A Capital da Arte
Olá a todos!
Sejam bem-vindos ao programa A Capital da Arte. Este é o reality show onde doze artistas vão disputar o grande prémio de um ateliê vitalício numa das cidades mais exclusivas do mundo (vocês sabem qual, aquela que supostamente cheira melhor). Através de sete desafios, um por cada colina, vamos descobrir quem é que tem mãozinhas para se aguentar na cidade.
O meu nome é Catarina Sacramento e vou ser a vossa apresentadora ao longo dos próximos sete episódios. Liguem já aos vossos gestores de coleção e às galerias comerciais com que têm boas relações
— A Capital da Arte vai começar.
Pré-Produção
Os periquitos chegam de forma desordeira
Quem não quer dar nas vistas pode desaparecer em qualquer pano de fundo, mas quem quer brilhar tem de construir o seu próprio palco. Vai dar jeito, até como treino de bricolage, para quando tiverem de construir a vossa própria casa face à crise de habitação que atormenta o País. Um brinde a todos nós que herdámos.
— Hey, Tomás? O que é que estás aqui a fazer? — perguntou Catarina Sacramento, ainda com a maquilhagem de quem tinha acabado de filmar, ao entrar no escritório da Galeria Quadrum, agora transformado em bastidores improvisados para o reality show da arte.
— Estou a ser eu próprio. É a única forma de encantares a Internet — disse eu, que estava num live onde mostrava os bastidores do programa (literalmente).
— Parabéns por desconversares. Eu quero saber é o que estás a fazer aqui, no programa?
Para quem não soubesse, Catarina Sacramento era uma das apresentadoras de televisão mais encantadoras do País e para estar aqui a servir-nos um reality show devia estar a ser bem paga. Ou tinha alguma intenção de sair dos programas de talentos popularuchos e ambicionava algum cachê cultural. O seu cabelo volumoso, vestido de gala e acessórios emprestados pelo patrocinador elevavam-na a um plateau de grande glamour.
— O mesmo que tu, mas para outras pessoas.
— Vais ficar com as redes sociais? Parabéns, essa tua página já rendeu mais do que esperavas. Será que o teu pai vai ficar contente por teres trocado o teu lugar no jornal pela economia digital? — disse Catarina, com um sorriso pastel.
— Talvez. Quer dizer, se ganhar alguma coisa com isso — disse, agora com um sorriso.
Somos tantos a tentar ter um pouco de protagonismo, que é bastante natural que, quem realmente queira, tenha de ir um bocadinho mais longe no desespero de o conseguir. No meu caso, uma certa dúvida entre praticar jornalismo ou entretenimento, levou-me a tropeçar na existência deste programa, assim como a cair-me nas mãos a tarefa de dar a conhecer a realidade de uma competição artística com intenções folclóricas.
— O que achas do programa? Parece uma ideia de merda, não parece? Como é que alguém pode avaliar uma peça em detrimento de outra, não é? São coisas tão subjetivas.
— Não, eu gosto. Acho que quando a arte é realmente boa, toda a gente sente, mesmo que não entenda. E não quero parecer condescendente, de todo. Os católicos não teriam encomendado quadros tão bons se fossem pouco eficientes na conversão de fiéis.
— Tu és cómico, Tomás. Mas basicamente vais andar aqui a fazer o quê? Postar stories? Editar vídeos com intenção de viralizarem?
— Isso tudo, claro. Talvez em pequenas rubricas com conceito. Por exemplo, «O artista do dia», com entrevistas aos participantes.
Catarina tinha começado a olhar para as unhas, para ver se estavam incríveis, depois começou a scrollar no telemóvel. Talvez se tivesse esquecido que estava a conversar comigo, mas depois de alguns segundos de silêncio, lembrou-se.
— E também achas que o programa esconde segredos horríveis que, se vierem a público, podem comprometer as carreiras dos artistas a concurso? E as nossas, claro, que estamos aqui a trabalhar humildemente…
— Ora, é curioso perguntares isso. Eu entrei no programa porque estava a investigar e acharam que era mais fácil darem-me um emprego cool do que arriscar algum título sensacionalista que deixasse o programa em xeque… — disse eu, a ser o mais sincero que conseguia sem revelar grandes detalhes.
