Esquecer o Horário das 9h às 5h
Uma das vantagens de me tornar trabalhadora independente, todos me diziam, era poder trabalhar de pijama e usar chinelos no trajeto da cama para o portátil. Depois de uma década de saltos de 4 centímetros e vestidos que só podia limpar a seco, isto pareceu-me um conceito bizarro e estranho — um mundo novo e remoto que me interessava ouvir falar, mas que não tinha nenhuma intenção de visitar. Um pouco como Las Vegas. E, no entanto, apenas quatro semanas após o início da minha nova vida, dei por mim a bater alegremente no teclado com uma peça de seda estampada com um elástico na cintura às duas e meia da tarde. Dizia a mim mesma que não era assim tão mau porque: a) era sexta-feira; b) estava PRATICAMENTE SEMPRE escuro lá fora no inverno, por isso a roupa de dormir parecia apropriada; e c) estava a fazer entrevistas telefónicas com pessoas nos EUA e lá era de manhã. Mas, na verdade, estava uma desgraça. Prometi-me que quando o relógio batesse as 16h30 ia tomar um duche, vestir-me e talvez até pentear o cabelo. Como uma adulta que se preze. Essa hora tornou-se o ponto de corte para qualquer tipo de desleixo que não gostaria que mais ninguém visse. Isto porque o Homem-Lego chegava a casa por volta dessa hora (francamente ridícula).
De início, apanhou-me desprevenida. Umas semanas antes, enquanto eu estava de pijama a trabalhar no portátil, uma rajada de ar gelado entrou pela porta da frente quando esta se abriu e ali, mal se distinguia numa escuridão que destruía a alma, estava um vulto.
— Olá? — perguntei, alerta para o facto de um intruso ter entrado na casa ou que os Srs. Barba & Barba estariam de volta.
— Sou eu — respondeu o Homem-Lego.
— Que fazes aqui? — Estaria doente? Perdera o emprego? A sede da Lego fora evacuada sob ataque de mísseis? (O meu lema: Porquê pensar racionalmente quando se pode acrescentar um pouco de drama?)
— E fecha essa porta! Está um gelo do caraças!
— Obrigado pela receção calorosa — foi a sua resposta, antes de largar a mala e explicar que o escritório ficava praticamente vazio
às 16 horas. A maioria das pessoas com filhos já saíra das secretárias para os ir buscar à escola ou à creche às 15h.
— Às três da tarde?
— Sim.
— Todos saem do trabalho muito cedo? Ninguém compete para ser o último a deixar a secretária? Nem encomendam comida para fazer serão noite adentro?
Encolhe os ombros: «Que eu tenha visto, não.»
Isto era alucinante. Em Londres, se estivéssemos os dois em casa às 19h, a tempo de ouvir The Archers, seria motivo de celebração. A maioria das vezes, só nos víamos aos fins de semana ou encontrávamos um corpo quente na cama a altas horas da madrugada, após termos trabalhado até tarde ou saído com amigos.
Mas aqui, as quatro da tarde eram as novas sete da noite. As 16 horas eram a hora de ponta na Dinamarca. Normalmente, não comecei o trabalho da tarde sequer, tendo pelo menos mais algumas horas de vida. E, no entanto, eis que ele estava de volta a casa, a querer pôr música alta, a conversar e a fazer barulho com as coisas.
Já me mentalizara deste novo estado das coisas e das chegadas antecipadas do Homem-Lego quando ouvi um carro a entrar na garagem às duas e meia. O som do puxador da porta a rodar pregou-me um susto tão grande que derrubei um copo de água enquanto falava com um especialista em gestão de tempo em Nova Iorque.
Tive de fingir-lhe que os palavrões daí resultantes eram tosse e que o cão, que ladrava loucamente, era uma interferência na linha transatlântica do Skype.
— Bem, muito obrigada pelo seu tempo — disse enquanto rabiscava algumas notas finais numa estenografia pobre. — Não o empato mais! — acrescentei, ligeiramente maníaca, para me fazer ouvir por cima do barulho do cão, que choramingava de excitação com o regresso do dono, e do Homem-Lego, que trazia consigo correntes de ar e o seu barulho característicos. Foi afetuosamente maltratado pelo cão, o que me deu alguns momentos para pensar no meu visual decididamente despojado. Talvez possa usar o pijama de início de tarde como homenagem ao Hugh Hefner...
