CAPÍTULO 1

Cape Cod, em maio, desperta a esperança nos corações enregelados dos nova-iorquinos, com os seus campos verdejantes e a brisa do oceano a prometerem dias de verão já ao virar da esquina.

Ao abrir a janela do meu carro, inspirando o aroma da natureza a renovar-se, maravilhei-me com a distância a que tinham ficado os céus cinzentos e frios e as sarjetas a transbordar de chuva da minha vida na cidade. Aqui, pelo menos, o inverno há muito que se tinha retirado e o sonho de dias mais lentos e ensolarados parecia ao alcance dos dedos.

Eu já tinha visitado a região algumas vezes, mas nunca esta cidade em particular. Prima mais calma e mais pequena da vizinha Provincetown, Heatherington parecia deleitar-se com o seu ambiente clássico dos anos 1950. Percorrendo a rua principal, a Pleasant Street, reparei nas lojas pitorescas e sofisticadas que vendiam antiguidades, gelados gourmet, brinquedos de madeira e pizzas em forno de tijolo, bem como nos pais que empurravam carrinhos de bebé caros pelos passeios em tijolo. Turistas entravam e saíam das lojas, e num banco de madeira por baixo de um relógio grande e antigo estavam sentados dois homens, com os seus bonés de basebol, a conversar animadamente. Parando num cruzamento para permitir que alguns músicos com guitarras às costas atravessassem a rua, avistei um café de estilo retro na esquina, onde alguns adolescentes sentados ao balcão bebiam batidos com palhinhas compridas.

Sorri, achando a cena demasiado perfeita para ser real, mas, pensando bem, fazia sentido que o meu melhor amigo, o Oscar, filho de imigrantes donos de uma charcutaria em Boston, desejasse para si uma fatia do mítico ideal americano. Quando o trânsito começou a andar novamente, as ruas transversais à esquerda e à direita revelavam vislumbres de casas coloniais bem-cuidadas e de casas em madeira com vedações brancas. Heatherington era pitoresca, tinha de admitir; e, como se tivesse sido encomendado, as nuvens por cima de mim dissiparam-se de repente, dando lugar a um céu azul tão intenso que me obrigou a semicerrar os olhos.

Maria Isaac junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 30 de outubro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "As histórias que nos matam", o seu mais recente livro, publicado pela Porto Editora.

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Era segunda-feira, o início típico de uma nova semana de trabalho, e eu estava na cidade para ajudar o Oscar e a mulher, Lorena, a projetar e construir a sua casa de férias, embora até agora só tivesse visto fotografias do terreno que tinham comprado. Estava ansioso por saber o que tinham em mente, pois hoje seria a nossa primeira conversa sobre o projeto. Seguindo as indicações que me tinham dado e tendo em conta o meu GPS, virei na Pleasant Street, em direção à localização da futura casa, onde nos íamos encontrar.

Nos arredores da cidade, tinha visto um terreno com vários palcos em diferentes fases de construção. Camiões empoeirados ocupavam o parque de estacionamento em cascalho, e os trabalhadores labutavam lá ao longe. Parecia uma colmeia. Preparativos frenéticos estavam em curso para o Festival de Máscaras e Música anunciado para o fim de semana do Memorial Day, no final do mês. Tinham-me falado do festival enquanto eu tentava em vão encontrar onde ficar na cidade; acabara por ter de pedir ajuda ao Oscar para arranjar alojamento. Ao que parecia, 40 ou 50 bandas invadiriam à cidade, e estava-se a contar com cerca de 20 mil espectadores. Quando perguntei sobre o tipo de música que seria apresentada, o Oscar resfolegou e disse:

– Como é que eu hei de saber? Provavelmente é música estranha da Geração Z.

Alguns minutos depois, saí da estrada e entrei num caminho relvado que subia até ao que eu supunha ser uma falésia com vista para o oceano. Conduzi lentamente, seguindo as marcas dos pneus de veículos anteriores, com o meu Aston Martin a saltitar e a sacudir-se quando a relva deu lugar à terra batida. De ambos os lados, bétulas, olmos e áceres formavam um dossel acima de mim, até eu chegar a uma clareira no topo.

Era um planalto coberto de erva e limitado por carvalhos majestosos, e com uma vista panorâmica sobre um oceano da cor de safiras escuras. Algumas borboletas sobrevoavam uma pequena zona com dentes-de-leão e havia no ar um cheiro a maresia que me trouxe à memória verões na praia. Sobrepostos ao som do motor, ouvia os cantos vibrantes das aves, vindos das árvores, e, quando olhei para cima, vi um gavião a rondar. Espantou-me que aquele espaço tivesse de algum modo escapado, até àquele momento, ao progresso.

