu polegar. À luz amarelada da prisão, as linhas na almofada do polegar lembram o leito seco de um rio, meias-luas desenhadas na areia pela água, ontem visíveis, hoje desaparecidas.

A unha está demasiado comprida. Recordas-te desse velho mito que ouviste na infância — a ideia de que, depois de morreres, as unhas continuam a crescer até se enrolarem à volta dos teus ossos.

*

Recluso, diz o teu nome e número.

Ansel Packer, gritas. 999631.

Viras-te no teu catre. No teto, ganha forma o desenho habitual, um padrão de manchas de humidade. Se virares a cabeça um pouco para a direita, a mancha perto do canto desabrocha com a forma de um elefante. Hoje é o dia, pensas, e olhas para a bolsa de água na tinta que compõe o dorso do elefante. Hoje é o dia. O elefante sorri como se soubesse um segredo desesperado. Passaste muitas horas a reproduzir essa expressão exata, seguindo o elefante no teto sorriso a sorriso — hoje, ela torna-se genuína. Tu e o elefante sorriem um para o outro até a chegada dessa manhã se abrir numa cumplicidade excitada, até parecerem ambos maníacos.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Lanças as pernas para fora da cama, ergues o teu corpo do colchão. Calças os sapatos que te deram na prisão, chinelos pretos com uma folga de um centímetro que faz com que os teus pés deslizem. Vertes água da torneira de metal sobre a escova de dentes, espremes um resto arenoso de pó de lavar os dentes e depois molhas o cabelo à frente do pequeno espelho, que não é bem um espelho, mas um pedaço de alumínio esburacado e riscado que não se estilhaçaria se se partisse. Nele, o teu reflexo é desfocado e distorcido. Róis as unhas para dentro do lavatório, uma de cada vez, arrancando as orlas brancas com cuidado, todas por igual, até ficarem uniformemente curtas e denteadas.

A contagem decrescente é muitas vezes a parte mais difícil, disse-te o capelão quando veio visitar-te na noite passada. Por regra, gostas de ver o capelão, um homem quase careca, vergado sob o peso de uma culpa qualquer. O capelão é novo na Polunsky Unit — tem uma cara macia e maleável, muito aberta, como se fosse possível atravessá-la. Falou-te do perdão, de te libertares do teu fardo e de aceitares o que não podes mudar. Depois veio a pergunta.

A tua testemunha, disse ele, através da janela das visitas, sempre vem?

Imaginaste a carta pousada na prateleira, naquela pequena cela atravancada. O envelope creme, suplicante. O capelão observou-te com uma comiseração pungente — a comiseração sempre foi para ti o sentimento mais ofensivo. A comiseração é a destruição com uma máscara de empatia. A comiseração despe-te. A comiseração reduz-te.

Ela vem, disseste tu. E depois: tem aí uma coisa nos dentes. Viste a mão do homem disparar com ansiedade na direção da boca.

Na verdade, não pensaste muito na noite de hoje. É demasiado abstrato, demasiado fácil de contornar. Os boatos acerca do -Edifício 12 nunca merecem que se lhes dê ouvidos — um tipo perdoado apenas dez minutos antes da injeção, quando já estava metido no colete de forças, contou no seu regresso que fora torturado durante horas, com paus de bambu enfiados por baixo das unhas, como se fosse um herói de um filme de ação. Outro recluso alegou que lhe tinham oferecido dónutes. Preferes não tentar imaginar. É normal sentir medo, disse o capelão. Mas tu não tens medo. Sentes, em vez disso, um deslumbramento nauseante — nos últimos tempos, sonhas que estás a voar no céu azul-claro, a pairar sobre vastas extensões de agróglifos. Os teus ouvidos estalam com a altitude.

*

O relógio de pulso que herdaste na Ala C está cinco minutos adiantado. Gostas de te sentir preparado. O relógio diz-te que te restam onze horas e vinte e três minutos.