— Tu queres ver? Isto ainda vai fazer correr muita tinta — disse Catarina, antes de aproveitar a maquilhagem carregada para se fotografar, como se fosse um filtro num selfie.
— Com vários pintores a concurso, é óbvio que sim — disse eu, a praticar o meu timing cómico para os desafios das próximas semanas. Uma boa piada, feita de improviso, era o meu standard de inteligência. Para os outros e para mim.
— Diz-me só uma coisa antes de ir tirar isto — disse Catarina, a apontar um círculo à volta da cara —, estás muito entusiasmado? Era preciso correr a minha vida toda em retrospetiva até aqui. Os colégios, a universidade pública depois de tanto tempo de estudo no ensino privado. A tranquilidade mórbida de ser um morador do Bairro de Alvalade. Tudo isso me transformava num queque, muito queque. A ideia de estar perto de artistas, de arte, era muito entusiasmante. A ideia de mostrar ao meu pai que tinha encontrado um trabalho fora da redação do jornal onde ele se sentava na mesa de administração, isso era épico.
— Acho que sim. Gosto muito de arte. Fico feliz por estar perto dela e das pessoas que a criam. Às vezes, acho que aprendo mais nessas conversas do que nas idas aos museus.
— Importas-te que fume um cigarro eletrónico? — disse Catarina, já a bufar vapor — Hey, não me faças essa cara, vais ter de me aturar muito nos próximos tempos.
Ela era uma morena linda, mas eu também era. Face à certeza de que tinha de pensar em assuntos novos, ser confrontado por novas realidades e, na melhor das hipóteses, fingir ser um tipo de mente mais aberta do que realmente sou, fiz um sorriso luminoso. Era bom que começasse a falar como aprendi na Internet, ia ser apanhado muito rápido caso não o fizesse.
O telefone de Catarina Sacramento começou a tocar — a música escolhida era Espresso de Sabrina Carpenter. Ri-me, antes de ficar melancólico do embalo sinestético do zeitgeist. Saí do camarim para a deixar falar à vontade.
*
Catarina saiu para gravar mais planos dos dela, fiquei à espera da reunião para a qual me tinham convocado. Enquanto navegava a Galeria Quadrum e o pandemónio que se tinha tornado para receber o programa, dei de caras com uma sala de projeto, trancada.
Como se o jornalismo ainda estivesse vivo em mim, tentei abrir a porta, até lhe dei uma carga de ombro. O resultado foi fazer uma barulheira e não conseguir resultado nenhum. O que quer que fosse que lá guardassem, já devia ter sido removido para um lugar seguro, mas talvez continuasse ali porque Portugal é tão bom no desenrascanço como na procrastinação.
Os Jardins dos Coruchéus já estavam em obras, prestes a receberem as melhorias necessárias para serem o pano de fundo de um reality show que se pretendia que fosse um enorme sucesso para a promoção da cidade de Lisboa, enquanto destino para artistas e para apaixonados por arte, o que sugeria de forma errada que faltavam turistas.
Ainda algo atordoado por uma intuição de que devia investigar o que estavam a esconder ali dentro, dei de caras com outra porta interessante, desta vez devidamente anunciada em termos de propósito. Dizia, Andrea Miller e, logo por baixo, realizadora. Decidi entrar.
Pelos vistos, os artistas já estavam todos escolhidos, e alguns deles até já se estavam a maquilhar para gravarem os seus primeiros momentos de confessionário do programa. Não é que fosse um confessionário como no Big Brother, mas a verdade é que o momento de quebra e comentário se tornou essencial para a criação de narrativas internas em reality shows.
Apercebi-me que havia uma cábula da produção para reconhecer os artistas que iriam aparecer no genérico ao longo da temporada de sete episódios, mesmo que fossem corridos já amanhã, depois do primeiro desafio. Achei que o melhor que podia fazer com esta informação era leakar tudo de imediato nas minhas redes sociais, na esperança de que a partilha prévia pudesse gerar entusiasmo e alguma curiosidade genuína.
— Como é que é, pessoal? Estão a ver bem isto? Parece que o programa ainda não começou, mas nós já temos a lista de todos os participantes. O vosso amigo da Lisboa Fala Bem vai fazer aquilo que vos dá jeito e meter um post com os artistas todos para guardarem, como se fosse aquele post dos horários do vosso festival de verão preferido.
