Um desafio que pede experiência e precisão com dezenas de peças.
"Temos de abrir a cambota", diz em voz alta, já por baixo do veículo, com uma das ferramentas na mão, por entre o roncar de outros carros na zona de reparações.
Levanta-se, pega na caixa de ferramentas que carrega por todo lado.
Escolhe cada uma criteriosamente para abrir os compartimentos do motor, um a um, com ritmo.
O frenesim contagia quem por ali anda entre carros a ser reparados e até parece uma grande 'box' de desporto automóvel.
Mas a Praça da Paz, em Maputo, é um lugar a céu aberto, repleto de ases da mecânica a deslizar na lama com papelão antigo nas costas para debaixo dos carros com peças usadas nas mãos - aqui, ninguém tem peças novas.
"Não pude relacionar a escola e o trabalho", conta Alferes, um relato típico de abandono escolar entre jovens moçambicanos.
O trabalho todo de reparação do motor vai custar "apenas" quatro mil meticais (62 euros), consideravelmente mais barato que numa oficina convencional, como aquela com que sempre sonhou.
"Eu tenho uma ideia muito grande, mas não tenho fundos. Queria abrir uma empresa, ter pelo menos três ou quatro ajudantes", mas tudo esbarra na dificuldade de acesso ao crédito (com taxas acima de 20%), num mercado financeiro pouco desenvolvido e na baixa literacia geral.
Prevê-se que a população de Moçambique duplique para 60 milhões até 2050, dos quais 55% terão menos de 25 anos.
É uma oportunidade demográfica, destacam várias organizações internacionais, só que há problemas estruturais: "o crescimento populacional continua a ultrapassar a expansão da educação e as possibilidades de emprego para os jovens", alertou Andrea Wojnar, representante do Fundo das Nações Unidas para a População por Moçambique em 2021.
Mesmo a quem mostre ser um ás da mecânica, o mais provável é acabar num trabalho precário, a céu aberto, à chuva ou ao sol, como na Praça da Paz, alimentado pela vontade de sustentar a família.
O chão sujo de óleo, as peças espalhadas por todo canto e as dezenas de veículos estacionados de capô aberto mostram uma realidade perene que passa de pais para filhos.
Alferes está entre as dezenas de jovens que decidiram abraçar a mecânica para fugir ao desemprego, a reparar veículos com peças usadas nas ruas da capital moçambicana, num contexto económico cada vez mais "complicado" com a vertiginosa inflação global.
As ruas esburacadas fazem com que as anomalias nos amortecedores e na suspensão estejam entre os principais problemas detetados pelos "mecânicos de rua".
"Mas aqui tudo se resolve", frisa à Lusa Francisco Cândido, 30 anos, que se prepara para trocar as velas de ignição de um outro carro na Praça da Paz.
As velas de que Francisco precisa podem ser encontradas e negociadas em qualquer esquina da praça e garante que se o veículo apresentar qualquer problema depois de consertado, o cliente pode sempre voltar.
"Trabalhamos na base da confiança. O cliente pode sempre voltar", acrescenta, enquanto abre uma das caixas do motor para verificar o seu estado.
"Eles cobram-nos preços razoáveis e por isso a nossa tendência é vir para aqui", explica Alírio Júnior, um dos clientes de Cândido, pouco tempo depois de trocar um dos faróis da viatura.
"As pessoas não têm dinheiro para recorrer às oficinas. Então elas preferem os nossos serviços", conta à Lusa João Tembe, outro jovem mecânico da praça.
Tembe aprendeu mecânica com o pai e está no negócio há 15 anos: montou uma oficina de "bate-chapa" bem próxima da praça.
"O desafio é enorme, mas dá para sustentar as crianças. Como jovens, não podemos chorar de mãos cruzadas, temos de enfrentar a vida", frisa João Tembe.
EYAC // VM
Lusa/Fim
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