Prometeram-te que não ia doer. Prometeram-te que não ias sentir nada. Uma vez, recebeste a visita de uma psiquiatra, que se sentou à tua frente na sala de visitas com um fato de corte impecável e óculos caros. Ela disse-te coisas de que sempre suspeitaste e que não consegues esquecer, coisas que preferias nunca ter ouvido. Pelos teus cálculos habituais, o rosto da psiquiatra devia ter-te revelado mais — é assim que costumas medir o nível exato de tristeza ou comiseração. Mas ela manteve-se impávida, de forma propositada, e tu odiaste-a por isso. Como se sente?, perguntou-te. A pergunta era inútil. O sentimento tinha muito pouco valor de troca. Por isso, encolheste os ombros e disseste-lhe a verdade: Não sei. Nada.

*

Às 6h07, as tuas provisões estão prontas.

Misturaste as tintas na noite anterior — o Froggy ensinara-te a fazê-lo nos tempos da Ala C. Usaste a lombada de um livro pesado para esmagar uma série de lápis de cor e misturaste o pó com um frasco de vaselina da loja da prisão. Puseste na água três pauzinhos de madeira, guardados dos gelados que conseguiste arrecadar em troca de dúzias de pacotes de noodles com aroma de ramen, e trabalhaste a madeira até começar a desfazer-se e abrir-se em leque como os pelos de um pincel.

Instalas-te agora no chão, junto da porta da cela. Asseguras-te de que a extremidade da tua tela de cartão se encaixa na faixa de luz que vem do corredor. Ignoras o tabuleiro do pequeno-almoço pousado no chão, intacto desde que foi servido às três da manhã, com o molho de carne já coberto de uma película de gordura e a fruta enlatada a fervilhar de formigas-carpinteiras. É abril, mas parece julho; os aquecedores costumam estar ligados no verão, e o pedaço de manteiga derreteu-se numa pequena poça de gordura.

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso novo canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

Saiba mais obre o livro e o autor aqui.

Estás autorizado a ter um único aparelho elétrico — escolheste um rádio. Estendes a mão para o botão e ouves um guincho de ruído estático. Os homens nas celas circundantes costumam berrar os seus pedidos, R&B ou rock clássico, mas eles sabem o que vai acontecer hoje. Não protestam quando sintonizas a tua estação favorita: música clássica. A sinfonia é súbita e chocante, enche todos os cantos daquele espaço de cimento. Sinfonia em fá maior. Adaptas-te à existência de som, deixas que a música se instale.

Que estás a pintar?, perguntou-te Shawna uma vez, enquanto empurrava o tabuleiro do teu almoço pela ranhura na porta. Inclinou a cabeça para espreitar a tua tela.

Um lago, disseste-lhe. Um lugar que eu costumava adorar.

Nessa altura, não era Shawna, ainda não — era a agente Billings, com o cabelo apanhado atrás num carrapito baixo e apertado, e calças de uniforme retesadas à volta da saliência das ancas. Só passou a ser Shawna seis semanas depois, quando encostou a palma da mão aberta à tua janela. Reconheceste o olhar de Shawna porque já o tinhas visto noutras raparigas, noutras vidas. Um olhar de sobressalto. Ela fazia-te lembrar Jenny — era algo na sua insatisfação, vulnerável e insubmissa. Diga-me o seu nome, guarda, pediste, e ela ficou muito vermelha. Shawna. Repetiste-o com a reverência de uma oração. Imaginaste-lhe o solavanco nervoso do pulso, a estremecer nas veias azuis do pescoço branco e franzino, e tornaste-te uma coisa maior, uma nova versão de ti próprio a estender-se pelo teu rosto. Shawna sorriu, revelando o intervalo entre os dentes. Tímida, boquiaberta.

Quando Shawna já se tinha ido embora, Jackson assobiou a sua aprovação da cela contígua, numa provocação beligerante. Puxaste os fios soltos dos teus lençóis, ataste um Snickers em miniatura na ponta dos fios e lançaste-o por baixo da porta da cela de Jackson, para o calares.