— Chegaste cedo a casa! — Não pareceria mais culpada se me tivesse apanhado em flagrante com o interesse amoroso da Sarah Lund na terceira temporada. (Procurem no Google. É uma delícia.)
— Sim. Parece que todos saem mais cedo à sexta-feira. — Ele enfiou a cabeça pela porta e viu o meu estado desgrenhado. — Não te vestiste! Estás bem? Sentes-te mal?
Pensei em fingir algo que não pusesse em risco a minha vida e que fosse passageiro, mas depois cedi à pressão. «Não», respondi, envergonhada. «É para uma reportagem.» Claro que era mentira.
O Homem-Lego olhou em redor para o caos de pratos, canecas e provas de petiscos da padaria à minha volta. «Qual é o tema? “O desleixo é a nova moda”?»
— Quero que saibas que este pijama é da Stella McCartney — respondi, debilmente, antes de tentar mudar de assunto. — Então, como foi a tua... manhã?
— Boa, obrigado. Estive a aprender sobre o «equilíbrio entre vida profissional e pessoal» dinamarquês.
— E não é que... estás em casa à hora do almoço!
Ele ignorou o facto. «Aparentemente, à sexta-feira, não precisas de chegar antes das oito e meia e depois há...», aqui ele fez um som gutural estranho, «mooooaaaarrrnnnsssmullllll.»
— Desculpa, o quê?
— Escreve-se morgenmad e significa «comida matinal» — explicou. Ele já dominava algum vocabulário-chave baseado em comida e ainda nem sequer começáramos as aulas de dinamarquês. Senti-me um pouco invejosa. — Todos no escritório se revezavam para fazer e trazer pães e bolos. Um dos rapazes levantou-se às quatro da manhã para fazer os pãezinhos para hoje.
— Meu Deus! E com padarias tão boas... — Não pude deixar de pensar que pouco poderia acrescentar ao mundo da pastelaria dinamarquesa, se me levantasse duas horas mais cedo.
— Sim. Então, o mooaarrnnssmull durou uma hora, depois tivemos uma reunião em que concordámos que precisávamos de outra reunião antes de podermos tomar uma decisão, depois tive outra reunião em que houve mais pãezinhos e café, depois fomos todos almoçar às onze e meia, e depois, bem, quando acabámos de comer, era o aniversário de alguém, por isso tivemos mais bolo. Depois, a maioria das pessoas começou a arrumar as secretárias para o fim de semana.
— Dia atarefado... — murmurei sarcasticamente.
— Sim, estou arrumado — respondeu, com uma cara séria, atirando-se para o sofá e folheando uma revista de interiores.
Tanto quanto consegui perceber, uma boa parte do dia de trabalho dos dinamarqueses parecia ser ocupado com beberetes. Aparentemente, a Lego proibiu as máquinas de venda automática e todo o açúcar nas instalações há alguns anos, mas agora fornecia aos trabalhadores cestos gratuitos de pão de centeio, fruta e cenouras.
— Então, o maior fabricante de brinquedos do mundo alimenta-se apenas de betacaroteno, cereais integrais e um gosto infantil pela vida?
— Se fizeres a tua dose por dia, podes conseguir tudo — o Homem-Lego encolheu os ombros.
O almoço era um assunto comum, tomado por volta das onze, onze e meia da manhã diariamente, quando abandonavam as secretárias para comerem juntos na cantina do pessoal. Era um espaço branco e luminoso, com mobiliário de cor primária das peças Lego e muita carne de porco, arenque e todos os componentes para mørrebrød (as tradicionais sanduíches abertas de pão de centeio), mas nem um pudinzinho à vista.
— Bem, não se pode ter tudo — disse-lhe.
Ele explicou que, como o açúcar era escasso, o morgenmad e qualquer outra ocasião que envolvesse a chegada de produtos doces seria Um Grande Evento. Esta semana, assistira à sua primeira festa de aniversário dinamarquesa, quando a secretária de um colega ficou coberta de bandeiras e a equipa se reuniu para cantar algo animado.
— Não sabia muito bem qual era o tema da canção, mas acontecia muita coisa. É difícil participar quando não se sabe o que se está a passar, mas no último verso já tinha adivinhado que tinha que ver com trombones... — Fez uma mímica rápida para ilustrar o seu ponto de vista e assinalei que eu acabara de ler que os dinamarqueses estavam classificados como a nação mais desavergonhada do mundo. — Eles devem ser praticamente imunes ao embaraço.
