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Introdução
Perdi a conta aos artigos de opinião que escrevi sobre José Sócrates ao longo dos últimos vinte anos. Nunca escrevi tanto, e jamais voltarei a escrever tanto, sobre outro político.
Havia nele qualquer coisa de novo – uma mistura explosiva de desejo de poder, coragem, carisma, energia, ausência de escrúpulos e descaramento – que me inquietava. Queria que toda a gente visse o mesmo que eu estava a ver. Queria que toda a gente se indignasse como eu me indignava. Não tive grande sucesso até 2014.
Este livro é o pagar de uma dívida que tenho para com quem há tantos anos acompanha a minha proclamada obsessão.
E é também uma tentativa de responder, de forma profunda e estruturada, a duas questões. Por um lado, porque é que Sócrates é um político diferente dos outros. Por outro, porque é que Portugal é um país onde um político com o seu perfil conseguiu atingir o lugar mais poderoso do Estado e manter-se lá durante seis anos, no meio de inúmeros escândalos.
Sócrates sempre foi apenas metade do problema, e nem sequer a metade que mais me interessava. As características individuais do antigo primeiro-ministro seriam irrelevantes se não tivessem encontrado terreno fértil nas fragilidades institucionais do país.
Foi no ecossistema político português que Sócrates encontrou o ambiente propício para impor a sua personalidade e o seu estilo, conquistando a primeira maioria absoluta para o PS em 2005; vencendo confortavelmente as eleições, já rodeado de gravíssimas suspeitas, em 2009; e despedindo-se depois da derrocada económica com 28 por cento nas eleições de 2011 e mais de 1,5 milhões de votos. Um número impressionante: nas legislativas de 2015, António Costa obteve apenas mais 180 mil votos do que José Sócrates conseguira quatro anos antes. Nas legislativas de 2025, Pedro Nuno Santos alcançou menos 125 mil votos do que José Sócrates nas eleições de 2011.
Não foram os escândalos que o derrubaram. Foi a crise económica e a vinda da troika. Não tivesse Portugal ficado às portas da bancarrota e é possível que Sócrates tivesse permanecido muitos mais anos em São Bento, rodeado de suspeitas e de fiéis. Uns e outros nunca lhe faltaram, e a vasta corte de devotos só começou a dispersar quando o seu poder se esgotou. Não foi a acumulação de casos que o destruiu politicamente. Foi a diminuição da sua influência. E é por isso que o problema nunca foi apenas Sócrates. Foi também, e em primeiro lugar, o país que o permitiu e o sustentou.
Este ponto é essencial, porque em boa parte justifica o projecto deste livro. Vou procurar demonstrar que não é verdade que tivéssemos de esperar por 2014 e pelas informações recolhidas na Operação Marquês para compreender quem José Sócrates era. Pelo contrário: sempre houve informação pública que permitia traçar o seu perfil, entender a sua forma de exercer o poder, e encontrar padrões de actuação que o tornavam impróprio para desempenhar o cargo de primeiro-ministro. Mesmo as notícias sobre o seu passado que apenas começaram a surgir a partir de 2007 poderiam perfeitamente ter sido reveladas anos antes, se o
escrutínio dos candidatos a primeiro-ministro fosse mais exigente. Havia muita informação em domínio público, parte dela anterior às eleições de 2005. Só que essa informação não circulou como devia, nem teve o impacto que merecia, num país com um espaço público supostamente crítico e atento.
José Sócrates nunca existiu
Para demonstrar tudo isto, defini uma regra de ouro: limitar a minha investigação àquilo que foi publicado em jornais, revistas e livros; ao que foi ouvido nas rádios ou visto nas televisões. Não procurei novas fontes, nem fui atrás de histórias inéditas, porque tal procedimento iria pôr em causa um aspecto essencial da minha tese: a personalidade de José Sócrates, as suas contradições e os seus métodos estiveram à vista de todos ao longo dos anos em que ele exerceu o poder. Sócrates escondeu-se debaixo dos holofotes.
Para o perceber e desmontar, bastaria ter lido com mais alguma atenção os jornais, analisado com mais algum cuidado as suas entrevistas, e abusado ligeiramente menos da credulidade.
