Nos últimos dias o mundo tecnológico não pautou pela falta de temas: depois de a Arm o ter feito, a Instacart parece ter dado ouvidos aos conselhos do CEO da JP Morgan e deu entrada em bolsa, a Amazon apostou forte na inteligência artificial ao investir quatro mil milhões na Anthropic (rival da OpenAI) e a Cisco anunciou a aquisição da Splunk, uma empresa de software de cibersegurança, por 28 mil milhões de dólares. No entanto, houve outra toada que fez alarido do outro lado do Atlântico: a notícia que Rupert Murdoch, de 92 anos, vai afastar-se da liderança dos dois grandes conglomerados que fundou.
Frequentemente catalogado como um homem de negócios sem escrúpulos para atingir os seus fins, de grande crueldade e energia, é conhecido por ser o proprietário de jornais de grande influência e alcance como o "The Sun", "The Times", "The Wall Street Journal", "New York Post" e de canais como a Sky News e a Fox News.
Mas quem é o homem que os jornais internacionais descrevem como sendo o "magnata das notícias" ou o "mongol" / "tycoon" dos media, que nasceu na Austrália mas que possui passaporte norte-americano, e que durante a vida criou um legado de 17 mil milhões de dólares, polariza opiniões e inspirou uma série de televisão galardoada?
O início do império
Há 71 anos, Rupert Murdoch herdou um único jornal em Adelaide e transformou o jornal fundado pelo pai (Sir Keith Murdoch, um dos jornalistas mais ilustres da Austrália, que faleceu nos anos 50), no conglomerado que o The Guardian descreve como o "mais poderoso fornecedor de notícias do mundo anglófono, conduzindo a política de três países – Austrália, Reino Unido e EUA – para a direita política e sobrevivendo a uma série de escândalos e controvérsias até à sua reforma".
Segundo o jornal britânico, aos 22 anos, Murdoch assumiu as rédeas do Adelaide News e, na década de 1960, criou o maior grupo de jornais do continente dos cangurus, em que os editores tinham indicações expressas para acabar com as carreiras de certos políticos. Rapidamente expandiu o negócio, comprando uma série de outros títulos na Austrália e na Nova Zelândia, aumentando a sua circulação através da utilização de "técnicas-tabloide" (picantes) importadas do Reino Unido — onde estudou (na Universidade de Oxford).
No final dos anos 60, internacionalizou a operação e mudou o foco para a Grã-Bretanha, comprando o News of the World (que fechou em 2011, após 167 anos em atividade, devido a um escândalo com pirataria de telemóveis que originou um pedido de desculpas humilhante de Murdoch) e apoiando figuras como Margaret Thatcher e Tony Blair. Mas mais mediático, lançou o tablóide "The Sun", que rapidamente se estabeleceu como o jornal mais vendido com uma fórmula que misturava sexo, celebridades e desporto (e cujas fotografias em topless na página 3 duraram 44 anos). Além dos jornais (nos anos 80 não teve pejo nem dolo ao despedir 5 mil trabalhadores, numa polémica que ficou conhecida como a "Wapping dispute"), Murdoch também introduziu o grupo de notícias Sky ao panorama televisivo.
A entrada nos EUA deu-se em 1985 quando entrou em Hollywood ao comprar o 20th Century Studios (estúdio que iria vender à Disney em 2019 por considerar que perdia dinheiro) e adquiriu uma série de canais de televisão à Metromedia; canais estes que, um ano mais tarde, em 1986, iam dar origem à FOX Network (a casa de "Os Simpsons" e muitos outros títulos bem conhecidos). Em 1996, Rupert Murdoch lançou a Fox News para competir com a CNN e ser o canal conservador mais visto dos Estados Unidos, aplicando neste medium as mesmas técnicas utilizadas nos seus jornais - apoiar os seus e destruir a oposição. Nos últimos anos, a notoriedade do canal ganhou dimensão internacional quase diária devido ao tempo e apoio dado a Donald Trump durante os tempos em que a sua administração tomou as rédeas do governo norte-americano (e também devido à proliferação de teorias da conspiração relacionadas com a pandemia ou as eleições presidenciais norte-americanas de 2020).
