Tinha tudo para ganhar. Depois de uma vitória inesperada nas primárias do partido republicano, em novembro (derrotou o antigo presidente francês Nicolas Sarkozy e o antigo primeiro-ministro Alain Juppé) era visto como o mais bem colocado para chegar à segunda volta e, sem problemas de maior, derrotar aquela que já há vários meses é presença certa na ida às urnas de 7 de maio: Marine Le Pen.
A volonté, porém, é provavelmente aquilo que o leva a não desistir. Esperança de que os franceses sejam capazes de ver além dos juízes, dos tribunais e dos inquéritos. Para lá das acusações, das buscas e das suspeitas. Com o socialista Benoît Hamon atirado a um quinto lugar nas sondagens, a última espoir dos grandes partidos tradicionais de França é agora um homem que pode vir a sentar-se no banco dos réus.
Depois de em novembro surpreendentemente ganhar as primárias dos Les Républicains (o UMP, rebatizado em 2015) com 68,7% dos votos, contra os 31,3% de Juppé, as sondagens davam-no como o próximo presidente de França. Porém, se há coisa que a nomeação de Fillon devia ter ensinado é precisamente que até as previsões mais seguras podem e vão falhar se assim tiver de ser. Falharam antes; podem muito bem falhar agora.
Eis que nos chega 2017. Eis que se aproxima esse 23 de abril onde os franceses vão às urnas escolher quem querem ver nos boletins da segunda volta, a 7 de maio (não é forçoso que não haja um candidato a vencer na primeira volta. Para isso, como em Portugal, basta que reúna mais de 50% dos votos. Porém, na Cinquième République tal nunca aconteceu). E eis que chega a desgraça às perspetivas republicanas para voltar ao Eliseu.
A 31 de janeiro, as gordas do SAPO24 dão o primeiro alerta: “França: Polícia vai ao Parlamento à procura de provas para o caso Fillon”. Horas depois, a explicação: “A mulher de Fillon recebeu 900.000 euros por dois empregos fictícios”. As buscas eram o resultado de uma notícia do jornal satírico ‘Le Canard Enchaîné’ (O pato acorrentado).
Escrevia o jornal que a mulher do candidato dos republicanos recebeu 831.440 euros brutos como assistente parlamentar do marido e do sucessor de Fillon na Assembleia Nacional (a câmara baixa do parlamento gaulês), Marc Joulaud, entre 1988 e 1990, 1998 e 2007 e 2012 e 2013. Mais: o jornal dizia ainda que Penelope Fillon recebeu ainda cerca de 100 mil euros como colaboradora da revista literária ‘La Revue des Deux Mondes’, de um amigo do marido, em 2012 e 2013.
E, para completar a sentença, também dois dos cinco filhos do candidato da direita eram suspeitos de ter recebido 84 mil euros como assistentes parlamentares, em 2005 e 2007 - quando ambos eram estudantes, diz o mesmo jornal.
É verdade que os deputados franceses podiam contratar familiares, desde que estes exercessem efetivamente as funções pelos quais estavam a ser remunerados. Fillon negava qualquer irregularidade. A campanha, que assentava na defesa da transparência, ficava assim meio enevoada.
No dia seguinte, 1 de fevereiro, François Fillon já tinha um suspeito: a esquerda. Acusava-os de um “golpe de Estado institucional”, que tinha sido posto “sob o ponto de mira” dos opositores à sua campanha.
Antes de tudo isto - antes sequer de Fillon ganhar as primárias republicanas -, já Manuel Valls, que ainda era o primeiro-ministro (só se demitiria no início de dezembro para poder candidatar-se às presidenciais pelo Partido Socialista, mas acabou por perder as primárias do PS), criticava as “soluções ultraliberais e conservadoras” de François Fillon.
Em fevereiro, contudo, as acusações do candidato republicano incendiaram Stéphane Le Foll, o porta-voz do governo socialista e ministro da Agricultura, que defendia o PS francês e o Executivo de acusações que considerava “inaceitáveis”. E contrapunha: “cada um deve assumir as suas responsabilidades”.
Enquanto isso, as sondagens mostravam o início da queda, perdendo Fillon a garantia de passar à segunda volta. Emmanuel Macron, que lidera o movimento “nem de esquerda nem de direita”, Em Marche!, começa então a recolher o favoritismo do campo do partido republicano francês.