Angel da Cruz (Setúbal, 32 anos)
Depois de ver a fotografia de Angel, soube logo que o programa não ia correr riscos em relação à representatividade. Felizmente, tinha esculturas neoclássicas tão boas que ninguém ia achar que tinha sido convocado para preencher quotas.
Roger Rolf (Oslo, 31 anos)
O trabalho cerebral de Roger debruça-se sobre a financeirização do mundo. Sabes quando te apetece um gelado Ben & Jerry’s? Ao Roger apetece-lhe pensar sobre estratégias verdes de promoção e a subversão solarpunk (1) que revelam.
Carol O’Neill (Lisboa, 29 anos)
Quando inventaram a arte textual, estavam certamente a pensar em como acomodar o génio de Carol O’Neill. Hater de tudo o que é Gustavo Santos, mas inspirada pelo impacto no discurso de todo esse tipo de autoafirmações.
Bernardo Preto (Santarém, 26 anos)
Será que aquele que dizem ser o melhor pintor da nova geração vai conseguir fazer da sua pintura a ferramenta que o leva até ao fim do concurso? Era capaz de demorar cento e oitenta horas na mesma tela.
Maria do Ó (Lagos, 38 anos)
Talvez a única pintora que compete em termos de puro talento com Bernardo Preto, mas, até agora, das poucas cujos temas e composições são capazes de gerar mais atenção da comunidade.
Tiago Bazarov (Sintra, 29 anos)
Um artista das classes mais rasteirinhas que surpreende com as respostas inusitadas às situações da atualidade. Podia ser bom para as audiências, mas é uma bomba-relógio polémica.
Rui Castanho (Porto, 35 anos)
Mais um do gangue da faculdade de Belas-Artes, mesmo conhecendo bem a realidade das Caldas da Rainha. É um artista português, boémio, mal relacionado — tínhamos de fingir que o programa também era para eles.
Máximo da Moral (Rio de Janeiro, 23 anos)
Sacado à última hora por parte da produção, obcecada com os testes de sensibilidade e a representação queer na composição do programa. Tal como Bazarov, talvez seja demasiado radical para o tipo de realismo pretendido.
Natasja Kirby (Kiev, 25 anos)
Artista ucraniana que não foi escolhida só para nos demonstrarmos muito preocupados com a situação na Ucrânia após a invasão russa ou, se forem russófilos, invasão militar especial.
Diogo Sacramento (Lisboa, 37 anos)
Apesar das acusações de nepo baby chegarem de vários setores da sociedade que estavam atentos à arte, Diogo só conseguiu ultrapassar o desleixe do seu papá quando lhe pediu favores que acelerassem a sua carreira artística.
Fábia Santana (Paris, 28 anos)
A última vencedora do Grande Prémio da Companhia Nacional de Eletricidade (agora vendida a capitais estrangeiros) e uma das coqueluches do ensino de Belas-Artes — capaz de estar mais comprometida com o lifestyle do que com a produção.
Márcia Ferreira (Viseu, 27 anos)
Num programa com tanta estética, por que não ter uma beleza a participar? Contratação dos operadores de câmara, decerto. Não conseguimos perceber muito bem como o bom aspeto da Márcia a fez chegar a uma competição onde a arte é mais do que ter jeito para pintar, mas vamos acreditar numa agradável surpresa.
Tyler Palmer (New York, ?? anos)
Artista norte-americano que se mudou para Lisboa ligeiramente antes da pandemia e que está sempre a tomar copos com os teus amigos quando chegas atrasado. Já todos nos habituámos a abordagens esculturais à street art, mas os seus totems eram bastante improváveis.
*
Quando chegou a hora da reunião, era só um conjunto de lembretes do que não me podia esquecer de fazer no dia seguinte, quando começasse a produção do programa, propriamente dita.
— Malta, vocês chamaram-me aqui aos Coruchéus para me dizer que amanhã tenho de vir? Ainda bem que vivo aqui em Alvalade…
Só que não, era muito importante estar presente no dia seguinte porque íamos ter vários momentos-chave para gravar naquilo que chamavam de episódio zero. Foi Michael Ashcroft, um produtor executivo com pinta de grande chefão, que me explicou tudo:
— Tommy, amanhã nós vamos ter vários acontecimentos de grande importância. O discurso do presidente, o jantar de apresentação dos artistas, os primeiros momentos de gravação com eles. É essencial que consigas captar as diferentes personalidades, mesmo quando algumas forem maiores do que qualquer obra.