A opção exclusiva por fontes secundárias tem ainda outro objectivo: surpreender o leitor com um número significativo de histórias que foram publicadas ao longo dos anos sobre José Sócrates, nas quais poucos repararam na altura, e das quais já ninguém se lembra. Mesmo estando ele há várias décadas no espaço público; mesmo sendo uma das figuras mais marcantes da nossa democracia; mesmo sendo o processo Marquês um caso único na História de Portugal; Sócrates permanece, até hoje, um ilustre desconhecido.
Isso acontece, em parte, por causa do esforço que sempre colocou em proteger o seu círculo familiar e de amizades.
Acontece, noutra parte, por causa da cultura de silêncio adoptada por aqueles que se dedicam a actividades políticas e empresariais duvidosas à sombra dos dinheiros públicos.
E acontece, em larga parte, porque existe um péssimo trabalho de preservação da nossa memória colectiva, desde logo por escassearem nas livrarias e nas bibliotecas livros como este – que recordem e fixem o que se passou, na esperança de que não se volte a passar.
Portugal está cercado por estruturas de inércia que convidam à apatia cívica, ao mesmo tempo que faltam estruturas de resistência ao alastramento das figuras carismáticas que extrapolem os seus poderes executivos e legislativos – ainda que esse abuso de poder seja feito na forma de atentado ao Estado de Direito, e sem pudor em descompensar os equilíbrios do regime democrático. Sócrates foi esse tipo de homem, ao qual o país, em geral, e a justiça, em particular, se mostraram incapazes de resistir com um mínimo de eficácia enquanto foi primeiro-ministro.
A táctica para controlar Portugal não foi nova quanto aos métodos, mas foi-o na dimensão. Graças ao seu engenho e ao nosso torpor, José Sócrates adoptou a nível nacional a lógica de conquista do poder que ele aprendera a nível local, e que dominava enquanto homem do aparelho socialista do distrito de Castelo Branco desde a primeira metade da década de 1980. Essa estratégia foi sendo aplicada por ele e pelo seu grupo de fiéis ao Estado central, com inesperado sucesso, alimentada por uma cultura partidária de obediência cega ao chefe de turno.
É verdade que nessa época muitos desenvolveram uma grande repulsa em relação à sua figura. O meio termo tornou-se impossível – quem não era por Sócrates era contra Sócrates. Assim continuou a ser, com agravamentos constantes, até ao fatídico 21 de Novembro de 2014. Nessa noite, numa das mangas do aeroporto da Portela, nove anos depois de ter sido eleito primeiro-ministro e três anos após ter abandonado o poder, José Sócrates foi detido por suspeitas de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção.
A interminável colecção de casos que o envolveram estava agora simbolicamente reunida sob um único nome: Operação Marquês. Após o caso Freeport; a licenciatura da Universidade Independente; a compra dos apartamentos no edifício Heron Castilho; a Cova da Beira; a Face Oculta, com as suas derivações na TVI e no Taguspark; os projectos de casas na Guarda; e tantos outros casos menos conhecidos, a justiça portuguesa conseguira, por fim, reunir indícios suficientes para prender preventivamente um antigo primeiro-ministro.
O nome da operação é mais adequado do que os próprios investigadores imaginaram. Só recuando ao século XVIII e aos tempos do Marquês de Pombal podemos encontrar um processo judicial por enriquecimento ilegítimo tendo como alvo um primeiro-ministro. Mas mesmo Sebastião José de Carvalho e Melo, embora declarado culpado das acusações, foi considerado demasiado velho para cumprir outra pena que não o desterro. Desde o ano de 1143, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa foi o único primeiro-ministro português a cumprir tempo de prisão efectiva ao abrigo de um processo judicial por suspeitas de corrupção.
Confrontados com tamanha raridade, torna-se um dever cívico saber quem Sócrates é e como chegou tão longe. É essencial perceber como construiu a sua carreira, como se impôs no PS, como permaneceu seis anos em São Bento, que estratégias utilizou para manter o poder, como criou o seu círculo de fiéis, como geriu a relação entre público e privado, e, em última análise, qual foi o combustível que o impeliu a empenhar a sua vida em tais actividades.
Este projecto chamava-se originalmente José Sócrates Nunca Existiu – O homem que nos enganou e o país que se deixou enganar. O nome era inspirado num livro importante de Eduardo Lourenço de 1976 – O Fascismo Nunca Existiu –, composto por uma recolha de artigos publicados na imprensa logo após o 25 de Abril, entre os quais o pequeno texto que dá título à obra. A ironia contida em O Fascismo Nunca Existiu prestou-se na altura a alguns equívocos.
