Não sei por decisão de quem — provavelmente de todo o Governo —, o Dr. Carlos Macedo, à época ministro de Saúde, pelo então PPD (Partido Popular Democrático, hoje PSD), instituiu o SMP (Serviço Médico na Periferia), embrião do actual SNS (Serviço Nacional de Saúde). Ao abrigo do SMP, o curso de Medicina passou a prever que os jovens médicos exercessem um ano fora da cidade. Não foi fácil. Alguns já tinham família, filhos; outros opunham‑se por razões «políticas», achando injusta esta imposição. Conseguiu‑se negociar com o Ministério da Saúde um conjunto de condições que hoje seriam impensáveis. Iríamos mediante a condição de podermos escolher as especialidades que queríamos quando voltássemos a Lisboa. Planeavam‑se as respostas às necessidades sociais em termos dos interesses pessoais…
A paisagem dos serviços de saúde no país era desoladora. Apesar do esforço de alguns, entre eles o Professor Arnaldo Sampaio, para implementar unidades que faziam prevenção e consultas fora dos grandes centros, o panorama era de facto uma desgraça.
O SMP foi uma das fases mais importantes da minha vida de médico. Com um grupo de colegas, que eram também amigos próximos, fui para o Alentejo (Cuba e Vidigueira). A nossa motivação tinha um cariz político, não no sentido partidário, mas no da «obrigação» de contribuir para um país melhor. Vivíamos quase todos juntos numa casa cedida pela autarquia, que decorámos com escasso mobiliário, transportados por um Berliet do Exército.
Terá sido lá que a psiquiatria começou a ganhar à medicina interna. Ainda que nenhum de nós fosse já especializado, tínhamos algumas preferências. Recordo que tudo o que parecia ser do foro psicológico era encaminhado para mim. Quase sempre que tínhamos de dar más notícias às famílias, eu era chamado. De facto, o meu caminho para a psiquiatria também foi «promovido» pelos meus colegas. Servia-me de retaguarda e de suporte a minha irmã, então no internato de psiquiatria.
A vida dos alentejanos não era fácil: o alcoolismo era endémico, a violência sobre as mulheres, frequente e escondida. Nunca tinha havido médicas na região, só dois médicos, um dos quais se retirou logo que chegámos, ao perceber que a sua prática privada iria acabar. Pela primeira vez, as mulheres puderam queixar-se dos seus problemas ginecológicos. Recordo uma que tinha um quisto na vagina, mantinha com o marido relações sexuais muito dolorosas e, claro, sem nenhum prazer. Depressa foi encaminhada para uma ginecologista, tendo ficado eternamente grata por finalmente descobrir que o sexo também podia ser bom para ela.
Passámos o 25 de Novembro no Alentejo, o que não foi fácil para aqueles de nós que tinham envolvimento partidário. Quando voltámos, em 1976, eu já estava separado da minha primeira mulher, e fui viver com a mãe da minha filha mais velha.
Ficámos a aguardar a entrada no internato de especialidade. Depois de uma boa classificação no exame, pude escolher para onde ia aprender a ser psiquiatra. O Hospital Miguel Bombarda, onde se encontrava a Milice, estava fora de questão. Falei com ela: aconselhou‑me Santa Maria, onde deveria escolher uma determinada equipa.
É preciso explicar que esta especialidade era tudo menos consensual. De um lado estavam os que seguiam as práticas médicas mais tradicionais: recolha da história clínica, sintomas, diagnóstico e terapêutica medicamentosa.
Caricaturando, era como se um conjunto de dados levasse a uma medicação, sem se olhar muito para a pessoa. Corro o risco de cometer uma injustiça, mas várias vezes ouvi «se querem conversar vão ao psicólogo»…
Eu conhecia o Daniel Sampaio, que apesar de pouco mais velho do que eu já era especialista e exercia em Santa Maria. Falei com ele e procurei saber como funcionava a equipa. Chefiada pelo João França de Sousa, reunia colegas que, a par da formação psiquiátrica, investiam na formação pessoal como psicoterapeutas. Na sua maioria, eram ou iam ser grupanalistas, alguns tendo‑se tornado psicanalistas. A decisão de me juntar à equipa marcou para sempre a minha vida profissional e a forma como acompanho os doentes individuais.
O Daniel foi o meu tutor durante quatro anos. Nos primeiros meses, assisti às suas consultas, que depois discutíamos. Era uma relação muito fácil, em que ele ensinava e eu aprendia; não sendo entre iguais, havia grande cumplicidade, que haveria de se reflectir no que, mais tarde, construímos juntos e com outros colegas.
O padrão pedagógico era fortemente reflexivo. Todos os doentes eram discutidos à frente da equipa, quer no sentido psicopatológico, quer psicológico. Tentava‑se compreender a pessoa sem desprezar o seu quadro clínico, e a terapia incluía, além de medicamentos, a psicoterapia.
Semanalmente, cada um de nós falava com um doente à frente de toda a equipa. As minhas primeiras entrevistas foram acompanhadas de muita ansiedade, pelo receio de ser julgado incapaz. Mas o contexto era tolerante, nunca duro. Depois de cada entrevista, cada elemento da equipa fazia os seus comentários, sem receio de que não fizessem sentido. A avaliação final era uma síntese do que tinha sido dito.
Este modelo, instituído pelo João França de Sousa, ficou‑me para o resto da vida e repliquei‑o quando, na faculdade ou no hospital, formei psicólogos ou psiquiatras.
Comentários