O pretexto para este encontro foi o lançamento de mais um livro. Desta vez não é um livro de memórias. Ou por outra, também é um livro de memórias. Trata-se da seleção de 12 entrevistas feitas para televisão há 25 anos, quando Carlos Cruz inaugurava na RTP um estilo de conversas hoje seguido, talvez, por Daniel Oliveira, na SIC. O objetivo não era fazer chorar as pedras da calçada. “A única pessoa que chorou numa entrevista minha foi a Amália Rodrigues e não foi no programa que dá origem ao livro, foi no “Quinta do Dois”. Depois tive de pô-la a rir. Nesta série quem esteve na fronteira da comoção foi a Eunice Muñoz.”

Hoje quem parece estar à beira das lágrimas é o próprio Carlos Cruz. Garante que não, que é “um problema na vista”. Mas é um homem triste, por mais que sorria. É inevitável falar da fama, do processo Casa Pia, da prisão. Da esperança e da falta dela. Da última apresentação periódica no Instituto de Reinserção Social, que marca o fim da liberdade condicional, e da decisão do Tribunal Europeu que está para sair por estes dias e pode mudar tudo. Ou não.

“Carlos Cruz, Conte-me Tudo – 12 Grandes Entrevistas”. Porquê estas 12 das 116 entrevistas feitas para o programa Carlos Cruz – Quarta-Feira, que passou primeiro na RTP, depois na TVI?

Fui a eliminatórias sucessivas. Estas cobrem um espectro muito diferente de histórias de vida, da política ao teatro, passando pela maneira de estar na vida, à discussão de Deus. Mas há outras pessoas que também se encaixariam, como D. Manuel Martins ou a Fafá de Belém, que resultou num striptease espantoso. Mas tive de fazer opções e por isso fui cortando, substituindo, foi um puzzle e foi preciso chegar a um consenso com a editora, também. Se tiver algum sucesso, se as pessoas gostarem, poderá haver uma continuação, poderei publicar mais doze. Há depoimentos muito ricos.

Qual o objetivo destas entrevistas?

A minha preocupação era que o espetador pudesse conhecer as diversas facetas da personagem e não apenas a sua atividade pública. A figura pública, a mim, não me interessava. Quando o José Nuno Martins me convidou para fazer o programa era condição que fossem pessoas que aparecem pouco na televisão, que fossem pouco conhecidas. Já tínhamos tido essa filosofia no Zip-Zip. Apesar de tudo, são figuras públicas ou semipúblicas, algumas desconhecidas, como a Maria de Sousa, que deu uma grande entrevista. Quando a entrevistei nem a conhecia. Entrevistei o Prof. Júlio Machado Vaz, que já era uma figura da rádio, mas sem a projeção que tem hoje. O que me interessava era conhecer a pessoa, queria que se auto revelasse. Porque assim poderia formatar de forma mais justa a sua imagem e a ideia que as pessoas fariam dela. Não com intenções pedagógicas, mas porque nós, em Portugal, somos muito rápidos a fazer juízos - e normalmente os juízos duradouros são errados. E temos muita dificuldade em retificar esses juízos. Penso que estas entrevistas contribuíram de alguma forma para muita gente formar uma ideia mais justa sobre uma série de portugueses. Interessava-me o lado espiritual das pessoas, porque acredito que o homem sem espírito não é nada. Homem e mulher, isto agora é muito difícil falar em géneros, com a confusão que para aí anda [riso].

Sentiu-se vítima desses juízos de que fala?

Sim, em determinadas fases. Embora também ao longo do tempo isso que me parecia definitivo foi-se atenuando e as pessoas começaram a interrogar-se, a ter procurar mais informação.

Tem o outro lado da medalha, o endeusamento…

Os deuses, em Portugal, têm todos pés de barro. Os portugueses colocam os outros num pedestal elevado, mas tiram-nos de lá com a maior das facilidades. Cai-se com facilidade desses altares e os portugueses gostam de ver os “deuses” cair. Não os criam para os deixar cair, mas diria que gostam de os ver cair.

