Who the fuck is Arcade Fire? Por pudor, a frase é intraduzível para o português. Mas tornou-se viral nas redes sociais a 13 de fevereiro de 2011, quando os Arcade Fire conquistaram inesperadamente um Grammy para Melhor Álbum do Ano, por The Suburbs, quando a concorrência era popesada: Eminem, Lady Antebellum, Lady Gaga e Katy Perry. O público mais afecto aos Grammys – adolescentes que gostam mais dos seus ídolos que da música – reagiu de forma veemente, agressiva, acusando os canadianos de terem pago ao júri responsável pela atribuição dos prémios. Os fãs dos Arcade Fire viram nessa conquista o triunfo da “autenticidade” sobre o plástico, seis anos antes de Salvador Sobral fazer e dizer o mesmo na Eurovisão.
A vitória nos Grammys foi o corolário de uma história que começara cerca de uma década antes, em Montreal. Ou talvez antes ainda, quando Win Butler, vocalista e rosto mais conhecido da banda (inibemo-nos de escrever “líder”; como diria a famosa Mafalda, a personagem de Quino, “nesta família não há chefes, somos uma cooperativa”), era ainda estudante da Phillips Exeter Academy, em Nova Hampshire, e passava as suas noites a ouvir discos de New Order, The Cure ou The Smiths. Foi nos seus tempos de liceu que começou a perceber “o que era real e o que não era”, como haveria de explicar anos mais tarde. E foi aí que conheceu o guitarrista John Deu, com quem formaria os Arcade Fire.
Deu saiu da banda em 2003, pouco antes de a banda alcançar o estrelato indie pela força de Funeral, álbum editado em 2004 (2005 no Reino Unido), que os colocou nas bocas de todos aqueles que olhavam para a música de uma forma mais comprometida. Funeral, elegia em jeito de rock de estádio e cheia de coração, feita a partir de instrumentos tão díspares como a guitarra e baixo elétricos, o acordeão, o xilofone, o violino e o violoncelo, teve o condão de ressoar nas almas de todos aqueles que haviam perdido, à semelhança dos Arcade Fire, um ente querido. Nos outros, inspirou um sentimento de familiaridade, pela alienação suburbana contida naqueles versos, pela síndrome de perda de algo que não se sabe bem o que é — uma saudade imaginária, talvez —, pela vontade de fugir ao vazio. E, em breve, os Arcade Fire transformaram-se na “nova grande cena” que haveria de dominar não as tabelas, mas o mundo da música alternativa; as pessoas com quem valia a pena trocar dois dedos de conversa sobre arte, política, história, desporto, ouviam assiduamente a banda, sabiam de cor e salteado as palavras ali contidas, contavam-nos de onde vinham e para onde iam sem vergonhas ou egotismos.
Muitas delas estiveram naquela tarde mágica em Paredes de Coura, em 2005, quando os Arcade Fire ali aterraram para apresentar os temas de Funeral perante uma plateia que, depois disso, não quis outra coisa. Ainda há quem recorde esse concerto com a eterna saudade da juventude, quem seja capaz de relatar, ao mais ínfimo pormenor, exatamente aquilo que estava a fazer quando a banda subiu ao palco e começou por interpretar “Wake Up”. E a imprensa, à altura, sabia que ali estava qualquer coisa de diferente: “Em Paredes de Coura, [os Arcade Fire] foram épicos, ao ponto de parecerem capazes de moverem montanhas, e comunitários, como se a música deles viesse de um sítio que é simultaneamente muito pequeno (e por isso tão familiar) e descomunal”, escreveu Inês Nadais, no Público.
Há, de facto, algo de muito comunitário na música dos Arcade Fire, como se fosse possível viver numa sociedade que não esta, longe das câmaras e das redes, longe da tecnologia e da depressão de raiz capitalista. Como se as grandes estrelas que vemos nos ecrãs e nos painéis de publicidade pudessem ser “só” aqueles amigos que encontrámos na sala da casa de um outro amigo, a tocar canções e a gozar esta coisa de estar vivo, como aliás os próprios Arcade Fire fizeram no início do milénio, no Canadá, quando ainda não eram uma “banda” e sim um “projeto”. E como o continuam a demonstrar nos seus concertos, que na digressão em torno de Everything Now, o seu último álbum, têm terminado com os Arcade Fire no meio do público, ainda a tocar. Eles provam que há outra coisa para além do espelho, um mundo onde podemos de facto sonhar, independentemente de raça ou credo. E demonstram-nos isso com uma música onde há rock, sim, mas onde o que mais há para além do rock é inclassificável – e as mudanças sonoras que existem entre Funeral, Neon Bible, The Suburbs, Reflektor e Everything Now mostram isso mesmo.
No entanto, tanto amor não poderia senão esfumar-se ao longo de algum tempo, como em qualquer relação amorosa. Que não implicou, no entanto, o seu término – e prova disso é o facto de o concerto no Campo Pequeno ter esgotado rapidamente, e o de a banda ter sido anunciada para o cartaz do festival de Paredes de Coura, onde foi tão feliz há 13 anos. Everything Now não é só o mais mal-amado álbum dos Arcade Fire; há até algumas manifestações de ódio abjeto por esta obra editada o ano passado, nomeadamente por parte dos fãs mais antigos, que não percebem de todo como é que uma banda que apelava tanto à emoção crua (ouça-se a voz sofrida de Win Butler em Funeral, e compare-se esse registo com aquele mais confiante, presente, que tem demonstrado nos álbuns subsequentes) e ao rock n' roll de cariz académico foi capaz de se juntar a um monstro da pista de dança, Thomas Bangalter, uma das metades dos Daft Punk, para lhes produzir o disco — o que resultou, naturalmente, num álbum mais próximo da anca que do cérebro.
Críticas que poderão ser infundadas, quando nos lembramos que Reflektor contou com a colaboração de James Murphy (LCD Soundsystem) e foi bem recebido. Críticas que os próprios Arcade Fire ignoram de forma mordaz, tendo Win Butler dito que “se este álbum é a pior coisa que podemos fazer, então estou tranquilo”. Críticas que se dissiparão quando a banda subir ao palco montado no Campo Pequeno e começar a tocar aquela “Wake Up”, canção quasi-religiosa com cântico à mistura e braços esticados no ar, não em busca de respostas, mas felizes por não terem perguntas. Até essa hora, só uma permanecerá: falta muito para o concerto começar?
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