— Isso faz sentido — ele acenou com a cabeça. — Na verdade, há sempre muita cantoria.
— A sério? — Isso era como erva gateira para mim. — Nunca disseste! Conta-me tudo! Sabes que adoro uma boa canção bizarra motivadora de equipas...
— Está bem, está bem, eu conto-te — disse ele, com alguma relutância. — Mas prometes que não vais escrever sobre isso algures ou usá-lo como uma piada?
— Claro que não! — menti.
— Bem, na verdade, há uma banda no escritório... — bati palmas de alegria — ... eles tocam sempre que possível e... — olhou para mim com desaprovação — ... ninguém se ri. — Percebi que nunca, mas nunca, iria receber um convite para ver a banda do escritório em ação. — E também gostam de inventar canções sobre a equipa ao som de êxitos populares...
— Não! — melhor do que um rebuçado. — Como por exemplo?
— Então, esta semana, alguém inventou uma canção sobre o nosso departamento ao som da Mama Mia dos ABBA. A minha parte preferida era algo do género: «Temos trabalhado tanto para atingir os nossos KPI» — oh, que significa Key Performance Indicators — acrescentou —, caso não saibas...
— Claro que sei — respondi. — Continua!
— Desculpa, mas depois disto vem a parte do «de de de...». Juntei-me a ele, para apressar a coisa: «De de de de de de de de
de de, de de de de de de de de...» antes de ele entrar com a frase seguinte:
— «E todos concordamos que continuamos a ser um grupo de tipos divertidos...»
— De de de de de de de de de, de de de de de de de de...
— E depois... e depois... não me lembro do resto.
— Tenta lá!
Ele enrugou a cara e tentou lembrar-se, antes de abanar a cabeça e abrir a boca. «Não consigo, desculpa.»
— Os dois primeiros versos eram espetaculares...
— Obrigado — agradeceu, como se fosse ele próprio a ficar com os louros da composição. — Também há muita bateria, acrescentou, ao sair da sala.
— Quê? — Ele não podia simplesmente largar essa bomba percussiva e ir-se embora. — Nas reuniões e nos workshops — disse a partir da cozinha —, há batucada muitas vezes. Em baldes. Ou em caixas. Ou bongos. Tudo o que se possa tocar. — E disse isto como se fosse a coisa mais normal do mundo. Como ir buscar agrafos novos ao armário do economato.
— E... todos alinham? — Levantei-me para o seguir, para saber mais pormenores.
— Ah, sim. Todos participam em tudo. Somos todos iguais, lembras-te? Embora se possa saber quem são as pessoas mais importantes; elas tendem a escolher os maiores bongos.
— Uau! — Fiquei incrivelmente desapontada por não testemunhar em primeira mão as delícias da bateria no escritório. — E algumas pessoas são mesmo músicos? Acabam por competir para serem os melhores bateristas?
Ele sabia o que eu estava a pensar. Sabia que ali, eu me tornaria imediatamente competitiva em relação à minha bateria e começaria a exibir-me.
— Não — concluiu com firmeza. — Não importa quão bom baterista, cantor ou trombonista tu és, gabares-te de qualquer coisa é mau. Há um mantra no meio, «Lego sobre o ego», e as pessoas seguem-no. — E explicou-me que ele e os colegas não dinamarqueses foram orientados para os escritos de um autor dinamarquês-norueguês dos anos 30, Aksel Sandemose, para compreenderem melhor a melhor forma de se «integrarem» no local de trabalho na Dinamarca. Sandemose delineou dez regras para viver na Dinamarca (também conhecidas como Lei de Jante) no seu romance En Flyktning Krysser Sitt Spor. Estas, tanto quanto eu e o Google Translate conseguimos perceber, são as seguintes:
1. Não deves pensar que és especial.
2. Não deves pensar que és tão bom como os outros.
3. Não deves pensar que és mais inteligente do que nós.
4. Não te deves convencer de que és melhor do que nós.
5. Não deves pensar que sabes mais do que nós.
6. Não deves pensar que és mais importante do que os restantes.
7. Não deves pensar que és bom em alguma coisa.
8. Não te deves rir de nós.
9. Não deves pensar que alguém se preocupa contigo.
10. Não penses que nos podes ensinar alguma coisa.
— Caramba, não se pode fazer muito por aqui, pois não?
— Oh, e há outra, mas que não se diz.
— Ai, sim?