As entrevistas têm 25/26 anos.

Sim, a primeira é de 1991.

A idade traz tranquilidade ou, pelo contrário, alguma instabilidade?

Penso que há um misto. A idade dá, basicamente, tranquilidade. As vivências que temos preparam-nos para o aparecimento de poucas surpresas. Há paradigmas e protótipos de comportamento e até fenómenos sociais que se repetem mais ou menos disfarçadamente. Se estamos bem connosco, se não fizemos coisas de que nos arrependemos, dá-nos tranquilidade. Por outro lado, resta sempre – julgo que faz parte da natureza humana - a intranquilidade do desconhecido. E isso traz momentos, não digo todos os dias, de instabilidade, de querer saber mais, saber se o que está para além do dia de hoje vai agitar ou destruir essa tranquilidade em que me sinto confortável e comodamente instalado. Por dentro e por fora. Tirando as enxaquecas, não é? As dores da coluna e as ciáticas e essas coisas. Tirando isso sinto-me muito bem comigo próprio. Costumo dizer a brincar no meu circulo muito íntimo de amigos que estou num plano zen. Pouca coisa me atinge, já. E isso é a tranquilidade.

Isso de estar num plano zen é estar tranquilo ou adormecido, um estado vegetativo?

Não, é tranquilidade, mesmo. É um estado muito consciente e fruto de muita meditação e leitura. É a minha realidade interior, uma viagem interior, informada e meditada sobre o meu percurso de vida. Não é ainda 100% zen, isso é para sábios, não atingi o Nirvana. Estou bem, cada vez mais acordado. É saber relativizar as coisas, arrumar gavetas e ter uma escala de valores que não tinha.

Se estão incomodados, cortem, não faço questão de aparecer no museu da RTP – até me incomoda ser peça de museu

Até há pouco tempo a vida era previsível. Um bom emprego, fama, um futuro risonho. De que forma o conflito o transformou?

Agora não é tão previsível como isso. Porque a sociedade foi-se transformando, com a globalização e com as tecnologias, num mundo despersonalizado. As pessoas já não são mais o ser social que durante séculos se disse que eram. São consideradas individual e separadamente e tentam sobreviver num mundo altamente competitivo. Isso não permite nenhuma previsibilidade, pelo contrário. São cada vez mais commodities. Julgo que vamos chegar a um tempo em que são meramente uma bolsa de trabalho, em que cada um vale xis, tantos bitcoins. Esta desumanização permite tudo, inclusivamente tirar-me da história da RTP. O que, devo dizer, não me chateia rigorosamente nada, porque não elimina o que eu fiz na RTP. E isso para mim basta. Eu disse sempre: se estão incomodados, cortem, não faço questão de aparecer no museu da RTP – até me incomoda ser peça de museu.

O Carlos Cruz foi condenado a seis anos de prisão efetiva por crimes de abuso sexual de menores no Processo Casa Pia. Declarou-se sempre inocente, mas não me lembro de o ver esbracejar. Alguém inocente aceita tão pacificamente um veredicto destes?

Há um pequeno erro nessa observação: primeiro, esbracejei até onde consegui. Não quis esbracejar sem argumentos e o meu esbracejar foi apresentar provas. Mas essas provas foram ignoradas. Sou condenado sem provas, por uma coisa que se chama “ressonância da verdade” [aquilo que faz com que se acredite numa pessoa e não se acredite noutra, que leva à convicção, que afasta a dúvida além de qualquer dúvida razoável, de acordo com os magistrados]. Fiz os possíveis, fui até ao Tribunal Constitucional. A partir daí não há mais nada. A consciência tranquila é um calmante muito grande.

Os meus livros são um esbracejar

Há o Tribunal Europeu.