— Muito obrigado, Michael — disse eu, a combater a minha vontade de lhe dizer que a reunião podia ter sido um e-mail ou, melhor ainda, uma breve mensagem de áudio, quiçá com menos de um minuto.
Dei-lhe um aperto de mão forte, mas quando me estava a ir embora, lembrou-se de me agradecer o leak da informação acerca dos artistas, afinal era muito mais apelativa embrulhada assim.
— O que o senhor fez com aquele carrossel de Instagram, foi muito mais eficaz do que irem só ao site do concurso para verem o perfil de cada um… A falta que faz um especialista digital, não é? E ainda tem uma versão de TikTok?
Episódio Zero
Os periquitos fazem alto estrilho para dizerem que chegaram
«Estou sim, Tomás? Desculpe lá, quanto tempo mais é que vai ignorar as minhas chamadas? Já falei com a sua mãe e ela disse-me que está perfeitamente a par de que eu preciso de falar consigo, e que só não me diz nada porque tem vergonha. Mas desde quando é que tem vergonha, filho? A sua mãe diz que nunca o viu tão entalado como desta vez. Não quer mesmo falar com o seu pai sobre isso? A trabalhar para a Câmara Municipal de Lisboa via produtoras de streaming? Que sentido é que isto faz com um percurso como o seu? Acha que não sei o que é que se está a passar? Acha que não tenho uma palavra a dizer? Que raio é que está a pensar? Foi para isso que saiu do jornal? A sua irmã vai-se casar, pá. Tenha a decência de passar tempo com ela e com o respetivo.»
*
Num conjunto de quatro stories partilhadas ainda de pijama, enquanto ouvia a Olho de Lince, do Luís Severo, e comia croissants franceses com salmão fumado e queijo creme, bem acompanhados por um sumo de maçã da Compal, partilhei algumas considerações sobre arte com os meus seguidores. Estava a sentir que precisavam, sabem?
» É difícil falar de arte sem falar de dinheiro, mas muita gente esquece-se de que é o dinheiro que compra a arte. Pior: é o dinheiro que permite comprar a cultura e a influência, o prestígio até, necessário para conseguir sobreviver da arte hoje em dia.
» A verdade é que arte e dinheiro não são uma conjugação nova. Arte e imobiliário também não. Quantos de nós não lemos que, para as galerias de Nova Iorque triunfarem, estavam sempre a fazer contas à valorização das suas propriedades em Manhattan? Não me parece um grande progresso utilizar aquilo que os humanos consideram o mais belo do mundo, a arte, apenas para mostrar que é somente um veículo para toda a sua vontade de acumulação.
» E como é que funciona o dinheiro na arte? Porque é que se fala tanto do privilégio? Bem, tu não terias dinheiro para mandar a tua filha durante alguns anos para Londres enquanto lhe bancavas o apartamento e os primeiros estágios sem ganhar nada, pois não? A minha família conseguia fazer isso por mim, se eu não fosse tão independente, claro. Por aí começas logo a perceber.
» Ser colecionador é um hobby que, para ser levado dentro dos trâmites do notável, se torna muito caro. Nem todos os cole- cionadores que conhecemos têm a capacidade de dissipação de narcisismo que a atividade devia exigir.
Ao longo das stories, ia mastigando, enchia-me de migalhas e lembrava-me das lições de etiqueta da minha avó e das minhas tias, mas estava tão feliz por partilhar esta informação, ainda na dúvida se a mudança de programa ia funcionar para a minha audiência ou não.
*
O status quo foi feito para ser quebrado. O que em tempos tinha sido punk, agora era apenas vendido como punk — muitas vezes através de merchandise que ocultava um esquema de drop-shipping (2). Os Coruchéus, enquanto espaço idílico para cristalização da arte, seriam a vítima perfeita para a financeirização do mundo.