Eduardo Lourenço não pretendeu negar a existência do fascismo, mas antes analisar o mecanismo através do qual o antigo regime conseguira dissimular a sua natureza aos olhos de boa parte do povo português – como um «cancro omnipresente mas invisível e indolor para o tecido nacional no seu conjunto». O confronto com o aparelho do Estado Novo era inevitável para os apoiantes manifestos do regime e para os oprimidos pelo regime, mas todos os outros – a larguíssima maioria dos portugueses – passaram quatro décadas entretidos com a gestão doméstica das suas vidas e sem demasiados sobressaltos de alma. Daí Eduardo Lourenço concluir: «A doença, se doença era, foi vivida como uma espécie de normalidade que se parece muito à da saúde.»
Esta formulação – uma doença vivida como saúde – é bastante adequada ao processo que pretendo descrever, porque remete para uma mecânica de dissimulação que o país está longe de ter ultrapassado. Não se trata apenas de elencar as características pessoais de José Sócrates que explicam a forma como ele nos enganou. Trata-se também de revelar as falhas colectivas e institucionais – falta de espírito crítico dos seus apoiantes, sectarismo partidário, falta de independência da justiça, falta de escrutínio da comunicação social, excesso de peso do Estado, excesso de credulidade de alguns eleitores, excesso de tribalismo de muitos comentadores – que conduziram a que o país se deixasse enganar. São as duas faces de uma mesma moeda. A sociedade democrática portuguesa, que já dura há mais tempo do que o Estado Novo, continua a absorver manifestações de anormalidade como se de banalidades se tratassem. Sócrates beneficiou dessa complacência e da sua consequência lógica: a incapacidade de reflectir com seriedade sobre o passado recente e inscrever na História a memória dos equívocos colectivos, que é a única forma de conseguir evitar a sua repetição.
Cúmulo da ironia: o mesmo Eduardo Lourenço que descreveu tão bem esse mecanismo em 1976, surgiu em 2014 a caucionar com a sua assinatura e a sua dimensão simbólica de intelectual supremo da pátria a tese de mestrado de José Sócrates. Lourenço acedeu ao convite para assinar o posfácio de uma edição especial de A Confiança no Mundo, onde aproveita para reflectir (nova ironia) sobre o «desejo amoroso do mal» – infelizmente, não como uma denúncia pública do percurso político de José Sócrates, mas como um elogio à sua postura kantiana em face da tortura e à sua disponibilidade humanista para resistir à barbárie. Nem o homem que melhor percebeu Portugal conseguiu perceber José Sócrates.
Esta é uma história fascinante. A vida de Sócrates ganhou a dimensão de uma tragicomédia, com alguns episódios tão bizarros que parecem produto de um guionista inspirado.
A produção e divulgação do livro
A Confiança no Mundo, lançado em 2013, é disso um bom exemplo: do título escolhido às dúvidas acerca do seu autor, passando pela construção de uma dispendiosa estratégia de aquisição de exemplares que permitisse transformá-lo no bestseller do momento, tudo o que se foi sabendo sobre o caso é absolutamente delirante.
Tão delirante que o escritor José Rentes de Carvalho percebeu, e bem, que José Sócrates era uma personagem à procura
de um autor:
«Somos um país de medricas, de gente subserviente, assustada. (…) Um português abertamente arrogante é um sujeito que sai fora da norma. (…) Olhe o José Sócrates: é carismático, é mau, é estúpido. Como personagem romanesca é uma mina de ouro. Mas nenhum escritor pegou ainda nele. Nem os mais jovens. Eu faria dele um Rastignac como o de Balzac.»
Este deslizamento biográfico para os territórios da ficção, dada a singularidade do protagonista e a excentricidade de tantos acontecimentos, é muitas vezes desvalorizado perante a gravidade do processo e a dimensão desmesurada das suspeitas de corrupção. Contudo, há momentos hilariantes na sua história, que podem ajudar a cortar a acidez do drama. Ao mesmo tempo trágico e cómico, José Sócrates não pode ser classificado como um simples corrupto que utilizou a política como meio de obter fortuna pessoal. O dinheiro era para ele aprazível e desejado, mas era essencialmente instrumental, enquanto parte integrante de uma estratégia de poder.