Temos uma queixa no Tribunal Europeu, cuja decisão deve estar a sair até ao final do ano ou em Janeiro, vamos ver. O que não quis foi fazer um espetáculo, porque no fundo o esbracejar é isso, uma tentativa de usar os media, sendo que os media hoje são órgãos alinhados. Então vou esbracejar para onde, para a Costa da Caparica? Aquilo que fiz com as armas que tinha foi demonstrar que não era possível estar envolvido naquilo. Os meus livros são um esbracejar. Contei a história. Quem ler o segundo livro não pode tirar outra conclusão. Eu tinha a consciência tão tranquila que quis acreditar no sistema até ao fim. Nunca acreditei que fosse condenado. Percebi que ia ser condenado quando, já depois das alegações finais, o Ministério Público pede 42 alterações e a juíza começa por aceitar 11. E, se não esbracejássemos, teria aceitado todas. A partir daí era dar entrevistas. Mas como, a quem, com que impacto? Porque, olhando para trás, vê-se o comportamento que os órgãos de informação tiveram no processo.

Consegue perceber isso?

Não. Há várias teorias da conspiração possíveis.

Qual é a sua?

Não tenho.

Afirmou que muita gente não deveria dormir tranquila. Estava a pensar em quem?

São os profissionais das várias teorias da conspiração. Não vou dizer nomes. A ver se eu consigo explicar: na imprensa… Há aqui uma motivação económica também. Os que subiram as tiragens nesses tempos… Depois há pessoas dentro da imprensa que se aliaram à acusação, pura e simplesmente.

Com que objetivo? A quem serviu?

Cabe tudo. Não conto porque não tenho provas materiais. Se me recuso a ser condenado sem provas, não vou acusar pessoas sem provas. Os media tiveram todos os meios para investigar o Processo Casa Pia, saber o que se passava dentro da Casa Pia, quem eram os atores principais, dentro e fora. Todas as pistas, todas as informações. Depois criou-se o chamado pânico moral. Se ler processos parecidos no estrangeiro – há muitos – a forma de organizar o processo, criar o pânico moral e levar a condenar inocentes é semelhante em todos: aconteceu em Espanha, na Alemanha, em Inglaterra, Canadá, Itália…

Se fosse culpado admitiria?

Ao longo de toda a vida assumi as minhas culpas fosse pelo que fosse. Não era neste caso que seria diferente. Passasse pelo que passasse, se eu tivesse feito o que dizem que fiz, teria dito desde o primeiro momento: sim senhor, fiz. Não tenha a menor dúvida, não fujo às minhas responsabilidades. Podia, eventualmente, tentar apresentar atenuantes. Mas jamais diria que sou inocente. Aliás, veja as histórias que se criaram à volta da casa de Elvas, por exemplo. A casa das orgias, o que isso meteu na cabeça das pessoas. Ainda hoje se fala nisso e ficou provado que não se passou rigorosamente nada, tudo se desmoronou. E eu fui condenado sobre dois crimes sobre a mesma pessoa. Estavam lá outras pessoas, uma delas diz que foi à tarde, outras depois do jantar, outro às nove da manhã… O Ministério Público diz que eu fiz obras no prédio, criando uma entrada secreta… Está tudo louco.

Das 116 pessoas que entrevistou na altura, alguma lhe telefonou a propósito do processo?

Quando apareceram os primeiros boatos, o casal Eanes telefonou-me. Depois o general Ramalho Eanes foi minha testemunha abonatória, não foi a tribunal, fez um depoimento por escrito. Não sei qual a posição da Dra. Manuela Eanes neste momento, devido às ligações de amizade que tem com pessoas ligadas ao processo. Mas não acredito que passe pela cabeça do general Ramalho Eanes que sou culpado seja do que for. Ele conhece o meu caráter. Os outros eram pessoas com quem não tinha relações pessoais, mas o D. José Policarpo deu na altura uma entrevista em que afirmou: “no Processo Casa Pia há pessoas inocentes.” E eu considerei aquilo um recado para mim.

