No seguimento no que foi noticiado na quarta-feira, a propósito da norma para os serviços de Saúde Materna e Obstétrica - que coloca no papel que os enfermeiros especialistas podem assegurar sozinhos todos os partos considerados de baixo risco, ou seja, sem a presença de um médico obstetra - a DGS afirmou que vai rever a norma. O anúncio foi dado no seguimento da “pressão” que tem vindo a ser exercida pela Ordem dos Médicos, como foi avançado pelo jornal Observador e pela agência Lusa.

Entretanto, a Associação Portuguesa dos Enfermeiros Obstetras (APEO) acusou a Ordem dos Médicos de não apresentar argumentos científicos válidos que justifiquem a rejeição da orientação da Direção-Geral da Saúde (DGS).

E a Ordem dos Enfermeiros (OE) também reagiu, afirmando que os enfermeiros especialistas já fazem tudo o que está relacionado com partos há muitos anos.

Em conversa, por telefone, com o SAPO24, Ana Rita Cavaco aponta para um “lobby em que os médicos acham que perdem poder. Ninguém perde poder porque nós não somos donos dos doentes, não somos donos das pessoas, nós temos é que prestar os melhores cuidados às pessoas”, afirma a bastonária.

“Prestar os melhores cuidados às pessoas é não fazê-las perder tempo e elas terem uma grande acessibilidade aos cuidados de saúde, em segurança, como já acontece noutros países do mundo”, compara, referindo-se aos problemas que as grávidas têm enfrentado quando se deparam com os serviços encerrados.

“Toda esta confusão, que se gerou a partir do verão passado, com urgências obstétricas a encerrar eram completamente evitáveis se isto já tivesse regulamentado e se já tivesse implementado uma outra coisa que a OE propôs, e que já desde a década de 1980 é aconselhado pela própria Organização Mundial de Saúde, que são os centros de parto normal”, lembra.

“Há um lobby em que os médicos acham que perdem poder. Ninguém perde poder porque nós não somos donos dos doentes, não somos donos das pessoas, nós temos é que prestar os melhores cuidados às pessoas.”

“Por exemplo, nos centros de saúde, o enfermeiro especialista em saúde materna, faz a consulta toda da grávida, e depois o médico tem que ir ao computador e imprimir as receitas e a prescrição dos exames. Isto não faz sentido nenhum”, reclama a bastonária. “Portugal está muito atrasado em termos de mentalidade nestas questões”, queixa-se.

Segundo a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, não é preciso muito para criar esses centros de parto normal. “Não vamos cá construir edifícios novos. É dentro daquilo que já temos, nos serviços de obstetrícia, nas urgências obstétricas, são implementados os centros de parto normal, que é um modelo de organização”, explica.

Esses centros seriam para situações de gravidez de baixo risco e de “parto que não tem a participação de nenhum instrumento”, explica. “Não sendo instrumentalizado, não seria preciso a intervenção de médicos obstetras”, deixando-os livres para outras situações de maior risco.

“Trata-se de uma questão de poder [político] que não pode faltar, a bem das pessoas”, diz Ana Rita Cavaco. “Nós fizemos já essa proposta ao Ministério da Saúde e se isso estivesse implementado, não tínhamos tido aqueles problemas que tivemos no ano passado e que, se calhar voltaremos a ter este ano, porque precisaríamos de muito menos obstetras”, reforça.

“Falta coragem política que tem que existir por parte do Ministério da Saúde, de uma vez por todas, e regulamentar essa situação que já está regulamentada nos países mais desenvolvidos do mundo”, sublinha Ana Rita Cavaco.

“Nós, em Portugal, transpusemos a diretiva comunitária, mas depois não a regulamentamos. Portanto, isso faz com que percamos tempo, até em termos de acessibilidade às pessoas, porque os enfermeiros fazem tudo”, garante Ana Rita Cavaco.

“Falta coragem política que tem que existir por parte do Ministério da Saúde, de uma vez por todas, e regulamentar essa situação que já está regulamentada nos países mais desenvolvidos do mundo.”

Afastamento do coordenador da Comissão de Acompanhamento

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créditos: SAPO24

Em maio deste ano, a DGS emitiu a norma que foi proposta pela Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e bloco de partos lidera pelo ginecologista Diogo Ayres de Campos que tem analisado a falta de médicos nesta especialidade e procurado por soluções.

A norma oficializa o que tem sido feito na prática, “há muitos anos” — de acordo com a bastonária do OE—, e esclarece o papel de cada profissional de saúde durante os partos considerados normais e naqueles que exigem maior atenção, logo, a presença de um médico obstetra. Ou seja, o enfermeiro especialista passa a ser o responsável pelo internamento e pelo parto de baixo risco.