A justiça vai investigando. E a campanha vai correndo. A par, vão surgindo mais detalhes, mais suspeitas, mais acusações, mais problemas para a campanha dos Républicains. As novas revelações sobre o emprego da mulher, a decisão da Procuradoria francesa de avançar com a investigação, e o abismo que se rasga em frente de François Fillon. As sondagens, ainda trémulas, divergem. Umas dizem que cai redondamente; outras que nem por isso.
Os pormenores do inquérito judicial por alegado desvio de fundos públicos vão chegando. A Procuradoria francesa encarregada da delinquência económica e financeira adianta em comunicado, a 24 de fevereiro, a abertura da investigação por “desvio de fundos públicos, abuso de bens sociais, cumplicidade e encobrimento deste delitos, tráfico de influência e desrespeito das obrigações de declaração à Alta Autoridade sobre a transparência da Vida Pública”.
A 1 de março surgem mais dados sobre o andamento do inquérito: François Fillon vai ser acusado. Porém, ao contrário do que prometera em janeiro, garante que não vai abandonar a corrida ao Eliseu. “Não irei ceder, não me renderei e não me retirarei”, disse numa conferência de imprensa na sede de campanha, nesse mesmo dia. Só o “povo pode decidir”, assegura. E por isso só se submeterá ao veredicto das urnas, não ao dos juízes.
Entretanto, as deserções. Um a um, apoiantes, colaboradores e outras chaves da campanha vão abandonado Fillon.Thierry Solère, porta-voz do candidato presidencial, anuncia a sua saída a 3 de março. Antes dele, haviam saído já dois diretores-adjuntos, o porta-voz para as questões de política externa e até o tesoureiro.
Os apoios também caem. Mais de 65 deputados, autarcas e militantes, a 5 de março, tinham já retirado o apoio a Fillon. Depois são os centristas, do pequeno UDI, que apoiava Fillon em aliança com o partido republicano. Pedem a substituição do candidato, anunciando que deixam cair Fillon, que, contra ventos, marés, icebergs, ilhas e penínsulas, se mantém firme. Se mantém hirto, mas abandonado, a caminho do Eliseu.
O diário francês ‘Libération’ resume tudo numa frase: “Já não são os ratos a abandonar o navio que se afunda, mas o navio a abandonar o rato”.
Cada vez mais sozinho, tem a polícia a entrar-lhe em casa. “Eles estão a tentar intimidar-vos, estão a atacar-me, mas aquilo que eles querem matar é o desejo de mudança”, disse a cerca de 1.500 apoiantes numa ação de campanha no norte de Paris no dia do 63.º aniversário.
Mas eis que, nova semana, novo escândalo. Agora são os fatos. Melhor, a forma como dois fatos, no valor total de quase 50 mil euros, foram pagos: 35.500 euros em dinheiro entregue por uma jovem mulher na casa Arnys (conhecida por vestir nomes como Andy Warhol e Yves Saint Laurent), na margem esquerda do Sena, e o restante em cheques assinados por “um amigo generoso”.
“Paguei a pedido de François Fillon”, disse ao semanário ‘Journal du Dimanche’ o alegado signatário do cheque, cujo nome não foi revelado, que acrescentou: “Já agora, sem ter recebido o mais pequeno agradecimento desde então”.
Quem não gostou do presente foi Luc Chatel, o novo porta-voz de Fillon, que denuncia uma “campanha de esgoto” contra François Fillon. “Até que ponto vão levar isto?”, questiona. “Vão também questionar sobre se a sua avó contraiu um empréstimo na Rússia, e se o declarou na sua declaração de ativos?”, atirou Chatel na rádio pública francesa.
Entretanto, porém, um dos elementos próximos do candidato republicano confirma que um dos amigos de Fillon lhe deu de presente dois fatos Arnys em fevereiro, acrescentando que “nada houve de repreensível” nisso. Todavia, desmente os restantes pagamentos em dinheiro: “nenhum alfaiate sério aceitaria pagamentos em dinheiro desse tipo de quantia”.
O parágrafo anterior salta de uma notícia do SAPO24 a 14 de março. Um dia antes do anunciado, François Fillon, candidato presidencial do partido de direita Les Républicains e antigo primeiro-ministro de Nicolas Sarkozy, é formalmente acusado pelos juízes de “desvio de fundos públicos, cumplicidade e abuso de bens sociais, e desrespeito das obrigações de declaração à Alta Autoridade sobre a Transparência da Vida Pública”.