Não sou católico, sou um grande apreciador do Papa Francisco

É católico?

Não sou católico, sou um grande apreciador do Papa Francisco. Não sou católico por aquilo que a igreja católica é e tem sido ao longo dos tempos. Fui admirador de João XXIII, de João Paulo I também e agora do Papa Francisco. Mas tenho o meu deus e dou-me muito bem com ele, não sei se se chama deus, mas há uma entidade que me impele e que me enriquece a vida. Penso que o espírito existe e que estamos em vários planos. Acredito na vida anterior…

O que acha que foi numa vida anterior?

Não faço ideia. Mas estive tentado a fazer regressão. Não sei se existe alguém que o faça em Portugal, deram-me uma vez o nome de um especialista. Fiquei tentado depois de ler um livro de Brian Weiss, “Muitas Vidas, Muitos Mestres”. Gostava de conhecer as minhas vidas anteriores. O pior é se ficava cheio de raiva por saber que tinha sido aquilo e não era aquilo que me apetecia ter sido [risos]. Mas acredito que há diversos planos e que nós somos uma partícula de energia que anda por aí a viajar nas galáxias. É nesse sentido que tenho um deus, acho que há uma entidade superior.

Reza?

Houve momentos da minha vida em que rezei. Geralmente quando estive preso.

O que rezava?

Rezava orações minhas, que eu construía. Era o que eu sentia e dirigia-me a uma entidade que não sei quem era e pedia essencialmente que se esclarecesse a verdade. Que é isso que interessa e é o que continua a interessar-me.

Acredita que vai acontecer?

A verdade, se considerarmos porque é que o processo nasceu, porque se desenvolveu, penso que será muito difícil saber-se. Agora, a presunção da minha inocência…

Para as suas filhas, como foi e é tudo isto?

Foi um horror, sobretudo para a mais velha, que tinha na altura 15 anos. Isto destruiu-a, desestabilizou-a completamente. Felizmente está quase recuperada. Ela não me diz, mas eu sinto o seu sentimento de revolta contra - ia dizer o país, mas o país é tanta coisa… - contra a sociedade. Sinto-lhe reações que são traumas, ainda. A mais nova, felizmente, tinha dez meses quando tudo isto aconteceu e a partir dos seis anos eu e a mãe começámos a explicar todo o processo e foi crescendo a perceber o que estava em jogo. Para nossa sorte foi bem integrada na escola, quer pelos colegas, quer pelos professores e pais dos alunos. É uma miúda sadia, fala da minha prisão com a maior naturalidade: “Quando o pai estava preso…” Está com 15 anos e, mais do que orgulho, dá-me felicidade.

O Carlos Cruz fez psicanálise?

Fiz. Fiz psicoterapia, na medida em que tive uma depressão profunda. Foi com o Prof. Daniel Sampaio, um ano e meio, se não me engano. Foi um período complicado da minha vida, em 1992. Em 1993 tive um cancro na garganta, numa corda vocal, e em 1994 fui operado ao coração. Sou diplomado. Hoje faço auto psicanálise. E aqui estou, vivo, com 75 anos. Estatisticamente já cá não devia estar, não era?

Não. A esperança de vida já vai quase nos 80.

É?! Não sei se me apetece.

O que fazia na prisão?

Lia e escrevia. E de vez em quando ia apanhar sol. Li cerca de 200 livros, era um leitor compulsivo.

O que lia?

Tudo. Acompanhava mais ou menos a saída dos livros, lia as críticas… Depois apeteceu-me reler Eça de Queiroz. E ainda bem que o fiz, porque percebi muita coisa.

O meu percurso foi cortado há 15 anos, já está na altura de estar adaptado

Está a adaptar-se, hoje?