Situação que a Ordem dos Médicos vem agora dizer que poderá colocar em risco as grávidas e a segurança dos bebés.

“Pretendemos que a Orientação 2/2023 da DGS seja alterada (…). A mesma põe em causa todo um histórico de sucesso de colaboração entre os diversos grupos profissionais envolvidos no trabalho de parto, a segurança das grávidas e dos recém-nascidos”, lê-se na carta, citada pela agência Lusa.

A mesma Ordem disse ter entrado em ruptura com o grupo de trabalho e tem feito pressão, junto da DGS, para que o coordenador seja substituído.

Apontando que “não gosta de personalizar os aspetos”, Carlos Cortes disse à Lusa que “é preciso abrir um caminho diferente” e que já sentiu essa abertura por parte da DGS, que lidera o grupo de trabalho.
Questionada sobre o afastamento de Diogo Ayres de Campos, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros diz não concordar e acrescenta tratar-se de “uma birra” por parte dos médicos.

“Isto tudo é uma grande birra dos médicos que não faz sentido nenhum, porque os enfermeiros já fazem os partos normais no SNS. Eu por acaso acho que deviam acabar já com essa birra”, apela, avisando que qualquer dia são “os enfermeiros obstetras especializados em partos” que vão fartar-se e começar, “eles próprios”, a “negar fazer partos”. “Aí é que é um problema”, avisa.

“Estes partos já são feitos pelos enfermeiros especialistas e nenhum de nós, enfermeiros, médicos, farmacêuticos, técnicos, todos, não somos donos das pessoas. Nós trabalhamos em complementaridade e toda a gente está confortável com isso”, afirma.

Nós queremos ou não queremos o melhor para as pessoas?”, questiona a representante dos enfermeiros. “Queremos”, responde. “Parece que toda a gente [quer], menos os médicos, porque isto é uma questão de poder."

Segundo a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, 90% dos partos são feitos apenas pelos enfermeiros. “Nem percebo por que é que a Ordem dos Médicos está agora com esta coisa”, indagou, referindo-se ao grupo de trabalho liderado por Diogo Ayres de Campos que é composto por médicos e enfermeiros.

"Nós queremos ou não queremos o melhor para as pessoas?” “Queremos.” “Parece que toda a gente [quer], menos os médicos, porque isto é uma questão de poder."

“Eles até têm mais representantes no grupo de trabalho do que nós, que só indicamos duas pessoas do Colégio da Especialidade. Também não são precisos mais. Muita gente só dá confusão. Eles foram ouvidos, eles participaram na elaboração [da norma]. Não gostaram do resultado? Porque dá mais acessibilidade às pessoas? Paciência”, desabafa a bastonária.

“Agora não podem é vir dizer que não foram consultados, que não estavam no grupo de trabalho, e que o Diogo Ayres de Campos é o diabo. Isto não faz sentido nenhum”, lamenta. “Lembraram-se agora que ele tem de ser afastado? Ele está no grupo de trabalho, a coordenar há imenso tempo com pessoas da Ordem dos Médicos e agora, de repente, passou a ser o Diabo?”, questiona.

Ana Rita Cavaco diz conhecer “muito mal o Diogo Ayres de Campos”, esteve uma vez com ele num painel de debate sobre este tema no programa “É ou Não É, da RTP”. Mas reconhece que “a orientação dele está bem feita”, na coordenação do grupo de trabalho.

“Agora não podem é vir dizer que não foram consultados, que não estavam no grupo de trabalho, e que o Diogo Ayres de Campos é o diabo. Isto não faz sentido nenhum.” “Lembraram-se agora que ele tem de ser afastado? Ele está no grupo de trabalho, a coordenar há imenso tempo com pessoas da Ordem dos Médicos e agora, de repente, passou a ser o Diabo?”

“É isso com que eu tenho de me focar. Ele fez um trabalho sério e bom, no ponto de vista desta orientação. Isso é que me interessa, que é o bem-estar das pessoas. Agora de repente passou a ser mau para Ordem dos Médicos que não o quer lá? Isso é muito estranho, mas eles lá sabem”.

“Até porque todos os obstetras, que hoje são obstetras, sabem muito bem com quem aprenderam a fazer partos normais, aprenderam com as enfermeiras obstetras. Portanto, isto é uma birra da Ordem do Médicos, nada mais”, volta a frisar.

“Mas é uma birra que afeta a vida de todos nós. É como as crianças, quando elas fazem birra, os pais têm obrigação de as educar e ensinar. Aqui é o Ministério da Saúde que tem essa obrigação”, desafia Ana Rita Cavaco e avisa que a tutela “não pode ceder a este tipo de chantagens ou de pressões porque em todo o mundo isto já evoluiu num sentido completamente contrário. Todos trabalham em complementaridade, só Portugal é que tem uma mentalidade muito poucochinha e que não nos permite evoluir com melhores cuidados para as pessoas e em segurança”.