Tentaste pintar algo diferente, para Shawna. Encontraste uma fotografia de uma rosa, metida entre as páginas de um manual de Filosofia que tinhas pedido à biblioteca. Combinaste as cores na perfeição, mas as pétalas não te saíram bem. A rosa era um borrão de um vermelho escaldante, com os ângulos todos errados, e tu livraste-te de tudo antes de Shawna poder ver. Da vez seguinte que destrancou a porta da tua cela para te levar pelo comprido corredor cinzento até aos duches, foi como se Shawna já soubesse — agarrou no aro de metal das tuas algemas e encostou o polegar à parte de dentro do teu pulso, para testar. O guarda do outro lado respirou pesadamente pelo nariz, sem se dar conta de nada, enquanto tu estremecias, arrepiado. Havia muito tempo que não sentias algo diferente dos braços rudes que te puxavam através das grades, das arestas frias dos garfos de plástico ou do prazer aborrecido da tua própria mão na escuridão. O toque de Shawna era elétrico.

Desde então, aperfeiçoaram a vossa troca.

Bilhetes enfiados por baixo dos tabuleiros das refeições. Momentos roubados entre a tua cela e a gaiola de recreio. Ainda na semana anterior, Shawna deixara cair um tesouro pela ranhura da porta da tua cela: um pequeno gancho preto de cabelo, como aqueles que lhe prendiam o carrapito elegante.

Agora, mergulhas o pau do gelado numa mancha de azul enquanto esperas pelo som dos seus passos. A tua tela foi colocada com toda a paciência na extremidade da porta, com os cantos alinhados. Nessa manhã, Shawna terá uma resposta para te dar. Sim ou não. Depois da conversa da véspera, pode ir num sentido ou no outro. Tens jeito para ignorar a dúvida, para te concentrares, em vez disso, na expectativa, que te parece uma criatura física a descansar no teu colo. Uma nova sinfonia começa, tranquila no princípio, antes de se tornar mais tensa e mais grave — deténs-te no arranque do violoncelo e ocorre-te que as coisas têm uma tendência para acelerar, para se construírem a si próprias, conduzindo sempre a um crescendo espetacular.

*

Estudas o formulário enquanto pintas. «Inventário dos Bens do Agressor». Seja qual for a resposta de Shawna, vais ter de fazer as malas. Há três sacos de rede vermelhos aos pés da tua cama — eles vão transferir os teus objetos mais importantes para a Walls Unit, onde terás mais algumas horas com os teus bens terrenos antes de tudo ser levado. Enches os sacos com preguiça de coisas que acumu-laste nestes últimos sete anos em Polunsky: os Funyuns, o molho picante e os tubos suplementares de pasta de dentes. Todos eles sem sentido agora. Vais deixar tudo ao Froggy, da Ala C — o único recluso que te venceu num jogo de xadrez.

Vais deixar a tua Teoria aqui. Os cinco cadernos de notas. O que vai acontecer à Teoria depende da resposta de Shawna.

E ainda há a questão da carta. A questão da fotografia.

Juraste que não ias voltar a lê-la. Seja como for, já a memorizaste quase toda. Mas Shawna está atrasada. Por isso, quando te certificas de que as tuas mãos estão secas e limpas, levantas-te a cambalear, esticas o braço até à prateleira de cima e puxas o envelope para baixo.

A carta de Blue Harrison é curta e concisa. Uma única folha arrancada de um caderno. Ela acrescentou o teu endereço numa letra inclinada: Ansel Packer, P.U., Edf. 12, Ala A, Corredor da Morte. Um longo suspiro. Colocas o envelope com delicadeza em cima da tua almofada, antes de afastares para o lado uma pilha de livros para encontrares a fotografia, colada com fita-cola e escondida entre a prateleira e a parede.

Esta é a tua parte favorita da cela, em parte porque nunca é revistada, mas também por causa dos graffiti. Tens vivido nesta cela na Ala A desde que recebeste a informação da tua data oficial, e algum tempo antes disso um outro recluso deu-se ao trabalho de gravar as palavras no cimento: «Todos Somos Raivosos». Sorris de cada vez que olhas para aquela frase — é tão bizarro, tão absurdo, tão diferente dos outros graffiti da prisão (a maior parte são citações da Bíblia ou desenhos dos órgãos genitais). Há nele uma verdade silenciosa que, dado o contexto, quase considerarias hilariante.

Retiras a fita-cola do canto da fotografia com cuidado, para não a rasgares, e sentas-te na cama com a imagem e a carta no colo. Sim, pensas. Todos Somos Raivosos.