José Sócrates não é um homem sem qualidades, ou uma personagem unidimensional. Ninguém resiste seis anos como primeiro-ministro, rodeado de tantas críticas e de tantas acusações, sem alguma dose de virtude. Sócrates era um político de primeira água, com uma capacidade de decisão e de mobilização invejáveis, que conseguiu criar a impressão de que queria reformar e fazer avançar o país.
Da política das drogas à gestão dos resíduos sólidos urbanos, há medidas que José Sócrates tomou ainda na década de 1990, muito antes de ser primeiro-ministro, que fizeram a diferença na sociedade portuguesa. Nesse sentido, ele foi realmente aquilo que de mais próximo houve de Cavaco Silva no Partido Socialista, o que explica porque é que parte da direita ficou tão encantada com a sua governação durante, pelo menos, os dois primeiros anos de maioria absoluta. O objectivo deste livro é mostrar Sócrates em toda a sua complexidade, e não transformá-lo maldosamente numa caricatura de si próprio. Nem ele o merece, nem este livro cumpriria os seus objectivos se o resultado fosse um retrato sem espessura, nem profundidade.
Dada a dimensão do empreendimento, a ideia original teve de se desdobrar em mais do que um volume. José Sócrates tem uma vida política que se estende por mais de quatro décadas, e que necessita obrigatoriamente de ser registada com algum nível de detalhe num projecto que se propõe revelar o homem, mas também o país que a ele se rendeu. Sem a história completa dos anos Sócrates corremos o risco de continuar a fingir que o tempo em que estivemos doentes foi passado de óptima saúde.
Ao fim de quase dez anos de trabalho, com longas interrupções por razões profissionais e familiares, este projecto ganhou um título mais simples e puramente descritivo.
O volume que agora tem em mãos – Ascensão – é dedicado ao percurso de José Sócrates desde o seu nascimento até à sua transformação no homem mais poderoso do país, quando conquistou a primeira maioria absoluta para o Partido Socialista no início de 2005. Seguir-se-á um segundo volume, intitulado Poder, que acompanhará os seus seis anos como primeiro-ministro, entre 2005 e 2011. Se depois desse volume ainda me sobrar tempo e paciência, haverá um terceiro livro – Queda – dedicado à sua detenção, acusação e julgamento.
Poderá parecer – às vezes a mim parece-me – que estou a gastar demasiado tempo de vida a reflectir sobre José Sócrates.
Nos momentos de maior impaciência, prefiro acreditar que estou a investir esse tempo a reflectir sobre Portugal.
Acredito que os seus anos como primeiro-ministro, e a forma como o seu processo judicial se desenrolou e continua a desenrolar, vão marcar a história da nossa democracia.
Sócrates foi um pioneiro: o primeiro político português sem linhagem – cresceu na Covilhã – e sem currículo – uma licenciatura duvidosa que lhe foi atribuída por uma universidade sem prestígio quando já tinha quarenta anos – a conseguir chegar a primeiro-ministro. Ele é, nesse sentido, o primeiro primeiro-ministro filho da democratização portuguesa.
Alguém com estas limitações jamais teria conseguido romper as estruturas hierárquicas da Monarquia, da Primeira República ou do Estado Novo e alcançar o lugar mais poderoso do país. Escrever sobre José Sócrates é uma outra forma de escrever sobre o Portugal dos últimos cinquenta anos.
Como todos os grandes manipuladores, Sócrates moveu-se como uma personagem de ficção dentro da sua própria vida, construindo compartimentos selados, alimentando circuitos alternados de amizades, e mantendo existências paralelas graças a uma extraordinária capacidade de ocultação.
E graças, também, à vocação de muitos – e ao interesse de outros tantos – para ignorar o que estava à frente do nariz. Ao longo deste livro serão adiantadas algumas pistas sobre as suas motivações, desejos e as fontes da sua inesgotável energia, mas sem a pretensão de entrar no seu sanctum sanctorum, o lugar onde guarda os segredos mais íntimos.
No que diz respeito à investigação da sua vida interior, ou a um retrato psicológico profundo, a literatura tem muito melhores instrumentos à disposição do que o jornalismo ou o ensaio.
Em última análise, este projecto não ambiciona entrar na cabeça de José Sócrates. Ambiciona apenas que José Sócrates não volte a entrar na nossa. Ele ou outros como ele, que venham um dia a assemelhar-se nos métodos, no discurso, no charme e na desfaçatez.
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