— Bom dia, beldroegas, como é que está a minha querida Internet nesta fina manhã? — cumprimentei eu, só para um live ligeiro de Instagram, ainda meio mortiço porque só esta- vam poucas centenas de pessoas nos primeiros minutos. — Hoje estamos no centro da ação. Isto que podem ver aqui é o Jardim dos Coruchéus, e estes edifícios aqui à volta são os Ateliês dos Coruchéus, o primeiro complexo artístico camarário de Portugal, inaugurado ainda no antigo regime, mas quando já estava mais ou menos a tombar, depois do outro cair da cadeira (estava atento aos comunistas e quem o lixou foi o design). Estes ateliês estiveram ocupados pelos mesmos artistas ao longo de cinquenta anos, o que caiu muito mal nas páginas de memes tipo Estrado da Arte, visto que também eram professores em Belas-Artes. Já falei demais? Desculpem aí, é que hoje começa tudo a mudar. Acompanhem ao longo do dia no vosso canal preferido, agora dedicado à arte, para ver se deixam de ser uma cambada de incultos, queridos e queridas.
Um gatinho laranja estava agora a apanhar o sol quente da manhã, mas reagiu a um barulho qualquer da maquinaria das obras que começava a conquistar este espaço outrora pacífico e zarpou, rápido e esguio (achei que tinha cara de Jeremias).
*
A verdade e a arte flutuavam em planos perpendiculares. Era impressionante quando se tocavam, mas estavam quase sempre em trajetórias opostas. Era muito mais habitual a inspiração servir para nos trazer a mentira, como na política.
O programa desse dia era pesado, tanto para um punhetaço à imprensa como para as filmagens reais do programa, apesar de, pela parafernália que estava a ser montada, acreditar que havia alguma intenção de captar o discurso do presidente da câmara. Toda a gente parecia ignorar o enorme volume de material de construção imobiliária que se acumulava nas imediações do Jardim dos Coruchéus.
E, por falar em construções, um púlpito tinha sido criado para o presidente da Câmara Municipal de Lisboa — à altura de um presidente vencedor, mas muito baixinho. A sua chegada foi marcada pela pompa e circunstância institucional. Um carro de alta cilindrada, vidros fumados, cercado por outros do mesmo tipo, estacionou ao lado da Biblioteca dos Coruchéus, aquele edifício cuja lenda determina ter sido criado por Filipe II para se encontrar tranquilamente com a amante.
Era lindo ver um homem tão pequeno a liderar uma comitiva tão grande, a relembrar visualmente o pequeno Napoleão a coordenar os seus exércitos. Foi desta equipa de serviçais que surgiram dois assim mais descarados, que se ofereceram para o ajudar a subir para o seu púlpito. Fizeram bem, a ajuda fez diferença no alcance do seu pequeno pulo.
Ainda antes de começar a falar, virou-se de costas para os jornalistas e procurou o seu fotógrafo pessoal. Pediu-lhe fotografias com um «vamos lá despachar as imagens oficiais?» e só depois de posar para ele é que se voltou para a audiência. Lembrei-me daquele infame livro onde ele tinha publicado, com jeitinho editorial, todas as imagens do seu Instagram e TikTok, numa manobra que os seus rivais políticos tinham sentenciado como um «cúmulo do ego, à custa dos contribuintes».
Mal tinha começado a falar, ainda ia naquelas saudações formais aos jornalistas e influencers presentes para o lançamento, quando a situação deu merda. Felizmente consegui sacar do telemóvel rápido, como num duelo de faroeste, e começar logo a filmar.
O mural de arte urbana que homenageava o mais famoso músico punk de Alvalade estava a ser empurrado por uma retroescavadora sem condutor, no que podia ser um acidente ou uma manobra de sabotagem artística. Infelizmente, ao tombar para a frente, diante dos Coruchéus, caiu sobre os trolhas que já se encontravam nessa secção da obra, a preparar os materiais para a intervenção nos edifícios dos ateliês. Apesar do potencial cómico de serem engolidos pela boca da antiga estrela punk, tinha sido a zona dos olhos que lhes caiu nas pernas, prendendo-as lá, como se quisessem dar uma imagem visual à expressão «debaixo de olho».
— Pessoal, vocês viram isto? Não, não estou a falar do facto de grande parte dos edifícios originais dos Coruchéus estarem cobertos de lonas verde-brat que nos impedem de ver o que se passa lá dentro, como se fossem uma obra de Christo (3), mas parece que um destes veículos dedicados às obras acabou de destruir a parede de um dos nossos maiores artistas urbanos, o próprio Alexandre, no que pode muito bem ter sido uma revolta contra a forma como as elites perderam o enredo no que toca à produção artística, sendo esta cidade um bom exemplo disto. O programa ainda nem começou e já temos animação!
