I
Dois passos por três, um catre, um balde e uma manta. Pelo postigo gradeado, que encima a parede de taipa, chegam-me o aroma das laranjeiras e o brado compassado das atalaias, sossegando a guarnição do forte. Sei que vou morrer, mal a alvorada nasça. Logo eu, que sempre adorei a noite, e que, no silêncio profundo dos seus braços maternais, aspirei encontrar o derradeiro conforto. Agora, que a minha vida está por um fio, o fio da cimitarra que dentro em breve me levará para sempre, só queria ter tempo para recordar todas as mortes com que a fui construindo; os amigos e inimigos que combati e que, conforme a necessidade e as circunstâncias, fui traindo; as mulheres que amei e as que, no calor da posse, foram vítimas da minha violência; o senhor meu rei, D. Afonso Henriques, que me perdoou e que por minha palavra se perdeu; «o Príncipe dos Crentes», o grande califa Abu Yaqub Yusuf, que me estendeu a mão para lhe ferrar a derradeira dentada. Ah, pudesse esta noite não ter fim e «o cão do Giraldo», antes de deitar no cepo a cabeça para que o carrasco cumpra o seu ofício, haveria de explicar o inexplicável, tudo bem esmiuçado, tintim por tintim, para que nenhumas dúvidas possam ficar a alimentar as lendas que sobre mim já correm desde que, assinada a paz de Sevilha, reneguei, mais uma vez, a minha fé para servir os almóadas, que antes sempre havia combatido.
***
A grande mesa de carvalho, que «o Espadeiro» tinha trazido de Tarouca, estendia-se ao longo da nave. Nela cabiam, com largueza, vinte convivas. Porém, no paço da Almedina, naquele fim de tarde de agosto de 1145, não eram mais de dez, entre prelados e cavaleiros. Leitões da Bairrada, enchidos de Lafões e queijos de Seia enfeitavam a mesa, a que os canjirões de vinho do Dão e o pão quente, acabado de cozer, emprestavam um colorido e um aroma que casavam bem com aquelas iguarias próprias da mesa de um rei.
O salão de armas da alcáçova do paço real era robusto e arejado. A nave alta, que a colunata de cantaria sustentava, abria-se, do lado norte, em duas amplas janelas para o pátio interior, onde, no meio de um delicado jardim, um fontanário de granito borbulhava uma torrente contínua para um tanque onde nadavam alguns peixes coloridos. Era, porém, no lado sul, onde a colunata se projetava em forma de ferradura, que a vista era mais bela, alongando-se pelo arrabalde até ao Mondego, aos férteis campos de semeadura e aos montes fronteiros pejados de um arvoredo denso e refrescante.
D. Afonso Henriques, a quem o povo começava a habituar-se a tratar por rei, tinha sido coroado, dois anos antes, na velha Sé de Coimbra, ainda em obras. Coroação sem presença do povo, mas afiançada pela clerezia que o rodeava e apoiava, assente nas Cortes de Lamego, onde cavaleiros e prelados de todo o território portucalense se tinham reunido, em data que ninguém sabia. Falava-se no «grito do Almacave» como se todos o tivessem ouvido, mas era duvidoso que algum vilão de Coimbra conhecesse Lamego e, muito menos, a Igreja de Santa Maria do Almacave, onde os mais informados juravam, a pés juntos, que as Cortes se tinham reunido, em data incerta e variada, entre 1139 e 1143, autenticadas pelo ouvir dizer e segundo a criatividade e a boa-fé de cada um.