Dois dias depois, há mais caminhos para investigar: suspeitas de tráficos de influência, ligadas aos fatos da Arnys. As autoridades querem saber quem é o alegado mecenas e analisar as ligações ao antigo primeiro-ministro.
Assim, François Fillon está a ser investigado não apenas por causa dos falsos empregos que terá arranjado à mulher e a dois filhos no Parlamento gaulês, mas também pela oferta de dois fatos, no valor de quase 48.500 euros, dos quais apenas 35.500 foram pagos do seu bolso.
Já no início deste mês, a vinte dias da primeira volta das eleições, Fillon disse ser alvo de uma manipulação orquestrada pelo poder. Desde o final de março que as sondagens o mantêm estável no terceiro lugar, em torno dos 20%.
“Não imaginava uma manipulação como esta, de que estou a ser vítima, e que creio que vem do poder”, disse Fillon numa entrevista às estações francesas RMC e BFMTV.
“Não é possível que este assunto não tenha sido seguido com a maior atenção pelas mais altas autoridades”, respondeu Fillon quando questionado sobre o alegado envolvimento do presidente François Hollande, apesar de reconhecer que não tem provas concretas sobre os autores desta tal manipulação.
Afinal, quem é François Fillon?
Depois do contexto; depois da história que nos mostra como está o candidato do partido conservador Les Républicains às eleições presidenciais deste ano, vejamos quem é, este homem que tem andado nos corredores da política francesa nos últimos 35 anos.
Tem uma grande paixão por carros. Participou, aliás, na versão francesa de “Top Gear”, programa de televisão de origem britânica sobre o mundo automóvel. Já competiu várias vezes no circuito de Le Mans, perto da sua casa atual.
Este pormenor fará mais sentido se soubermos que François Fillon nasceu precisamente na cidade das famosas 24 horas de Le Mans, a sudoeste de Paris. Filho de um solicitador da província e de uma professora, nasceu naquela cidade a 4 de março de 1954.
Teve uma educação conservadora. Criado com rigidez e valores católicos, queria ser jornalista e viajar pelo mundo. Em vez disso, estudou direito na Universidade de Maine, em Le Mans, terminando os estudos em 1976 e trabalhou como assistente parlamentar do deputado da cidade no parlamento francês (o mesmo cargo de que agora é acusado de ter empregado a mulher e os filhos, sem que eles o tenham realmente exercido) .
Aos 27 anos, em 1981, foi eleito para a assembleia nacional.
Um ano antes, casou. Conheceu a mulher, Penelope Kathryn Clarke, ou Penny, como lhe chamam os amigos, quando ela foi para Le Mans completar a formação em Francês e Alemão. Era assistente numa escola da cidade natal de Fillon.
Penny é galesa. Galesa de Gales, do País de Gales, no Reino Unido. É fácil confundir os galeses com os gauleses, mas apenas nos gentílicos que os denominam. Na orografia do planeta, há muito mais que um gélido Canal da Mancha a dividi-los. Ainda assim, Fillon, que dizem ser um anglófilo (e é, pelo menos, um fã da ex-primeira-ministro britânica Margaret Thatcher), atravessou as águas e saiu do seu terroir para casar numa igreja do século XVII em Llanover, País de Gales.
Discreta, Penny é descrita como a “anti Carla Bruni”, a supermodelo que virou cantora que foi primeira-dama de Nicolas Sarkozy. Pelo contrário, a mulher de Fillon prefere a vida no campo, longe dos gabinetes de Paris. O casal tem cinco filhos e vive num château do século XII perto de Le Mans.
Fillon foi presidente da câmara de Sable-sur-Sarthe durante 18 anos. E foi escalando o seu caminho pelo partido republicano, deixando-se ofuscar por outras caractères talvez mais excêntricas do que ele. Teve papéis ministeriais até em 2007 chegar a primeiro-ministro de Sarkozy, até 2012.
Nicolas Sarkozy. Figura emblemática da política francesa, sempre relegou Fillon para um papel mais secundário. Chegou a chamar-lhe “empregado”, durante os seus anos como presidente da República. “Um caso perdido”, julgava Sarkozy, um ninguém, pensavam todos quantos foram surpreendidos com a vitória nas primárias do partido republicano. E o mesmo Sarkozy que achava ser o patrão 'arrumou as botas' e deixou a vida política.
