Editado pela Tinta-da-China e publicado no final desta semana, este livro tenta recuperar e honrar a revista que José Cardoso Pires lançou em finais de 1959 (durou até 1961), que contou com a colaboração de vultos da cultura portuguesa, como Sttau Monteiro, Alexandre O’Neill, Augusto Abelaira, Baptista-Bastos, Vasco Pulido Valente e José Cutileiro, com o grafismo de Sebastião Rodrigues, mas que teve uma vida efémera, não ultrapassando os 18 números.
No entanto, o que dela fica é uma marca única de uma época, cultural, social, política e geográfica, como descreve o autor do livro, António Araújo.
“O livro tem uma parte que no inicio procura situar a geografia onde isto se passou que é ali no Bairro Alto. Mais do que um livro sobre uma revista mítica, é um livro sobre uma Lisboa em grande parte desaparecida, que é a Lisboa das tertúlias, dos cafés, das cervejarias, da vida noturna, dos jornais no Bairro Alto, a Lisboa do papel, da censura de Salazar”, explicou à Lusa.
Começa com um mapa, porque era “absolutamente espantosa a concentração que havia naquela zona, quer de jornais, de revistas, de editoras, de livros, de livrarias, de alfarrabistas, era como se toda a vida cultural portuguesa, num certo sentido, ali estivesse concentrada”.
“Não estou com isto a cair num certo centralismo, mas realmente é impressionante a quantidade de coisas que se passavam ali no Bairro Alto e a rede de sociabilidades que isso criava”, sublinhou.
Depois de fazer a caracterização do lugar, a obra passa a uma “caracterização das personagens”, quer do diretor, Figueiredo Magalhães [editor da Ulisseia], quer do 'designer' Sebastião Rodrigues, e depois do fundador, Cardoso Pires.
O capítulo seguinte é uma digressão, “talvez um bocadinho árida” pelo conteúdo da revista, mas que “é fundamental”, a que se segue a discussão de alguns tópicos da revista, como “a crítica ao marialvismo - José Cardoso Pires escreveu a ‘Cartilha do Marialva’ -, portanto era uma crítica que era feita a uma certa mentalidade arcaica de ‘ancien régime’, desde o século XVIII, mas também era uma crítica implícita à moralidade do salazarismo”.
Os outros conteúdos abordados por António Araújo passam por “um certo machismo implícito dos seus colaboradores, em que a mulher é um pouco objetivada como ‘sex symbol’”, de que são exemplo personalidades como Marylin Monroe e Brigitte Bardot, mas também o snobismo, a gastronomia ou a caça.
“E depois outra parte que, quanto a mim, é tão ou mais importante do que os conteúdos, que é a questão do grafismo, do ‘design’ de tudo o que estava a despontar, da arquitetura do Nuno Teotónio Pereira, da arquitetura do Victor Palla e do Bento d’Almeida, da visualidade feita por uma série de designers da altura”.
O autor procura ainda ver os prolongamentos desta efémera experiência, no suplemento A Mosca, do Diário de Lisboa, coordenado por Luís de Sttau Monteiro, que marcou o final dos anos de 1960 e a década seguinte e, avançando um bocadinho mais até à atualidade, na revista K., de Miguel Esteves Cardoso, publicada entre 1990 e 1993.
O livro termina com um regresso à Lisboa um “bocadinho imaginada e mitificada, por um lado por Cardoso Pires, por outro lado, mais poético e diáfano, por Alexandre O’Neill, e à Lisboa rufia de Baptista-Bastos”.
“Acaba por fechar um círculo: começa pela geografia física de Lisboa e termina na geografia sentimental”, sintetiza António Araújo.
No final, reúne-se um conjunto de textos, uma “breve antologia”, que por um lado dessem uma panorâmica da “filosofia” e do estilo da Almanaque – por exemplo, sobre o turismo e as construções da Amadora – e, por outro, ilustrassem a diversidade e a qualidade dos colaboradores.
Nesta antologia encontram-se textos que foram transcritos mantendo a grafia original, de Sophia de Mello Breyner Andresen, Alves Redol, Almada Negreiros, José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Vasco Pulido Valente, Baptista-Bastos e Keil Amaral, entre outros.
Composto por 312 páginas, com grafismo a preto e azul, “O mais sacana possível” tem várias fotografias retiradas da Almanaque, que compreendem desde imagens da Lisboa da época, a cartazes, capas de livros e discos, projetos arquitetónicos, desenhos de João Abel Manta e as capas de cada um dos números, de Sebastião Rodrigues, entre muitas outras.
O título, que é grafado com aspas, é uma “provocação”, como explica António Araújo, porque em várias entrevistas que deu, José Cardoso Pires afirmou que o que queria ter feito era uma revista o mais sacana possível.
“A revista não tinha um projeto ideológico, não era uma revista, ainda que de colaboradores mais de esquerda, mas não era uma revista militante, como a Vértice, ligada ao neorrealismo do PCP. Era uma revista, não diria humorística, mas de ‘non sense’ e desconcertante, o que procurava era ser uma pedrada no charco na mentalidade salazarista e mais fechada, por isso dizia que queria ser o mais sacana possível”.
António Araújo é autor de diversos livros e publicou na Tinta-da-china os ensaios "Matar o Salazar: O atentado de Julho de 1937" e "'Morte à PIDE!': A queda da polícia política do Estado Novo".
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