O meu percurso foi cortado há 15 anos, já está na altura de estar adaptado. Adaptei-me… Fui uma pessoa de alguns sonhos, projetos, ideias, mas não fui fundamentalista, um teimoso no sentido de ter de fazer isto ou aquilo. A minha teimosia é no sentido de fazer o que gosto e me dá prazer e, se puder dar prazer aos outros, partilhar, melhor. Para já tive de me adaptar à vida - o julgamento durou quatro ou cinco anos, o meu quotidiano era ir para o tribunal. Mas depois da sentença, antes de entregar os recursos todos, foi uma vida perfeitamente normal. E comecei a pensar em escrever uma biografia, hesitei muito, que interesse poderia ter para as pessoas, até decidir que valia a pena, quanto mais não fosse para deixar à família alguns episódios desconhecidos da minha vida. E isso acabou por coincidir com o tempo em que tinha tempo, sem nada a incomodar à minha volta. Estava na cela e escrevi à mão mais de mil páginas. E depois comecei a fazer exercícios de ficção, que continuo a exercitar, coisas pequenas, contos. E tenho um projeto, que não sei se executarei, no campo editorial: gostava de escrever um livro não muito ambicioso, mas que fosse a minha maneira de ver o ato da entrevista. Apetecia-me teorizar sobre isso, uma experiência que vivi durante muitos anos de profissão. Não exactamente técnicas, mas como eu encarava cada uma destas conversas. Portanto, se a minha editora se interessar por isso, pode ser que. Depois tenho uma história real muito curiosa de auto recuperação social, um homem que conheci no Norte e cuja vida gostaria de contar. Ele já aceitou, agora tenho de lá ir passar uma semana e umas horas a entrevistá-lo. E são as ideias e os projetos que eu tenho, pode ser que apareçam outras coisas pelo caminho…

De que abdicou?

Principalmente de algumas comodidades materiais que, depois de tudo isto, chego à conclusão que não tinham a importância que eu lhes dei na altura. Vivo muito bem sem as coisas materiais, talvez até por esta experiência interior de me ter virado mais para dentro de mim. Eu era um comprador compulsivo de gadgets, por exemplo. Saía um brinquedo novo, eu comprava. Devo ter sido dos primeiros portugueses a ter telemóvel, mas antes disso eram gravadores, câmaras de vídeo, gira-discos, leitores de CD, DVD, esse tipo de coisas. Depois tinha dois bons carros, mais pela comodidade do que propriamente o resto, não eram topo de gama, eram gama média alta. Tinha possibilidade de os ter… E tinha boas casas. A primeira vez que tive uma vivenda foi em meados dos anos oitenta e depois fui sempre mudando de residência. O meu problema, neste momento, são as coisas que tenho: não sei como me livrar delas, está muita coisa encaixotada.

E hoje, a que dá valor?

A uma boa conversa. Estar sentado à mesa a conversar, sobre tudo e sobre nada. Sobre a vida e sobre os outros, pouco sobre política, mas isso já há muito tempo, embora acompanhe minimamente os dramas da saúde, da educação e tenha muita pena do estado em que estamos comparado com outros países europeus. Não sei mesmo se a Grécia, com todos os problemas, não estará numa situação mais saudável do que nós do ponto de vista social. Mas não discuto política, Bordalo Pinheiro definiu a política de uma forma exemplar e definitiva.

Alguma vez lhe ofereceram um cargo político?

Político, mesmo, não. Apenas convites para aderir aos partidos. E também o cargo de presidente ou de diretor-geral da RTP, mas recusei sempre.

Vê televisão, hoje?

Vejo muito pouco. Passei três anos a ver televisão na cela, só canais generalistas, e hoje olho para a televisão um pouco como – já era assim, mas hoje mais do que nunca - quem olha para um microondas, só que com muito menos utilidade.

O que o move?

Basicamente o que me continua a mover é que a minha família esteja bem. Que eu esteja bem para a minha família poder estar bem.

E está bem?

