Até que prestamos atenção às palavras, sílaba a sílaba, até que uma guitarra nos interrompe o interlúdio e nos atira água para a cara, antes de sermos lançados no mais excruciante drama. Com Scaramouche, Galileu, Fígaro e Bismillah. Bismillah, do árabe, o nome de Deus.

E não acaba aqui. Continua, continua, despeja tudo em modo hard rock. Até que enfim termina, até que enfim nos dá uma espécie de paz. Ou de resignação.

Podia ser uma banda sonora dos nossos dias. Dentro e fora do país. Podia ser e de certa forma é. Amanhã, dia 31 de Outubro, a Bohemian Rhapsody, dos Queen faz 40 anos. Podíamos dizer, a Bohemian Rhapsody de Freddie Mercury, mas seria uma injustiça com todos os outros que, como Brian May recordou esta semana à BBC, abraçaram esta música como se abraça uma graça que inesperadamente nos é dada.

A Bo Rap, como se tornou também conhecida, marcou a história, mudou a história. Tudo o que não era suposto acontecer, aconteceu.

Desafiou a tecnologia existente à época e não por acaso foi gravada em seis estúdios de som. É considerada a primeira música em videoclip – uma peça vista vezes sem conta e que os membros da banda encararam, à época, como pouco mais que uma foleirada destinada a passar num programa da BBC. E eles lá estavam, e ele lá estava, no seu fato colado ao corpo a evocar os Abba e o Mr Spock de Star Trek de uma só assentada. ”Foi filmado expressamente para o Top of The Pops. Para aqueles de nós que se lembram, não era um programa cheio de classe. O Top of the Pops não tinha boa reputação entre os músicos. Ninguém gostava, na realidade”, recordou Brian May.

A editora garantiu-lhes que era o tipo de música que nunca passaria na rádio. É na rádio que explode, depois de um homem da rádio ter oportunamente desviado uma cassete.

Chegou à televisão pelo Natal de 1975, no programa The Old Grey Whistle Test, gravado integralmente no Hammersmith Apollo, em Londres, e que terá agora um DVD de celebração dos 40 anos também. Para música que nem passaria na rádio, não correu nada mal: um milhão de cópias vendidas em Inglaterra até Janeiro de 1976, depois de nove semanas seguidas no top.

Uns anos mais tarde, em 1992, a Bo Rap voltou a fazer história. Desta vez nos Estados Unidos. Desta vez, por culpa de Mike Myers e do filme Wayne's World. Freddie Mercury recuperava assim, à distância, a sua América perdida.

Numa edição ainda posterior, no Irão, incluída nos Greatest Hits da banda, a Bohemian Rhapsody é apresentada como a história de um homem que acidentalmente matou outro homem e que, tal como Fausto, vendeu a sua alma ao diabo. Até ao dia … até ao dia antes da sua execução, em que chama por Deus (Bismillah) e recupera a sua alma.

Is this the real life?

Is this just fantasy?

Caught in a landslide

No escape from reality;

A Rapsódia Boémia, agora sim, em português, é tão portuguesa. Tão portuguesa como de qualquer outra parte onde as pessoas realmente vivam vidas, se apaixonem, sejam traídas, se arrependam e recomecem, tudo outra vez.

É uma excelente banda sonora para estes dias que vivemos, dos revivalistas do PREC àqueles rapazes e raparigas da minha criação, que ainda nem na escola primária estavam em 1975, mas que cruzam os dedos e dizem jamais esquecer a Fonte Luminosa. É verdade que a célebre manifestação da “maioria silenciosa”, organizada por Guterres e com Soares no discurso provavelmente mais memorável da sua vida, também fez 40 anos em Julho, mas, tal como a Bo Rap, só seria escutada por esses rapazes e raparigas uns 10 anos depois, quando já andavam pelo liceu e, pasme-se, Portugal já se preparava para ser outra coisa qualquer, na antecâmara do cavaquismo que tomaria o país por 20 anos.

Talvez também por isso é uma banda sonora igualmente perfeita para quem, embalado na ideia de que tudo, afinal, lhe vai correr bem, pode tão simplesmente estar na antecâmara de um exílio prolongado de poder. António Costa, sim, o PS, sim, arrastando ou não consigo a esquerda com a qual não consegue um acordo efectivo de governação. Um homem temporariamente só, aos comandos de um país que em poucos meses o poderá executar, como ao personagem da rapsódia. Na vida dos países, como das pessoas, e das músicas, há momentos em que se mudam as regras do jogo, em que se cria algo de novo. E até se pode começar por uma estreia em programas foleiros e de pouca reputação. Mas tem de existir algo de fundamentalmente verdadeiro, uma vontade efectivamente nova. Se não, apenas se vende a alma ao diabo e a redenção chega tarde e, na realidade, não chega para mudar nada.

Se não, "nothing really matters...".

“It's one of those songs which has such a fantasy feel about it. I think people should just listen to it, think about it, and then make up their own minds as to what it says to them... Bohemian Rhapsody didn't just come out of thin air. I did a bit of research although it was tongue-in-cheek and mock opera. Why not?”

—Freddie Mercury

Outras coisas com 40 anos, ou quase

Depois de 36 anos de imposição da lei do filho único, a China anunciou que os casais “já” podem ter dois filhos. Também por lá, pelo maior país do mundo, a demografia do envelhecimento começa a estar na ordem do dia. Cerca de 30% dos chineses têm mais de 50 anos e os 400 milhões de nascimentos que a lei do filho único impediu começam a fazer toda a diferença.

Às 22h30 do dia 29 de outubro de 1969, nos Estados Unidos, era feita a primeira ligação ARPANET, no momento em que dois computadores separados por mais de 500 km comunicaram. Ou seja, há 46 anos, a nossa vida mudou e nunca mais seria a mesma.