Gustavo Carona: "Dei tudo o que tinha pela vida de mulheres de Burca, darei o que me resta para que não a usem"

A lei aprovada no parlamento que passa a proibir o uso de burca nos locais públicos, acordou um debate no país. O médico Gustavo Carona partilhou nas suas redes sociais um texto sobre o tema.
Gustavo Carona:

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Gustavo Carona tornou-se conhecido dos portugueses durante a pandemia, mas antes de vir lutar contra um vírus invisível esteve, desde 2009, em zonas de carência humanitária extrema ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras, dos Médicos do Mundo e da Cruz Vermelha Internacional.

Começa o texto de forma perentória "as burqas e os niqabs são um símbolo do extremismo religioso e do expoente máximo do machismo tóxico, não são um símbolo do Islão." De forma a nunca se esquecer disso  refere o quadro que trouxe do Afeganistão, de "enorme beleza, mas duma beleza cruel, duma mulher de burqa", além de o lembrar do Afeganistão, país que ficou no seu coração serve "para que nunca me esqueça da luta feminista que eu prometi a mim mesmo que o faria até ao meu último fôlego, por aquelas mulheres tratadas literalmente abaixo de cão"

Na publicação nas redes sociais, Gustavo Carona,  médico anestesista e intensivista, partilha experiências onde a burca foi um entrave e um símbolo de repressão.
Lembra o Paquistão e o momento em que tentava salvar a vida a uma criança que tinha um traumatismo craniano e cuja "única preocupação da sogra (que prejudicava o meu trabalho) era quando o véu lhe destapava o cabelo com os movimentos erráticos da cabeça, secundários ao quadro clínico... A sogra estava mais preocupada que a jovem não perdesse a sua "dignidade cultural" do que me deixar fazer o meu trabalho para lhe salvar a vida."
Ainda no Paquistão foi chamado de urgência para assistir uma "parturiente em paragem cardíaca a esvair-se em sangue", mas "por ser homem" só o deixaram entrar na maternidade depois de  garantirem "que todas as mulheres estavam tapadas dos pés à cabeça, o que demorou uns minutos... A mulher morreu, não sei se não lhe teria salvo a vida se não tivesse entrado uns minutos antes."
Durante a Guerra Civil Síria, Gustavo Carona conta ter visto em semanas/meses "a transformação da vestimenta das mulheres à medida que grupos radicais como Alqaeda e Estado Islâmico floresciam naquela zona. No início algumas mulheres usavam véu "normal" outras não, depois cada vez mais hijabs, e depois cada vez mais burqas e niqabs pelo medo de morte dos extremistas islâmicos."
Gustavo Carona partilhas estas e outras histórias na publicação que diz estarem contadas também no livro O mundo precisa de saber, mas faz também um exercício de memória e lembra a muçulmana Benazir Bhutto, Primeira Ministra do Paquistão "eleita democraticamente num país com 99% de muçulmanos e não usava nem véu (por norma), aparecia quase sempre em público de cabelo totalmente à mostra." Recorre à História para reforçar a ideia de que o Al Corão tem poucas referências aos trajes femininos, "dedica um dos versos (sagrados para alguns) do Al Corão à vestimenta da mulher por uma questão de segurança das mesmas. As mulheres mais pobres (algumas escravas) usavam vestes mais simples e humildes, há 1400 anos. As mulheres de estatuto social mais alto e livres, usavam uma espécie de túnica/capa e sabia-se que estas não eram atacas e violadas (por serem mais respeitadas e ouvidas), ao contrário das que tinham vestes mais humildes, e por isso Maomé cria um verso no Al Corão dizendo que as mulheres deveriam usar uma túnica/capa."
E, saltando para o presente, realça que "como em todas as religiões, das escrituras consideradas sagradas originais, há clérigos que lhes acrescentam interpretações "a gosto". E com a clara intenção de subjugar a mulher como objecto do homem, muitos clérigos adulteram/acrescentam a estes versos do Al Corão, a questão do véu, e depois da cara... até chegarmos, relativamente recentemente na história às burqas e aos niqabs."
Mas acrescenta uma história presente no Al Corão e que muitos ignoram:  "O Islão tem nas suas origens um feminismo que mesmo aos dias de hoje seria visto por muitos conservadores como um ultraje. A primeira mulher de Maomé era mais velha do que ele, era o que seria hoje uma CEO duma empresa de exportações e importações, ele trabalhava para ela e por isso é que se apaixonaram, e é ela que o pede em casamento a ele (nada mau para o séc. 6 DC !). Esta primeira mulher morre, dizem os historiadores que foi o grande amor da vida dele do qual ele nunca se refez totalmente no coração. A 2a mulher é em parte guerreira e faz parte de incursões violentíssimas entre clãs, o oposto a submissa."
Sobre a lei discutida na Assembleia na sexta-feira, diz que "em momento algum me passa pela cabeça que a lei possa dizer que roupa uma mulher (ou um homem) pode ou deve usar, e de leis eu não percebo nada, e até acho que há coisas bem mais importantes de criminalizar (e impôr de facto a lei) do que se uma pessoa pode ou não tapar a cara, por exemplo o discurso racista, o discurso de ódio, ou o discurso anti-ciência que mata milhões pelo mundo fora."
Depois de ter passado pela República Centro Africana, o Sudão do Sul, Burundi, Afeganistão, Síria, Iraque, Iémen e Faixa de Gaza, assinala que é "totalmente a favor da multiculturalidade, não me interessa nada se Portugal como Estado laico que é, e como todas as democracias verdadeiras o são (ao contrário de Israel e outras repúblicas ou monarquias islâmicas p.e. que não são laicas, logo não são verdadeiras democracias plenas) tem mais pessoas desta ou daquela religião, interessa-me sim que se proteja a democracia, e para isso é preciso balizá-la com muito afinco quer de discursos racistas e fascistas, quer dos extremismos religiosos sejam de que religião forem."
E com todas estas experiências onde reconhece a burca como uma subjugação da mulher, diz ter mais dúvidas que certezas. "Não sei se a burqa e o niqab devem ou não ser proíbidos porque tenho sentimentos contraditórios entre liberdade cultural e religiosa, versus segurança e o abrir portas à total humilhação da mulher e dos extremismos que matam."

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