A reforma
Rupert Murdoch anunciou na semana passada aos seus "Colegas", através de um comunicado interno, que vai abandonar o cargo de presidente do conselho de administração dos conglomerados Fox e News Corp., encerrando uma carreira de mais de sete décadas durante a qual criou uma dinastia nos media que se estende da Austrália aos Estados Unidos, passando pelo Reino Unido. A partir de novembro, Murdoch será o presidente emérito de cada uma das duas empresas e Lachlan Murdoch, o seu filho mais velho, tornar-se-á o único presidente da News Corp. e continuará como presidente executivo e diretor executivo da Fox Corp.
O anúncio surpreendeu os que seguem de perto a sua carreira. Como lembra a Vanity Fair, apesar da sua idade avançada, Murdoch era um líder com uma tenacidade quase sem paralelo que liderava o seu império "como um rei que planeava morrer no trono". Tanto que nem a morte o assustava. Em 1999, depois de ganhar uma batalha contra o cancro da próstata aos 69 anos, Murdoch afirmava que estava convencido da sua imortalidade. E o facto de a mãe ter falecido com 103 anos parece ainda ter dado mais força a essa crença.
Por esta razão e por acontecer num momento inesperado (parece longe de ser uma reforma total, pois o próprio salientou no comunicado enviado aos trabalhadores das suas empresas que vai continuar a "assistir às nossas emissões com um olhar crítico, ler os nossos jornais, sites e livros com muito interesse e contactar-vos com pensamentos, ideias e conselhos"), muitos questionam a decisão deste anúncio, que além da ambiguidade, levanta questões importantes, nomeadamente, o que terá realmente levado Murdoch a decidir reformar-se agora, depois de ter resistido à sucessão durante décadas? Teorizam-se várias situações, entre as quais o estado da sua saúde e as polémicas recentes em torno da Fox News que envolvem um acordo de 787,5 milhões de dólares com a Dominion Voting Systems por acusações de difamação nas eleições presidenciais de 2020.
A sucessão
Murdoch casou quatro vezes (recentemente terminou com os planos para um quinto casamento) e tem seis filhos. A árvore genealógica pode ser vista aqui, mas existem quatro figuras "principais": Prudence (do primeiro casamento com Patricia Booker), Elisabeth, Lachlan e James (do segundo casamento com Anna Maria Torv). O magnata tem ainda duas filhas mais novas (Grace e Chloe, do terceiro casamento com Wendi Deng).
Segundo o New York Times (NYT), embora a mudança coloque as empresas da família Murdoch na batuta de Lachlan, é ainda esperado que exista uma batalha de sucessão contundente no futuro. Após a morte de Rupert Murdoch, os seus quatro filhos adultos terão de decidir entre si o sucessor final, com base num plano que o próprio Murdoch pôs em prática há quase duas décadas. De acordo com os termos do fundo que controla a participação dos negócios da família, cada um dos quatro filhos mais velhos – Lachlan, Elisabeth, James e Prudence – terá um voto igual no futuro do império após a sua morte; até lá, Murdoch detém o voto de controlo.
Portanto, para já, é o filho mais velho (dos homens) que assume a posição de liderança por decisão do patriarca – que avisou no comunicado interno que vai "estar atento" e que está de "boa saúde". E apesar de Lachlan Murdoch ter uma imagem diferente da do seu pai (com tatuagens e botas de cabedal, a sua imagem de marca) é o nome que representa a continuidade do legado. Contudo, a decisão de declarar Lachlan como o seu sucessor escolhido não causa grande surpresa. Afinal, tal como lembra o NYT, existe uma rutura de vários anos na ligação entre Murdoch e o filho mais novo, James, que é mais democrata/esquerdista do que o pai e o irmão e que tinha sido um defensor, por exemplo, de uma versão menos estridente da Fox News.
O poder dos Murdoch tem sido escrutinado ao longo dos anos na literatura, cinema e televisão (embora a memória recente acabe sempre por bater na similaridade com alguns eventos de "Succession"). Nos próximos tempos, o novo livro de Michael Wolff (o autor de "Fogo e Fúria", de Donald Trump), que será lançado hoje nos EUA, trará ainda mais revelações sobre a família, a política norte-americana e a Fox News — e que provavelmente levará em mais comparações com a ficção da série da HBO. Porque além de ser fácil encontrar semelhanças, a Vanity Fair há uns meses publicou um extenso artigo sobre a sucessão real e reportou que uma fonte próxima da família alimentava os argumentistas com histórias da família (se bem que outra fonte desmentiu esta versão).
Comentários