Dali a nada, surgiu-me à vista uma substancial estrutura em madeira: um parque infantil, ao estilo citadino, que parecia ter caído dos céus, com baloiços, barras suspensas, uma caixa de areia, múltiplos escorregas e um forte coroado por um toldo multicolor. Os cinco miúdos do Oscar corriam de um lado para o outro enquanto ele e a Lorena os vigiavam, sentados a uma mesa de piquenique. Como era habitual, o Oscar trazia vestida uma camisola de futebol americano ao estilo das usadas no início dos anos 1960, desta vez dos Cleveland Browns.

Pouco tempo depois de se formar na Universidade de Nova Iorque, o Oscar obtivera financiamento para comprar os direitos de franchise da NFL, da NBA, da NHL e da MLB com o objetivo de fabricar e vender vestuário. O golpe de génio do Oscar foi estampar o nome e o número de jogadores atuais em camisolas de estilo vintage. Era meticuloso quanto ao design e à qualidade, certificando-se de que cada peça de vestuário tinha um toque ultrassuave e parecia adequadamente envelhecida. Era também um especialista no que dizia respeito à promoção e ao marketing nas redes sociais e, embora as camisolas tenham tido êxito desde o princípio, as vendas subiram em flecha quando um rapper muito conhecido começou a usá-las em concertos e os influenciadores mais populares começaram a fazer posts regulares sobre elas. Por fim, as empresas de capital privado começaram a mostrar interesse, e o Oscar acabaria por vender a empresa por quase mil milhões de dólares. Foi o exemplo supremo de uma história de sucesso. Os pais dele, que eu considerava quase como meus pais adotivos, mal conseguiam conter o orgulho e usavam camisolas a condizer sempre que saíam, gabando-se aos muitos familiares nos EUA e na Índia do sucesso do filho. O Oscar não tentava demover os pais, mas o dinheiro não o mudara no essencial, nem a ele nem à Lorena.

Estacionei ao lado dos carros a condizer de ambos, dois Cadillac Escalade que faziam o meu carro parecer um brinquedo, e o Oscar aproximou-se com os braços abertos para me cumprimentar. Como o resto da família dele, era muito de abraços, e tenho a certeza de que abraçava toda a gente, incluindo os empregados do supermercado, o tipo que lhe limpava a piscina, até os auditores do fisco. Há muito que eu desistira de qualquer resistência de homem branco e anglo-saxónico, e retribuí o abraço. Ele deu-me uma palmada nas costas antes de nos afastarmos.

– Deste com o sítio – disse ele, com um sorriso rasgado. – O que achas?

– É incrível – admiti. – Ainda melhor do que parece nas foto- grafias que enviaste.

– Nem acredito que consegui fechar o negócio. Estava a licitar contra um daqueles tipos arrogantes dos fundos de investimento que acham que é tudo deles, e tu sabes como eles detestam perder.

Acenou com a cabeça na direção da mesa de piquenique.

– Anda daí. A Lorena está farta de perguntar por ti.

Quando começámos a dirigir-nos para ela, inclinei a cabeça para o parque infantil.

– A que vem isto tudo?

– Mandei instalá-lo na semana passada. Imagino que, quando começarmos a construir a casa, vá dar aos miúdos alguma coisa para fazer quando visitarmos a obra para vermos os progressos.

– Recorda-me, que idade têm agora?

– O Leo tem sete. A Lalita e a Lakshmi têm seis. O Logesh tem cinco e o Luca acabou de fazer quatro. Eu sei. São muitos Ls e pode ser confuso. Pelo lado positivo, posso simplesmente dizer «Sai daqui, L!» ou «Cala-te, L!» ou «Senta-te, L!».

– Aposto que a Lorena adora isso.

– Nem por isso – disse ele, e riu-se. – Mas toda esta coisa de os primeiros nomes começarem por L foi ideia dela, e os miúdos acham hilariante.

Nessa altura, a Lorena já estava de pé. Sacudiu a franja escura, a afastá-la dos olhos, e deu uns passos apressados com as suas pernas curtas para vir ter connosco. Era um dínamo ítalo-americano altamente sociável com uma força e uma resistência inabaláveis, que nem o Oscar conseguia igualar. Como o marido, era de abraços, mas o dela dava a sensação de estarmos a ser envolvidos num edredão de penas. Depois de se soltar, continuou a segurar-me nas mãos.

– Como estás? – perguntou, com os expressivos olhos castanhos a perscrutarem-me o rosto. – Tenho andado tão preocupada contigo. – Estou melhor – respondi, com o que esperava que fosse um sorriso tranquilizador.