Ao mesmo tempo que vimos a parede cair, fruto do susto desse baque, tombou também o presidente da câmara do seu pequeno púlpito, que para ele já era capaz de perfazer uma altura incrível. Requisitava toda a ajuda que conseguia, ignorando o facto de os trabalhadores acidentados estarem muito mais necessitados. Obviamente, eram migrantes do Sudeste asiático porque alguém tem de fazer o trabalho que os tugas não papam (e receber as culpas do pouco progresso nacional, também).
Muitas vezes, os legados decidem-se em conjunto para maior clareza simbólica. Podia ter algo de profético, esta homenagem ao punk cair antes da produção de um reality show, depois de ter sido comissionada pelos moradores e vizinhos para imortalizar o espírito de rebelião do bairro (é mais fácil ser íntegro quando os pais têm dinheiro).
Ia pegar de novo no telemóvel quando fui interrompido por Michael Ashcroft, que me segurou a mão com que o tirava do bolso.
— Não acha que a sua narração está a ir longe demais?
Ri-me e continuei, tinha um contrato de prestação de serviços, mas não ia deixar de ser divertido ou podia hipotecar o meu engajamento. Óbvio que a confusão não durou muito: a polícia que estava de volta do presidente da câmara lá o deixou com água, como se faz aos passarinhos desfalecidos, e foi indicar onde estavam os trabalhadores à ambulância que chegava mais rápido do que o costume (deviam achar que era o presidente que precisava). Depois vieram para cima de mim, perguntar-me porque é que estava a filmar, mas o Michael Ashcroft defendeu-me, como se não me tivesse tentado censurar ainda há pouco:
— Esse é o nosso repórter. Hoje à noite também vai cá estar. E os senhores agentes deviam vir também depois desta chatice, para tomarem um copo e verem o que se vai passar aqui na… — disse Michael, antes de olhar para mim à espera que terminasse, com um sorriso bastante cínico.
— N’A Capital da Arte, o novo reality show dedicado à arte contemporânea em Lisboa, produzido pela câmara municipal — disse eu, com um sorriso amarelo e o telemóvel virado para nós.
— Olha… e não podiam ter feito um com polícias? Isso é que as pessoas iam gostar… — disse o agente, divertido e decerto sabedor do sucesso da série Cops.
*
No mesmo movimento sombrio das baratas, passaram também alguns vizinhos indignados com o glamour.
Era o cocktail de lançamento de A Capital da Arte e o nosso último momento de descontração em conjunto antes do começo da competição. Depois da parede partida, dessa manhã, era difícil que o estrondo não assustasse a vizinhança.
Agora, será que a Vera Ricciardi ia aparecer? A Vera tinha todos os elementos de devoção alheia, o dinheiro, as casas em Alvalade, a coleção de arte antiga do pai e, claro, o bom aspeto que coroava todo este constructo.
«Imagina encontrares o melhor street artist do mundo… Sem sequer gostares de street art… A sério, foi assim com ela», disse alguém do concurso, en passant.
— Ouve lá, sabes se ela vem? — perguntou-me o Bazarov, a beliscar-me a lapela do blazer — Isso é que era uma alta história, um artista pobrezinho como eu… Pobrezinho, mas bonito, não pode ser como o Rui Castanho, que ficava mal ao lado dela… Um assim pobrezinho, mas muito jeitosinho, a viver um grande amor com ela, as casinhas em que eu ia dormir por esse mundo fora com aquele corpo… de obras de arte, claro… ao meu lado. Olha, precisava de falar contigo off the record…
Baixei a câmara e fiquei só a filmar com a câmara secreta e com o iPhone do bolso.
— Diz.
— Como é que eles te meteram nisto, meu? Tu tinhas uma cena fixe. Tu eras amigo do Ricardo Passaporte (4), o gajo apareceu nos teus vídeos de Lisboa Fala Bem, tanta gente fixe na verdade… Como é que te foste vender para isto?