— «Não toleres o presentismo.» Se alguém se armar em mártir, ficar até tarde ou trabalhar demasiado, é mais provável que lhe deixem um folheto sobre eficiência ou gestão do tempo na secretária do que qualquer outra simpatia.
— Caramba! — Isto é que era uma mudança em relação à vida em Londres. No meu país, responder a um email à meia-noite ou ficar na secretária até às oito da noite era considerado um distintivo de honra. Mas na cultura de trabalho dinamarquesa, isso implicava que éramos incapazes de fazer o nosso trabalho no tempo disponível.
As secretárias estavam todas equipadas com sistemas hidráulicos para os funcionários poderem trabalhar de pé, se assim o preferissem, algo que estava provado ser melhor para a saúde (de acordo com uma investigação publicada no Journal of Social Psychological and Personality Science), bem como facilitar reuniões informais mais rápidas e dinâmicas ou stand ups, como eram chamadas. Em vez de perguntar a um colega se se podem «sentar para conversar», fazem uma stand-up. «E acabamos em metade do tempo», constatou o Homem-Lego.
Também me explicou que ninguém usava títulos nem gravatas — de facto, era mais provável ver executivos com camisolas de capuz, ao estilo do Facebook, do que de fato. De alguma forma, consegui persuadir o Homem-Lego a deixar-me ir almoçar com ele ao trabalho (depois de prometer cumprir várias condições, nomeadamente não mencionar a canção dos ABBA nem pedir demonstrações de bateria).
O ambiente descontraído de Silicon Valley com sede da Google sentiu-se assim que entrei na sede envidraçada do sonolento centro residencial de Billund. Sentei-me à vontade nos sofás circulares, moldados para se assemelharem ao relevo da icónica peça Lego, e ponderei se seria ou não mau brincar com a piscina gigante de peças brancas na área da receção. O Homem-Lego veio ter comigo e acompanhou-me pelo escritório, passámos por salas de reuniões, todas com nomes de brinquedos. Isto foi algo que me tranquilizou, depois de algumas semanas a ouvir o meu marido ao telefone a falar de uma sessão às nove e meia na Tinsoldaten (Soldadinho de Chumbo), seguida de uma sessão em Bamse (Urso de Peluche). Cada sala tinha uma grande taça de vidro com Lego no meio da mesa para incentivar os empregados e os convidados a construir enquanto conversavam. «Em algumas reuniões, mal consigo ouvir uma palavra devido ao barulho das pessoas a vasculhar as taças à procura da peça certa», reparou o Homem-Lego.
A Lego não era apenas mais um negócio na Dinamarca — era um modo de vida. Um farol cultural que inspirava uma dedicação de culto. Os dinamarqueses orgulhavam-se do produto de exportação mais famoso do seu país, que atualmente fazia com que os pais, de meias nos pés, praguejassem quando pisavam as peças viradas ao contrário, em cento e trinta países de todo o mundo. Existe uma enorme comunidade online de fãs adultos de Lego, ou AFOL, como gostam de se chamar a si próprios («Não são antes “cromos que não conseguem arranjar namoradas”?», perguntei ao Homem-Lego, por via das dúvidas. «Não», respondeu-me, severamente. «Fica a saber que o David Beckham e o Brad Pitt já se assumiram como AFOL, por isso estou numa companhia de prestígio...»). O Filme Lego bateu recordes de bilheteira em 2014, e a sua mensagem de criatividade, trabalho de equipa e o «poder da brincadeira» causou tanto impacto que obteve mais críticas do que qualquer outro filme infantil até à data e até atraiu acusações de propaganda anticapitalista. Os executivos «trotsquistas» da Lego ficaram encantados com as vendas extra de bilhetes e brinquedos que esta publicidade gratuita gerou, e algumas mentes mais jovens foram inspiradas a tentar viver um pouco mais à dinamarquesa. Após o almoço (pão de centeio, salada e carne de porco, como prometido, sem um pingo de sacarose), consegui fazer uma visita guiada à fábrica para ver o porquê de tanto alarido e juntaram-se-me alguns turistas do Japão que vieram de avião especialmente para esta honra. Vi onde eram feitas as minifiguras, desde os seus rostos sorridentes amarelos até às mãos em forma de U e ao cabelo capacete. Algumas impressões erradas eram brutalmente deitadas fora, e só os brinquedos mais imaculados passavam para a área seguinte para serem embalados por duendes... quero dizer, «trabalhadores». O Lego não é o brinquedo mais barato nas prateleiras, mas a qualidade é valorizada acima de tudo. O fundador, Ole Kirk Christiansen, repreendeu uma vez o seu filho, Godtfred, por anunciar orgulhosamente que conseguira poupar dinheiro em tinta aplicando uma camada mais fina em cada brinquedo. Ole deu-lhe instruções para retirar essa remessa toda e voltar a pintar cada um deles, dizendo: «só o melhor é suficientemente bom» — uma frase que foi adotada como lema da Lego.
