"Senhor Presidente da República, senhor primeiro-ministro, senhor presidente da Câmara [Municipal de Lisboa] venham aqui dar a cara. Não é só Natal e quando há eleições que precisamos das vossas palavras de conforto. Continuamos invisíveis", acusou António, um dos sem-abrigo que discursou perante as dezenas de manifestantes que se concentraram hoje frente ao edifício do Parlamento em Lisboa.
"A rua não é uma escolha - Queremos casas" era uma das palavras de ordem escrita num enorme lençol atado às grades de segurança da escadaria da Assembleia da República montadas pelos agentes da PSP presentes no local.
A concentração que decorreu de forma pacífica juntou pelo menos três dezenas de sem-abrigo e pessoas desfavorecidas, de todas as idades, da zona da Grande Lisboa: "da Avenida da Liberdade até à 'Cova da Morte'", numa referência ao bairro da Cova da Moura.
A manifestação "nasceu na rua" mas contou "inicialmente" com o auxílio do Seara - Grupo de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, e foi convocada poucos dias depois do despejo de 13 pessoas carenciadas ou em situação de sem-abrigo e que viviam num antigo infantário, em Arroios (Lisboa) e que servia de "centro de apoio para pessoas carenciadas".
"Quando sabem que somos sem abrigo pedem-nos seis ou oito meses de caução para um quarto. Não temos direito a nada e temos de correr muitas burocracias. Fartei-me de dar tempo de antena aos políticos. Eu não sou um número, sou uma pessoa", disse Sara, uma das manifestantes que se queixa da falta de apoios do governo, dos autarcas e da Santa Casa da Misericórdia.
"Precisamos de um teto. Todos os meses as mulheres têm a menstruação e não há apoio para nada, nem sequer para médicos. As pessoas passam por nós e nós somos invisíveis", disse acrescentando que cada vez há mais pessoas a viver nas ruas de Lisboa.
"Cair na rua é muito fácil mas muitos querem sair da rua e há muitas casas fechadas e nós temos direito a um teto. A melhor solução é pegar nos sem-abrigo e ver as necessidades de cada um. Quem quer sair da rua anda anos em luta e não consegue nada", queixa-se Sara frisando que "são muitas as casas vazias" na capital.
Sara vive na rua, não tem emprego e sente-se discriminada pela sociedade e pelas instituições.
"Eu sou um ser humano e agora com o 'covid' fecharam as instituições, andamos todos ao molhe e as únicas ajudas que temos é roupa. Dão-nos um rendimento mínimo que não dá para alugar um quarto. Os quartos custam 700 euros e nós recebemos 189 euros. Vivemos 20 pessoas num quarto e a alimentação não presta", diz Sara indignada com a situação em que se encontram "milhares de pessoas".
Hoje, uma nota do gabinete do vereador da Educação e Direitos Sociais, Manuel Grilo, do Bloco de Esquerda (que tem um acordo de governação da cidade com o PS), refere que desde o início da pandemia já passaram pelos quatro centros de acolhimento de emergência para sem-abrigo criados pela autarquia mais de 500 pessoas.
Segundo o documento, 47 foram encaminhadas para o programa “Housing First”, um projeto financiado pela Câmara de Lisboa em que as pessoas são integradas em habitações tendencialmente individuais e têm um acompanhamento por técnicos que as orientam a gerir uma casa tendo em vista a sua integração social.
A autarquia, segundo a nota, prevê que até ao final do ano um total de 380 pessoas estejam alojadas através deste programa.
Para os sem-abrigo reunidos frente ao Parlamento hoje de manhã o vereador do Bloco de Esquerda "vive fora da realidade".
"Não há até hoje, dia 15 de junho de 2020 nenhuma casa municipal atribuída a um sem-abrigo", disse Guerreiro, um dos manifestantes que se mostra indignado com a autarquia.
"As pessoas só servem para votar de quatro em quatro anos, depois não encontramos nenhum vereador da Câmara Municipal de Lisboa a receber a população. Porquê? Questiona o sem-abrigo que transporta um cobertor à bandoleira, uma garrafa de álcool-gel numa mão e na mão esquerda a Constituição da República.
"Trago aqui a Constituição da República Portuguesa porque se alguém do Parlamento aqui vier eu quero relembrar aos ilustres deputados que existe o direito à habitação, mas o país está a ser governado por uma esquerda burguesa que não quer resolver os graves problemas, começando pela habitação", concluiu frisando que "não há falta de casas vazias em Portugal".
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