– Recebeste a minha encomenda?

A meio da minha estadia no hospital psiquiátrico, chegou um cesto gigantesco cheio de petiscos, tabletes de chocolate e rebuçados Jolly Ranchers, acompanhado por um pinguim de peluche bastante grande. Por alguma razão – talvez por eu ter uma vez falado com entusiasmo do documentário A Marcha dos Pinguins –, a Lorena acreditava que eu tinha um carinho especial por pinguins-imperador, e eu nunca me dei ao trabalho de a corrigir.

– Recebi. Obrigado. Espero que não te importes que eu tenha partilhado as guloseimas com alguns dos outros pacientes.

– Não me importo nada – disse, soltando-me finalmente as mãos e olhando-me de alto a baixo. – Estás com bom aspeto. Com um ar mais... descansado do que da última vez que te vi.

– Sinto-me mais descansado – concordei. – Como estão os miúdos?

– Selvagens como sempre – suspirou ela, acenando na direção do parque infantil com um sorriso algo pesaroso. – Nunca devia ter deixado que o Oscar me convencesse a termos o quinto. Os padrões e as regras já tinham ido por água abaixo quando o Luca chegou. Ele faz o que lhe apetece e sobra-lhe tempo.

Riu-se com vontade. A Lorena, licenciada em economia, que o Oscar conhecera na universidade, ajudou o marido a construir o negócio até à chegada dos gémeos, altura em que se afastou para cuidar da sua ninhada em crescimento. A casa deles, tal como a de Oscar fora, era desarrumada e ruidosa, um zumbido constante de energia que atravessava as paredes e os corredores. No entanto, a Lorena suportava o caos como se nada fosse. Eu nunca a vi exausta ou impaciente.

– Quanto tempo vão poder ficar?

– Só até sexta-feira – respondeu. – Os miúdos têm exames e recitais na próxima semana. Mas, mal comecem as férias, ficaremos aqui o resto do verão.

– Larga-o, L! – gritou o Oscar, e não pude deixar de sorrir quando a Lorena revirou os olhos. – Esperem um minuto – disse-nos o Oscar antes de se dirigir para a zona de brincadeiras. O Leo tinha o braço à volta do pescoço do Logesh, mas estava a fazer-se de inocente, para o caso de o Oscar estar a gritar com um dos outros miúdos.

– Não sei como vocês os dois conseguem – disse eu. – É sempre impressionante.

Livro: "Além do Amor"

Autores: Nicholas Sparks e M. Night Shyamalan

Editora: ASA

Data de lançamento: 14 de outubro de 2025

Preço: € 20,90

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– O quê? Criar filhos? – A Lorena fingiu-se inocente. – Ter uma ama ajuda, mas, na verdade, é exatamente como tomar conta da Paulie. É só pôr-lhes uma taça com comida e outra com água de manhã, uma caixa de areia e esquecê-los durante o resto do dia.

Eu sorri.

– Onde é que ela está?

– Ainda está na caixa de transporte no meu carro – disse a Lorena –, que está ao lado do teu. Não te preocupes, deixei as janelas abertas, mas não sabia como reagiria se a trouxesse para aqui. Eu sei que é uma gata caseira.

– E é – concordei. – Além das visitas ao veterinário e de ficar convosco, nunca saiu do meu apartamento. Que tal se portou?

– Demorou uns dias a sair do esconderijo, mas depois mostrou-se meiga e contente, exceto quando os miúdos andavam atrás dela pela casa. Passou muito tempo no sofá, perto da janela, onde eles não a podiam alcançar. Mas à noite, depois de eles irem para a cama, enroscava-se no meu colo.

– Parece que gostou de ti.

– Sempre achei que gostava mais de cães, mas ela fez-me mudar de ideias – declarou Lorena. – Olha, tenho de te perguntar: porque é que lhe deste o nome Paulie?

– O que queres dizer?

– É uma gata, e Paulie é um nome masculino.

– Eu gostava do filme Rocky quando era miúdo.

– Então porque não chamar-lhe Adrian? Ou mesmo Rocky?

– Porque ela tem ar de Paulie.

A Lorena riu-se. Entretanto, o Leo tinha libertado o Logesh, que continuava a esfregar o pescoço, e o Oscar voltou a juntar-se a nós.

– Ele disse que estava a tentar mostrar ao Logesh o que fazer se algum rufia alguma vez o atacasse – explicou o Oscar.

– E tu disseste-lhe que, em vez de pôr o braço à volta do pescoço do tal rufia, ele devia ir ter com um professor ou falar connosco, certo? – perguntou a Lorena.