“O que nós não podemos continuar a ter é grávidas a morrer porque andaram não sei quantos quilómetros porque não tinham assistência ou bebés a morrer porque não tinham assistência. Isso é que é grave. É nisto que temos de pensar. Fazer birra quando há pessoas a morrer é uma coisa muito feia”, reforça Ana Rita Cavaco.

“Isto é uma birra dos médicos. (...) Mas é uma birra que afeta a vida de todos nós. É como as crianças, quando elas fazem birra, os pais têm obrigação de as educar e ensinar. Aqui é o Ministério da Saúde que tem essa obrigação.”

Sobre as declarações do bastonário da Ordem dos Médicos à Lusa, Carlos Cortes reafirmou a disponibilidade para colaborar com a DGS, mas “obviamente com um enquadramento que tem de ser feito à luz do protocolo”, disse na carta endereçada a Graça Freitas, na qual é pedido o afastamento de Diogo Ayres de Campos.

“Que fique claro que nem a Ordem dos Médicos, nem a Ordem dos Enfermeiros mandam na DGS, no Governo ou no Ministério da Saúde”, esclarece Ana Rita Cavaco quando confrontada com a referida carta enviada à DGS.

“Nós somos consultados, participamos nos grupos de trabalho ou nas comissões que nos pedem, mas o poder de definir o que lá sai não está nas ordens profissionais, está nos organismos que são tutelados pelo Ministério da Saúde”, sublinha.

“A Ordem dos Médicos acha que manda de facto naquilo que tem de ser feito e nas opções estratégicas inclusive do Governo?”, questiona. “Não, nós somos órgãos reguladores das profissões, não fomos eleitos para o govenro”, responde a bastonária.

“É esta forma de estar que tem de se mudar, as pessoas têm de perceber que estamos a trabalhar para o mesmo, a bem das pessoas e não temos de ter medo de perder um poder que não existe porque nem sequer o temos”, acrescenta.

E vai mais longe, “o sucesso deve-se a todos e como os médicos não têm criados, nenhuma profissão é criada deles, então as coisas têm de estar no papel de acordo com aquilo que já é feito ou esperavam que durante mais 50 anos o enfermeiros continuassem a fazer os partos e não pudessem ter uma palavra a dizer no internamento de grávidas de baixo risco e eventualmente, se isso vier a acontecer, na prescrição de exames e medicamentos? Claro que não”, afirma, lembrando o que está escrito na norma.

Para a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, o papel dos e das enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica tem sido fundamental e não percebe por que razão é um problema para os médicos serem os enfermeiros a gerir os internamentos de grávidas de baixo risco.

“As coisas, na sua evolução, e aquilo que já acontece nos partos normais é um sucesso muito devido àquilo que os enfermeiros especialistas fazem, esse sucesso tem de ser reconhecido, para todos. Qual é o problema da Ordem dos Médicos com o facto de os enfermeiros passarem a fazer o internamento das grávidas de baixo risco?”

“Daqui a pouco vêm dizer que são eles que fazem a triagem de Manchester na urgência. É que não são, toda a gente sabe”, diz a bastonária dos enfermeiros em referência à triagem dos doentes feita nas urgências quando é atribuída uma pulseira com a cor que determina a gravidade e rapidez no atendimento ao paciente.

“Deixemo-nos disso, nós temos de trabalhar em conjunto para as pessoas. E esta orientação é meramente o reconhecimento daquilo que já se faz há muitos anos em Portugal”, reconhece a enfermeira.

“As coisas, na sua evolução, e aquilo que já acontece nos partos normais é um sucesso muito devido àquilo que os enfermeiros especialistas fazem, esse sucesso tem de ser reconhecido, para todos. Qual é o problema da Ordem dos Médicos com o facto de os enfermeiros passarem a fazer o internamento das grávidas de baixo risco?”

E lembra que “a especialidade de saúde materna e obstétrica em enfermagem foi das primeiras do mundo, existiu antes de qualquer outra. Hoje, em Portugal, temos 12 áreas de especialidade, mas esta foi a primeira. Antigamente chamavam-se parteiras, mas já não se chama assim. É enfermeiro especialista em saúde materna e obstétrica”, explica “É a evolução das parteiras”, resume.

“A maioria dos problemas do SNS são de questões organizativas em que infelizmente os médicos têm sido uma grande força de bloqueio nesses novos modelos de organização”, remata a bastonária da Ordem dos Enfermeiros.