Atualmente, estimava-se que a empresa valesse 14,6 mil milhões de dólares (ou cerca de 13,8 mil milhões de euros) e era o maior fabricante de brinquedos do mundo. Existiam quinhentos e sessenta mil milhões de peças Lego, ou seja, oitenta e seis para cada pessoa no planeta (embora nunca tivesse sido uma grande fã de Lego em criança, não conseguia deixar de pensar em quem teria as minhas...).
A Lego produz quatrocentos milhões de pneus anualmente para os seus veículos, tornando-a oficialmente o maior fabricante de pneus do mundo. Ah, e são vendidos sete conjuntos Lego por segundo. Lá se foi mais um. E mais outro. E mais outro.
O neto de Ole Kirk Christiansen, Kjeld, era atualmente o dono da empresa, o que fazia dele o homem mais rico da Dinamarca. Mas ele evitava os paraísos fiscais tropicais ou as luzes brilhantes de Copenhaga e escolheu viver em Billund, a pequena cidade onde tudo começou. A sede da Lego ainda se situava na Jutlândia, e as pessoas de alto escalão de todo o mundo eram encorajadas
a encontrar-se com o fabricante de brinquedos nas traseiras do nenhures do mundo. Os Kirk Christiansens não só fizeram de Billund a sua casa, como também pagaram para a cidade ter o seu próprio aeroporto (o segundo maior da Dinamarca, numa cidade com pouco mais de seis mil habitantes), uma igreja, um centro comunitário, uma escola, um centro para jovens e uma biblioteca. Na Jutlândia, há muita estima pelo Kjeld da Lego, que misteriosamente alterou a grafia do seu apelido para Kirk Kristiansen com um K, e era agora afetuosamente chamado (de forma imprudente) «KKK».
Era seguro dizer que o Homem-Lego estava bastante satisfeito com o seu novo emprego. O que era bom, porque senão teríamos desenraizado as nossas vidas para nada. Sem pressões... Perguntei-lhe do que gostava mais e respondeu que, além da comida, das canções e do desconto para os funcionários na Lego Shop, o melhor é que o trabalho era, de facto, interessante. «Muitos dizem que, aqui, as pessoas não se queixam do trabalho como no meu país.
«Não escolhem uma profissão com base em quanto vão ganhar. Escolhem-na com base no que lhes interessa. A educação é gratuita, por isso qualquer pessoa pode formar-se no que quiser. Sabem que vão ser muito tributados de qualquer forma, por isso mais vale concentrarem-se em fazer aquilo de que gostam, em vez de se concentrarem naquilo que lhes vai dar um salário chorudo.»
— Então, há menos incentivos para sacrificar a realização profissional pelo todo-poderoso dinheirinho? — perguntei.
— Precisamente, porque quanto mais se ganha, mais impostos se pagam.
Ele explicou-me uma palavra que lhe ensinaram e que resumia a atitude dinamarquesa em relação ao trabalho: arbejdsglæde — de arbejde, a palavra dinamarquesa para «trabalho», e glæde, a palavra para «felicidade». Significava literalmente «felicidade no trabalho», algo que era crucial para os escandinavos viverem uma boa vida. A palavra existe exclusivamente nas línguas nórdicas e não foi encontrada em mais nenhum lugar do mundo. Em contrapartida, os turistas que encontrei na minha visita à fábrica contaram-me que os japoneses tinham a sua própria palavra que resumia a abordagem do seu país ao trabalho: karoshi, que significava «morte por excesso de trabalho». Não havia perigo de isso acontecer na Dinamarca.
Mais tarde nesse dia, eu e o Homem-Lego estávamos a comparar agendas para a semana seguinte quando ele me disse que ia estar fora durante dois dias.
— É um retiro de equipa. Temos de levar roupas largas e uma mente aberta, aparentemente, para «explorar o compromisso através do ioga».
— Desculpa? — gaguejei. O Homem-Lego nunca fez uma saudação ao sol na vida.