– Disse. – O Oscar assentiu enfaticamente com a cabeça. – Claro que disse.

A Lorena lançou-lhe um olhar cético e tossicou.

– Sei que tu e o Oscar têm muita conversa para pôr em dia, por isso vou levar os miúdos à cidade para comerem qualquer coisa. Já devem estar a morrer de fome. O que posso trazer-vos?

– Uma salada com frango grelhado parecer-me-ia bem, obrigado – disse eu. – Ou o que conseguires arranjar, na verdade. Sei que vais ter muito com que te preocupar – desculpei-me, acenando com a cabeça na direção da estrutura de brincar.

– Podes trazer-me um hambúrguer duplo com queijo e anéis de cebola? – pediu o Oscar. – E um batido de chocolate?

A Lorena ergueu uma sobrancelha, brincalhona.

– Duas saladas com frango grelhado a sair – respondeu ela.

– Mas, querida, estou com fome...

– Então também te trago uma maçã. – Virou-se para as crianças. – Meninos? Vamos almoçar!

Os miúdos ignoraram-na.

– Está na hora de comer, Ls, por isso toca a entrar para o carro da mãe! – berrou o Oscar.

Com alguma relutância, eles desceram do parque e dirigiram-se lentamente para o carro da Lorena. Os adultos seguiram-nos, e o Oscar abriu a mala do carro e tirou a caixa de transporte da gata. Quando ma entregou, espreitei para ver a Paulie, que me fitou com os olhos arregalados e tensa. Enquanto o Oscar e a Lorena ajudavam os miúdos a instalar-se no carro, levei a caixa de transporte para o meu carro. Enfiando os dedos pela grade, murmurei uma saudação à Paulie, mas ela continuava demasiado nervosa, ou desorientada com a viagem, para se aproximar de mim. Deixei-a em paz e, depois de abrir o vidro, tirei o portátil, um bloco de apontamentos e uma caneta da mochila que estava em cima do banco da frente. A Lorena acenou-nos quando saiu em marcha-atrás do terreno.

Mal nos sentámos à mesa de piquenique, o Oscar inclinou-se para mim.

– OK, agora que finalmente temos alguma paz e sossego, fala-me das tuas últimas semanas no hospital. Tenho de dizer que, no geral, aquele sítio parecia mais um clube de luxo do que uma unidade de tratamento psiquiátrico.

– Correram bem. – Encolhi os ombros. – E sim, as instalações eram porreiras, mas não era propriamente um spa.

Apesar de termos conversado ocasionalmente por telefone durante a minha estadia, voltei a descrever brevemente o programa, que enfatizava a TCD, ou terapia comportamental dialética. A TCD, expliquei, concentrava-se na importância dos comportamentos em oposição aos sentimentos ou emoções, transitórios.

– Muito bem. – O Oscar acenou com a cabeça. – E a comida era mesmo tão boa como dizias? – insistiu.

– Era – confirmei. – Em alguns fins de semana, se o tempo estivesse bom, até fazíamos churrascos.

– Parece-me muito White Lotus com terapia.

– Não era nada mau – concordei. – Tive a oportunidade de explorar alguns aspetos da minha vida que passei muito tempo a tentar ignorar.

– Referes-te à tua infância de menino rico e aos pais excêntricos que te deram cabo da cabeça? – disse o Oscar na brincadeira.

– Algo do género.

O Oscar juntou as mãos à sua frente na mesa de piquenique e olhou-me com atenção, de novo sério.

– Tens de me prometer que me ligas se sentires a escuridão aproximar-se outra vez, Tate. – Desviou o olhar por um momento antes de me olhar solenemente nos olhos. – Receei por ti.

Comovido com as suas palavras, assenti com a cabeça, ambos silenciosos com a memória daqueles dias angustiantes. Mas a expressão do Oscar voltou a tornar-se maliciosa. Inclinou-se, com os olhos a brilhar de curiosidade.

– Eles alguma vez te ajudaram a descodificar aquelas pequenas bombas que a tua irmã deixou cair antes de morrer?

Lembrando-me do que a Sylvia me tinha dito, encolhi os ombros outra vez.

– A teoria deles era que a minha irmã estaria a sofrer anomalias neurológicas porque os órgãos estavam a falhar.

– Mas tu acreditaste nela... – insistiu o Oscar.

Hesitei, escolhendo cuidadosamente as minhas palavras.

– A Sylvia nunca me mentiu, o que significa que ela acreditava em tudo o que me disse. Mas falemos sobre esse assunto quando tivermos mais tempo. Afinal – disse eu, abrindo o meu bloco de apontamentos –, temos uma casa para projetar.