A casa da democracia inicia funções com a mesa manca

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Em funções desde quarta-feira, 29 de março, a Assembleia da República assistiu hoje ao primeiro embate político de vulto, com a eleição dos vice-presidentes para a Assembleia da República.

Para acompanhar Augusto Santos Silva — eleito presidente da AR com 156 de 230 votos possíveis —, os quatro partidos mais votados nas legislativas — PS, PSD, Chega e Iniciativa Liberal — apresentaram hoje os seus candidatos.

Sem surpresas, os deputados elegeram hoje a socialista Edite Estrela e o social-democrata Adão Silva para duas das quatro vice-presidências da Assembleia da República. Se Estrela foi reconduzida no cargo que já ocupava na anterior legislatura — com 159 votos a favor em 224 deputados votantes, 59 brancos e seis nulos —  o deputado do PSD, eleito pelo círculo de Bragança, alcançou uma votação muito expressiva — 190 votos favoráveis em 224 —, que foi saudada com uma salva de palmas por parte de deputados de várias bancadas.

Foi o fim da concórdia na AR, já que os candidatos indicados pelo Chega e pela Iniciativa Liberal, Diogo Pacheco de Amorim e João Cotrim Figueiredo, respetivamente, falharam a eleição para o cargo.

Se o chumbo ao Chega já era há muito esperado e consensual — Pacheco de Amorim conseguiu uns meros 35 votos favoráveis, tendo contra si 183 votos brancos e seis nulos —, aquele feito à IL não deixa de surpreender. Com 108 votos, Cotrim Figueiredo precisava de mais oito para os 116 necessários para obter a maioria absoluta — sobraram 110 brancos e seis nulos.

Findado o primeiro período de votação, a IL desistiu desse direito regimental, mas o Chega voltou a indicar outro candidato a vice-presidente, Gabriel Mithá Ribeiro. O resultado foi quase o mesmo: 37 votos a favor, 177 brancos e 11 nulos.

Na prática, o facto de terem sido eleitos apenas dois de quatro vice-presidentes da AR possíveis não terá grandes efeitos, já que a Mesa do parlamento tem quórum de funcionamento.

“Nos termos do artigo 23.º do regimento, a Mesa tem quórum de funcionamento e portanto está constituída”, afirmou Santos Silva. O presidente da Assembleia da República saudou ainda “todas e todos os candidatos a estas votações” e “todas e todos os eleitos para estas exigentes responsabilidades de vice-presidentes, secretários e vice-secretários da Mesa”, entretanto eleitos.

Todavia, as implicações, os ganhos e as consequências políticas deste desenlace já começaram a ser tiradas. 

Da parte da Iniciativa Liberal, a postura foi de desdramatização. O líder parlamentar liberal, Rodrigo Saraiva, considerou que a votação significou “a democracia a funcionar” e que o partido respeita a democracia, não deixando de lamentar que o parlamento não reconheça o trabalho de João Cotrim Figueiredo na anterior legislatura, na qual teve “zero faltas” no plenário.

O visado alinhou pela mesma postura. Apesar de assumir o resultado como “uma derrota pessoal”, Cotrim Figueiredo fez questão de “tranquilizar aqueles que votaram na IL” já que o cargo de vice-presidente do parlamento “era uma função com relevo institucional, mas não tem importância política” para o projeto do partido, não representando por isso “um retrocesso”.

“Dá-nos mais força para perceber que vamos ter uma Assembleia da República com uma mesa composta exclusivamente pelos partidos de sempre e pelos grandes partidos que parecem não quererem ver que o mundo à sua volta está a mudar e o panorama político à sua volta também está a mudar”, afirmou.

Sendo o voto secreto, não se sabe ao certo quem votou para chumbar Cotrim Figueiredo, apesar da conjuntura de forças prever que determinados alinhamentos políticos terão tido o seu papel. No entanto, da parte do partido que controla o hemiciclo, o PS, Eurico Brilhante Dias, acabado de ser eleito líder parlamentar dos socialistas, pareceu apontar a responsabilidade ao PSD.

“No que diz respeito à vice-presidência, os senhores jornalistas têm acesso aos resultados parciais das votações e não é difícil perceber qual foi o partido político que quis inviabilizar a candidatura do deputado João Cotrim Figueiredo”, afirmou. “Naturalmente o voto é secreto e, portanto, esta afirmação carece de poder verificar-se, mas da leitura dos resultados não restam dúvidas de quem entendeu vetar o nome do senhor deputado Cotrim Figueiredo”, continuou.

Se a IL encolheu os ombros e arrepiou caminho, o Chega teve uma estratégia distinta, mas fiel ao percurso do partido, de lamentar o sucedido. Quando se levantou para anunciar a decisão do Chega, André Ventura disse lamentar esta decisão, apesar de a respeitar, considerando, no entanto, que este é “um dia menos bom” para a democracia.

Já nos Passos Perdidos, Ventura responsabilizou uma “maioria de bloqueio” pelo sucedido. “A lógica de ser uma maioria de bloqueio por parte de PS e PSD, com o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda, levou a esta solução [a rejeição consecutiva dos candidatos apresentados pelo Chega]”, disse.

O presidente do Chega considerou que “ficou demonstrado, com clareza, que a questão não é o nome” que o partido apresenta.“Há uma maioria de bloqueio que não quer o Chega na vice-presidência da Assembleia da República”, repetiu, acrescentando que “ficou evidente que qualquer nome” proposto pelo partido seria 'chumbado' e que a XV Legislatura “abre com hostilidades claras”, antevendo uma “legislatura de turbulência e de conflitos entre grupos parlamentares”.

O destaque, porém, iria para a intervenção de Mithá Ribeiro, que disse não ter sido eleito por uma “questão racial”, apesar de não responder às sucessivas questões dos jornalistas sobre se existe racismo em Portugal.

Conhecido por publicações académicas em que defende que não existe racismo em Portugal, posição que também assume publicamente, o deputado disse que o sucedido “tem de ter uma interpretação racial”.

O deputado, que nasceu em Moçambique, disse também que há uma diferença de tratamento entre as pessoas que pertencem a uma minoria, mas têm orientações políticas diferentes: “Se uma pessoa é negra e é de esquerda é tratada com dignidade ou pelo menos com alguma dignidade. Se uma pessoa é negra e é politicamente neutra tende a ser apagada das instituições. Se uma pessoa é negra e é de direita é tratada, desculpem a força da expressão, como se tratam os pretos”.

*com Lusa

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