Estou… Estou tranquilo. Como disse no princípio, estou comodamente instalado dentro de mim próprio. Não tenho angústias, não tenho ansiedades, não tenho traumas, não tenho marcas… Tenho desilusões, muitas desilusões com este sistema de justiça. Foi um choque muito grande, eu acreditava cegamente na justiça. Não me traumatizou, mas se houvesse uma relação sentimental entre mim e a justiça, diria que me deu um grande desgosto. Refiro-me mais à justiça do campo penal, que é aquela com que tive contacto direto. Teria de se fazer um Código Penal completamente novo, adaptado à vida moderna e aos níveis dos países mais civilizados e um Código de Processo Penal em que fossem dadas todas as garantias sem qualquer dúvida quer aos assistentes, quer aos arguidos. E não é assim, os julgamentos são completamente desiguais. A formação de um juiz de 35 anos não é a mesma de um juiz de 60 ou 70 anos, a de um juiz do meio urbano não é igual à do meio rural. Não pode haver liberdade total para se entregar nas mãos de uma pessoa ou de um coletivo a vida de um cidadão, para o bem e para o mal, por mera convicção. Aliás, o edifício jurídico português assenta num princípio básico: in dubio pro reo, ou seja, em caso de dúvida absolve-se o réu, porque mais vale um culpado à solta do que um inocente preso. A condenação por convicção é a negação deste princípio. Uma convicção não é uma certeza.

Disse que é um homem tranquilo, mas olho para si e parece que vai desatar a chorar a qualquer momento…

Não, não é. É que estou com um problema na vista, qualquer substância que me entrou para o olho. Não tenho a mínima vergonha de chorar, só não chora quem não tem sentimentos, quem não tem emoções.

Ainda tem de fazer apresentações periódicas no Instituto de Reinserção Social?

A minha última visita – o contacto com o Instituto de Reinserção Social decorre ao longo de todo o período de liberdade condicional – terminou a 2 de Dezembro. Há uma psicóloga que acompanha o nosso percurso, conversa connosco sobre a nossa vida, os nossos projectos. Eu já estava com apresentações de quase dois em dois meses e acabei de pagar a dívida à sociedade no início do mês, que isto é como um empréstimo que fiz à sociedade.

O Tribunal Europeu pode decidir que houve erros no julgamento e recomendar a reabertura do processo. Se o tribunal aceitar (há casos em que não aceitou) vale a pena reabrir o processo ou é reabrir uma ferida?

O processo é baseado na queixa que apresentámos e o julgamento terá de ser feito emendando os erros que foram cometidos. Uma das componentes da queixa é que durante o julgamento não foi permitido ouvir as declarações que os rapazes fizeram à polícia ou ao Ministério Público e que são diferentes do que disseram em tribunal. Ainda não pensei se é reabrir uma ferida, mas é uma questão de justiça.

Voltando ao livro e para terminar, quem lhe deu mais gozo entrevistar?

Difícil. Não há um valor absoluto para o gozo nestas coisas. Posso dizer que uma das entrevistas mais brilhantes é a do jornalista Alberto Dines. Espetacular. Álvaro Cunhal, também. E o general Ramalho Eanes, porque entrámos na parte dura da guerra e da vida militar. O que me deu gozo foi o que aprendi sobre essas pessoas, com essas pessoas. D. Manuel Martins, Fafá de Belém, Maria de Sousa… É mais fácil dizer quem não me deu gozo entrevistar. Houve um senhor que me foi difícil, o autor da Ponte da Arrábida, Edgar Cardoso. Eu não me encaixava na sua linguagem, queria ir ao homem e ele não me deixava entrar por aí. Recordo-me que fiquei irritado. E houve outro, o autor da biografia do Gulbenkian, essa entrevista correu mal por minha causa, não estava bem, de tal forma que pela primeira vez na vida repetimos uma entrevista. Pedi-lhe para gravar outra vez, a conversa não fazia sentido. Ainda hoje não sei o que se passou, mas não estava ali. Todos os que estão vivos voltariam a dar excelentes entrevistas.