Fã de Margaret Thatcher, católico conservador. Descreveu o colonialismo francês como uma forma de intercâmbio cultural. Adora o neoliberalismo. Quer acabar com as semanas de 35 horas, fazer desaparecer 500.000 empregos na função pública, cortar a fatura do Estado em 100 mil milhões de euros, abolir o imposto sobre fortunas, reduzir a imigração e investir 12 mil milhões de euros em segurança, defesa e justiça.
É na segurança nacional, aliás, que está parte da razão da sua aparentemente espontânea subida. O livro Conquistar o Totalitarismo Islâmico, que publicou no outono passado, granjeou-lhe o poder da direita tradicional francesa. Com críticas à forma como a administração de Hollande lidou com o terrorismo (que matou mais de 230 pessoas naquele país em 18 meses), anunciava que “a sangrenta invasão do islamismo na nossa vida diária pode ser o arauto da terceira guerra mundial”.
Arauto ou não, Fillon quer controlar, ao mais alto nível, o Islão em França, dissolvendo o movimento salafista e banindo a pregação em árabe. Apoiou a polémica interdição dos burkinis nas praias francesas. Em França vive a mais importante comunidade muçulmana na Europa. São cerca de cinco milhões de pessoas.
Pessoas que talvez sejam demasiadas. Por isso, quer limitar a imigração no país, revendo a posição francesa na União Europeia, bem como o funcionamento do Espaço Schengen.
Para a questão Síria, propõe uma aproximação a Vladimir Putin. Disse que para combater o Estado Islâmico é preciso reunir todas as forças: “democráticas ou não”.
O candidato repetiu várias vezes, numa conferência de imprensa no final de março, a importância do combate ao radicalismo islâmico, sustentando que a Europa tem de olhar por si e ser mais autónoma.
“A ameaça do totalitarismo islâmico, juntamente com o enfraquecimento da Aliança Atlântica através da retórica do presidente [norte-americano, Donald] Trump e de sinais contraditórios, obriga-nos a rever as nossas alianças e a olhar de novo para a questão da defesa europeia, que foi negligenciada tempo demais”, afirmou.
A ideia não é construir uma defesa europeia paralela à NATO, mas antes que todos os países apostem numa maior cooperação e envolvimento, designadamente financeiro, afirmou, prometeu aumentar o orçamento de defesa para 2% do PIB, contra os atuais 1,8%.
À procura de uma França mais conservadora e católica, promete rever os direitos à adoção por casais do mesmo sexo, preservar a os valores familiares e respeitar as raízes cristãs francesas. Diz opor-se à interrupção voluntária da gravidez, mas garante que não vai mexer na lei de 1975 que a legalizou em França.
Alain Juppé, que perdeu na segunda volta das primárias republicanas, acusava-o de querer arrastar o país para o passado com “uma visão extremamente tradicionalista, para não dizer ligeiramente retrógrada, do papel das mulheres, da família e do casamento”. Fillon decidiu abster-se, em 2014, na votação de uma lei pela igualdade entre homens e mulheres. Em 2013 contra os casamentos homossexuais. E em 1982 contra a igualdade na idade de consentimento nas relações hetero e homossexuais.
Na educação, quer trazer de volta os uniformes para as escolas e reescrever os currículos de História para contar aquela que diz ser a “história nacional”, livrando-se do foco analítico. Tudo para caminhar para o lado conservador.
E agora, Fillon?
Não vale a pena olhar para as sondagens, bem sabemos de experiências recentes. Nelas, François Fillon parece ter estabilizado num terceiro lugar, entre o centrista Emmanuel Macron e o candidato da extrema-esquerda Jean-Luc Mélenchon.
Entretanto, a base de apoio parece extremada, bem como as ideias que vai defendendo. Os “Sens Commun” (Senso Comum) são agora as boias que mantêm o barco a flutuar. O movimento social conservador republicano nasceu dos gigantescos protestos contra a legalização do casamento homossexual por Hollande em 2013.
Se não houver grandes desenvolvimentos nas investigações em que está envolvido até ao próximo domingo, nada garante que Fillon não possa garantir as chaves do Eliseu. Falta saber que 'ratos' ainda estarão no navio nessa altura. E com que objetivos.
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