— Fui apanhado a investigar o reality show, brother. Ameaçaram-me que, ou fazia parte deste programa com a minha plataforma, com um vencimento muito razoável por isso, ou ainda podia ir para tribunal…
— Eish… Boa sorte, então. Já sabes, se conheceres a Vera, fala-lhe bem de mim.
Ri-me, só nesse momento é que me apercebi de que a Vera podia estar por perto. Talvez a minha missão desta noite fosse encontrá-la? Era difícil deixar de operar no framework de reportagem. Só que não fui a tempo, o Roger foi o primeiro a vê-la. Ficou até arrepiado, quase como se tivesse uma ligação com ela, o que me interessou. Foi ter com ela à divisão trancada onde cabiam ainda mais segredos.
Face à ausência da missão principal, reparei em Angel. Era claramente um artista cool, porque não estava a vestir fato e gravata num jantar de apresentação. Talvez os meus códigos estivessem ultrapassados. Ele ficou noiado.
— Dá-me só um segundo… — disse Angel, enquanto se dirigiu à zona da casa de banho fingindo má disposição. Não percebeu que o amigo tinha visto Vera Ricciardi, mas nós percebemos. Só que olhou em cheio para os meus olhos, que por serem também a câmara nos óculos, eram todos os nossos olhos em stream.
Sem grande hipótese de fingir que não o espiava à distância, recebi os dois manguitos que ele ergueu na minha direção com toda a solenidade. Foi nesse momento que ele foi ter com Maria do Ó e Carol O’Neill.
— Estão a falar de livros ou é para me ir já embora? — atirou Angel ao chegar ao pé delas e de mim. — Estou a acabar Os Contos de São Petersburgo, do Gogol. Que belíssimo título — disse ele, a mostrar a sua edição sublinhada, completo com post-its de anotações.
— Então, do que trata? — disse Carol, picada de não conhecer — Também tento ler novas propostas contemporâneas, cenas frescas, sabes?
— São, tipo, histórias com um toque de surrealismo, de absurdo idiota. Eu tenho muitos amigos que não leem, mas que iam curtir disto. E claro, ideias de caricatura, algo que tem muito que ver com o que quero fazer no meu trabalho escultural — respondeu Angel.
Ambas se viraram para ele para conversarem, o que fez com que as equipas de filmagem dos norte-americanos começassem a captar as microexpressões desta interação. Achei que não conseguia fazer melhor do que eles e decidi focar-me em histórias alternativas.
Demorei-me longamente na interação do Diogo Sacramento com a Márcia Ferreira, porque ele já estava com aquele arrastar de asa manifestado nas festinhas na perna, o típico artista com os copos a ver se se safava. Para minha estranheza, reparei na forma recriminatória com que Fábia Santana abanou a cabeça face a este comportamento — até aqui mais entretida a criticar os trabalhos e os percursos dos colegas de concurso. O seu bob afiado revelava um pescoço elegante, mas distraí-me ao ver que Márcia não parecia totalmente desagradada com o apreço do artista seboso cuja única fama era o peso do seu apelido. Foi nessa altura que fomos todos chamados para um momento de reunião, para onde todas as câmaras estavam apontadas.
*
Os artistas sentaram-se numa mesa comprida, muito florida e com uma noção muito sofisticada de decoração. Era lá que iam dar a conhecer as suas personalidades para as primeiras filmagens.
— Roger, tu estás bem conectado com a arte, certo? — perguntou Fábia, após vê-lo sair de uma zona privada da galeria.
— Não tanto quanto gostaria… Há aqui autênticos membros de famílias reais da arte… — disse Roger, a sorrir na direção de Diogo Sacramento.
— Não estou aqui para falar da coleção do meu pai, desculpem lá. Tenho passado os últimos anos a tentar desenvolver o meu gosto, o que é difícil quando fui criado numa redoma habitada pelo gosto dele — disse o Diogo Sacramento que, nesta fase, já estava quase colado à colega.
(1) Solarpunk é um subgénero de ficção especulativa e um movimento social coletivista que exige a progressão da tecnologia a par do cuidado com o ambiente.
(2) Um modelo de negócio de e-commerce em que o lojista vende produtos sem ter stock próprio.
(3) Referente a Christo e Jeanne-Claude, ambos nascidos em 1935, na Bulgária e em Marrocos, respetivamente.
(4) Pintor português, nascido em 1987.
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