*

Até a carta de Blue Harrison chegar, semanas antes, a fotografia era a única coisa que guardavas para ti. Antes da sentença — quando ainda acreditava na confissão coagida —, a tua advogada fez-te um favor. Foi preciso fazer alguns telefonemas, mas conseguiu que a fotografia lhe fosse enviada do gabinete do xerife em Tupper Lake pelo correio.

Nela, a Casa Azul parece pequena. Descuidada. O ângulo em que foi tirada corta as portadas do lado esquerdo, mas lembras-te de que costumavam estar cheias de hidrângeas em flor. Seria fácil olhar para a fotografia e ver apenas uma casa, pintada num azul-vivo, com a tinta a descamar. Os sinais da presença de um restaurante são subtis. Uma bandeira ondula no alpendre: aberto. O caminho de gravilha foi desobstruído para criar um parque de estacionamento improvisado para os clientes. As cortinas parecem brancas quando vistas de fora, mas sabes que, por dentro, são de xadrez, com pequenos quadrados vermelhos. Lembras-te do cheiro. Batatas fritas, Lysol, tarte de maçã. Do som das portas da cozinha a bater. Vapor, vidros partidos. No dia em que a fotografia foi tirada, o céu estava carregado de chuva. Quando a contemplas, quase sentes o travo acre a enxofre.

A tua parte favorita da fotografia é a janela do piso de cima. Os cortinados estão apenas entreabertos e, se olhares com atenção, vês a sombra de um braço, do ombro até ao cotovelo. O braço nu de uma adolescente. Gostas de imaginar o que ela estava a fazer no momento preciso em que a fotografia foi tirada — devia estar de pé, junto da porta do quarto, a conversar com alguém ou a ver-se ao espelho.

Ela assinou a carta com o nome Blue. O seu nome verdadeiro é Beatrice, mas nunca foi Beatrice para ti ou para qualquer pessoa que a conhecia naquela altura. Era sempre Blue: a Blue do cabelo entrançado com a trança a cair sobre o ombro. A Blue que usava aquela camisola do Tupper Lake Track & Field, com as mangas esticadas até aos pulsos numa nota de ansiedade. Quando te lembras de Blue Harrison e do tempo que passaste na Casa Azul, lembras-te de que ela não era capaz de passar pela superfície espelhada de uma montra ou janela sem olhar com nervosismo para o seu reflexo.

Não sabes o que sentes quando olhas para a fotografia. Não pode ser amor porque foste testado — não te ris nos momentos certos, nem te retrais nos errados. Há estatísticas. Uma espécie de reconhecimento emocional, empatia, dor. Não compreendes esse tipo de amor de que os livros te falam e gostas dos filmes sobretudo pelo estudo que deles fazes, o domínio da expressão a converter-se noutra expressão. Seja como for, digam eles o que disserem a respeito daquilo de que és capaz — não pode ser amor, isso seria uma impossibilidade neurológica —, quando olhas para a fotografia da Casa Azul, és transportado para lá. Para o lugar onde os guinchos param. O silêncio é delicioso, um alívio de cortar a respiração.

*

Finalmente, um eco no corredor comprido. O som arrastado, familiar, dos passos de Shawna.

Deixas-te cair no chão, retomas um movimento inclinado com o teu pincel: enches a relva de flores minúsculas, de um vermelho explosivo. Procuras focar-te nos pelos finos como alfinetes, no cheiro ceroso do lápis esmagado.

Recluso, diz o teu nome e número.

A voz de Shawna parece-te sempre à beira do colapso — hoje, um guarda virá ter contigo de quinze em quinze minutos para verificar se ainda respiras. Não te atreves a levantar os olhos do quadro, embora saibas que ela vai usar o mesmo rosto despido, com um desejo evidente e exposto, agora combinado com entusiasmo, ou talvez tristeza, dependendo da resposta.