— É o que diz o email... — apontou para o ecrã do computador, agora ligeiramente defensivo.
— Que quer dizer «compromisso através do ioga»?
— Não sei — encolheu os ombros —, mas parece que não vais ser a única a trabalhar de pijama na próxima semana.
O equilíbrio entre a vida profissional e pessoal do Homem-Lego parecia estar em muito boa forma. Mas uma empresa familiar de brinquedos, cujo objetivo era fazer as crianças felizes e desenvolver a criatividade, nunca seria o mais cruel dos ambientes. Não pude deixar de me perguntar se a experiência do Homem-Lego seria única. Será que algo semelhante acontecia em todos os locais de trabalho dinamarqueses? Decidi, então, investigar outras áreas do trabalho na Dinamarca.
Fiz alguma pesquisa e descobri que os trabalhadores do sector público também não se saíam muito mal. O pivô americano da ABC News, Bill Weir, dera fama internacional aos homens do lixo dina- marqueses há alguns anos, quando fez uma viagem a Copenhaga e conheceu Jan Dion. Jan contou a Bill que adorava recolher o lixo como forma de ganhar a vida, porque trabalhava apenas cinco horas por dia e podia passar o resto do tempo em casa com a família ou a treinar andebol na escola dos filhos (53% dos dinamarqueses fazem algum tipo de trabalho voluntário, segundo uma sondagem do Ministério da Cultura — outra coisa que os deixa mais felizes, de acordo com uma investigação recente da Universidade de Exeter). Jan contou ao mundo como ninguém na Dinamarca o julgava pela sua carreira e como se sentia feliz todos os dias, porque encontrava amigos ao longo do seu percurso e as senhoras idosas traziam-lhe chávenas de café. Inspirada, tentei meter conversa com o meu próprio coletor de lixo, mas ele: a) estava com pressa; b) não era muito bom em inglês; e c) não gostava de café (possivelmente o único dinamarquês do país que não gostava). Disse-me isso fazendo uma cara de «nojo, horror» quando lhe mostrei uma cafeteira e ofereci-me para lhe trazer uma chávena. Para nós, não haveria uma relação à base de cafeína. Mas ele sorriu e, mediante uma série complicada de gestos com as mãos, concluímos que ele gostava do seu trabalho.
— Feliz? — perguntei, enrolada num casaco cocoon cor de cereja nada prático, à minha porta, tentando evitar que o cão fugisse para a selva nevada de Vila de Paus à beira-mar plantada. O meu homem do lixo olhou-me, com toda a razão, como se eu fosse uma lunática, depois acenou com a cabeça e tentou fugir.
— Feliz? De um a dez? — mostrei os dedos.
Nesse momento, a carteira chegou na sua scooter e ofereceu-se para traduzir. Sentindo-me mais do que um pouco tola, expliquei-lhe que estava a tentar perguntar ao meu coletor se ele era feliz de um a dez.
— Certo... — ela também olhou para mim como se eu fosse louca e depois disse qualquer coisa muito depressa ao homem do lixo. Eles entreolharam-se durante alguns segundos, e depois fizeram o equivalente dinamarquês ao gesto de enrolar o dedo à volta do lado da cabeça para indicar que se pensa que alguém está louco.
— Otte? — respondeu finalmente o Homem do Lixo.
— Oito! — gritei, antes que a carteira pudesse traduzir. — Quer dizer oito, não é? — Olhei para ela em busca de aprovação e senti-me satisfeita por já conseguir contar até dez (ou melhor, oito) em dinamarquês. A carteira acenou com a cabeça, fez outra cara de «esta mulher é completamente maluca» e foi-se embora na sua motoreta. Animada com a minha «pesquisa», comecei a ver provas à minha volta. Encontrei-me com uma professora de ioga para uma reportagem em Arhus, a cidade maior e mais próxima de nós, e tentei saber a sua opinião. Ida era uma viking de rosto fresco, saudável, bronzeada e tonificada. Se é isto que o ioga nos faz, então também quero, pensei. Falei-lhe do meu Projeto Felicidade, e ela disse que achava que os dinamarqueses tinham um bom equilíbrio entre vida profissional e pessoal. «E se não tivermos, normalmente fazemos alguma coisa. Perguntamo-nos a nós próprios: “Estamos felizes onde estamos?” Se a resposta for “sim”, então fica assim. Se for “não”, vamo-nos embora.
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