Há coisas em ti de que Shawna gosta, mas nenhuma delas tem muito que ver contigo. É a tua posição que a atrai — o teu poder enjaulado enquanto ela detém a chave literal. Shawna é o tipo de mulher que não viola as regras. Diligente, vira-se de costas quando os outros guardas te despem e revistam, antes de cada duche, de cada hora de recreio. Passas vinte e duas horas por dia nesta cela de dois metros por três, onde não estás autorizado a ver fisicamente outro ser humano, e Shawna sabe-o. É o tipo de mulher que lê romances com homens musculosos na capa. Sentes o perfume do detergente que ela usa para lavar a roupa, da sanduíche de ovo que traz de casa para almoçar. Shawna adora-te porque tu não podes aproximar-te, porque existe uma porta de aço entre os dois, a prometer paixão e segurança ao mesmo tempo. Nesse sentido, é muito diferente de Jenny. Jenny estava sempre a sondar, a tentar ver por dentro. Diz-me o que estás a sentir, pedia ela. Dá-me tudo o que tens. Mas Shawna regozija-se com a distância, esse desconhecido intoxicante que se instala sempre entre duas pessoas. Agora debruça-se na beira do postigo. Tens de recorrer a todo o teu autodomínio para não levantares os olhos e confirmares o que já sabes: Shawna pertence-te.

Ansel Packer, repetes com toda a calma. 999631.

O uniforme de Shawna range quando ela se dobra para atar os atacadores do sapato. A câmara no canto da cela não chega ao corredor e o teu quadro está posicionado na perfeição. Chega num ínfimo choque de branco, quase inexistente: o revérbero do papel, quando Shawna enfia o bilhete pela fresta da porta, perfeitamente oculto sob a tela.

*

Shawna acredita na tua inocência.

Nunca serias capaz de fazer uma coisa daquelas, sussurrou-te uma vez, parada à porta da tua cela num longo turno da tarde, sombras como navalhas nas suas faces. Nunca serias capaz.

*

Claro que ela sabe da alcunha que te dão no Edifício 12.

O Assassino Ameninado.

O artigo do jornal foi generoso com os pormenores: saiu depois do teu primeiro recurso, espalhando a alcunha pelo Edifício 12 como um incêndio florestal. O jornalista juntara-as a todas, como se tivesse sido deliberado, como se estivessem relacionadas. As raparigas. O artigo usava essa palavra, aquela que tu odeias. «Em série» é uma coisa diferente — um rótulo para caracterizar homens que não são como tu.

Tu nunca serias capaz. Shawna tem a certeza, embora nunca o tenhas alegado. Preferes deixá-la falar em círculos e que o ultraje se instale: é infinitamente mais fácil do que as perguntas. Sentes-te mal? Estás arrependido? Nunca sabes bem o que essas coisas significam. Sentes-te mal, claro. Ou, melhor, gostavas de não estar ali. Não percebes em que medida a culpa ajuda seja quem for, mas a pergunta é a mesma há anos, durante o julgamento e nos teus muitos e infrutíferos recursos. És capaz?, perguntam-te. És fisicamente capaz de sentir empatia?

Enfias o bilhete de Shawna no cós das calças e olhas para o elefante que está no teto. O elefante tem um sorriso de psicopata, vívido num instante e logo a seguir uma simples impressão. A pergunta é absurda, quase demente — não atravessas limite algum, não fazes disparar nenhum alarme, não tens nenhuma balança para pesar. A pergunta, deduziste por fim, não é bem a respeito da empatia. A pergunta é o que faz de ti humano.

Ainda assim. Levantas o teu polegar e examina-lo à luz. Na mesma impressão digital, é indiscutível e persistente: o ténue latejar do teu pulso, ínfimo como o de um rato.

*

Há a história que tu sabes acerca de ti próprio. E há a história que toda a gente sabe. Ao tirares o bilhete de Shawna do cós das calças, perguntas a ti mesmo como é que essa história acabou por ser tão distorcida — como é que só os teus momentos mais fracos te definem, como se expandiram para devorar tudo o resto.

Inclinas-te para que a câmara colocada no canto da cela não apanhe o bilhete. E ali, escritas com a letra tremida de Shawna, três palavras:

«Já o fiz.»

A esperança invade-te, uma brancura ofuscante. Atravessa todos os teus poros enquanto o mundo se abre e sangra. Restam-te onze horas e dezasseis minutos, ou talvez, com a promessa de Shawna, uma vida inteira.

*

Deve ter havido um antes, disse-te um repórter uma vez. Um tempo antes de ter ficado assim.

Se houve um tempo, gostavas de te lembrar dele.