No topo da mesa, numa cadeira de espaldas, o rei, de barbas e cabelos longos, como então se usava, na plenitude dos seus recentes 36 anos, dominava a assembleia. Os olhos eram profundos e as sobrancelhas abundantes, o riso e os gestos, com que amiúde pontuava a conversa, eram troantes e vigorosos. À sua direita, D. João Peculiar, desde há sete anos arcebispo de Braga e primaz das Espanhas, a tudo correspondia com acenos brandos e sorrisos seráficos. Do lado esquerdo, o bispo de Coimbra, D. Teodoro, calado e beatificado, vermelhusco do vinho que não largava, comia como um alarve, de boca aberta e pingo seboso a cair-lhe do canto da boca. Sete cavaleiros compunham o resto da mesa: Gonçalo Mendes da Maia, de cabelos já a encanecer, um pouco recuados na testa, esfarripados e ralos; Lourenço Viegas, «o Espadeiro», garboso e vivaz, um dos filhos mais velhos de Egas Moniz; seu irmão Mem Moniz, bem mais moço; o alferes-mor Pero Pais da Maia, filho de Gonçalo Mendes; Gualdim Pais e Martim Moniz, cavaleiros da hoste real; e Gonçalo de Sousa, «o Bom», um cavaleiro de Ribadouro, de quem o rei muito se agradava. Completavam o quadro, junto às janelas viradas a sul, dois enormes cães de pelo negro e farto, como os da serra da Estrela, que comiam, em silêncio, os ossos de leitão que lhes iam atirando.
— Agora que já temos as barrigas mais aconchegadas, contai-me, D. João Peculiar, meu bom amigo, que novas trazeis de Latrão, que tanto tempo por lá vos demorastes?
— Muitas e boas, senhor meu rei. E não só da Santa Madre Igreja, mas também da nossa missão de vos saberdes reconhecido pelo Santo Padre.
— Pois, começai por estas, que são mais interessantes, e deixai as outras para a ceia, que vem já a seguir.
— Basta que vos diga, por ora, que o nosso serviço ficou bem encaminhado, mas é forçoso que vos fale, primeiro, das outras para que melhor percebais a delicadeza da nossa missão e os ganhos que já alcançámos.
Por momentos, o rei pareceu enfadar-se. O seu interesse mais premente residia na desejada bula com que o papa haveria de lhe reconhecer o reino e o reinado. Há cinco anos que D. João Peculiar vinha fazendo todos os esforços, em longas e trabalhosas viagens a Pisa, para lhe conseguir a malfadada bula. D. Afonso Henriques reconhecia-lhe a persistência; por isso susteve a respiração, passou o punho da camisa pela boca, lustrosa da gordura do reco, e assentiu:
— Pois sim, D. João, falai então, primeiro, do concílio e do que lá se passou.
— Ora, este II Concílio de Latrão, o décimo da história da igreja…
— O décimo ou o décimo primeiro, senhor D. João? — interrompeu bruscamente, depois de um prolongado arroto e entre duas dentadas, D. Teodoro.
— Décimo, D. Teodoro. Sabeis bem que aquele Latrocínio de Éfeso, convocado pelo imperador Teodósio II de Constantinopla, não é reconhecido pela verdadeira Igreja de Roma.
— Sim, sim, mas prossegui, senhor D. João — logo atalhou o rei, pondo ordem nas prioridades.
— Como sabeis, estava em causa o grande diferendo que opunha o nosso papa Inocêncio II ao cardeal Pierleone, que, à socapa, se tinha feito eleger como Anacleto II. E sendo este filho de um banqueiro pontifício e apoiado pelas principais famílias da nobreza, com exceção dos Frangipani, desde logo ocupou o Vaticano, enquanto o nosso venerando papa Inocêncio teve de ficar em Pisa. Aprouve Deus que Pierleone, que a terra lhe seja leve, se finou a 25 de janeiro de 1138. Então, o nosso querido papa Inocêncio II resolveu convocar, para abril de 1139, o maior concílio ecuménico que a cristandade já presenciou. Olhai que mais de mil prelados de todas as partes do mundo cristão a ele acorreram, numa clara demonstração da vitalidade da nossa Igreja e de incontestável apoio ao múnus do nosso supremo bispo.
— E depois, senhor D. João? — impacientou-se, mais uma vez, D. Afonso Henriques, dando com o punho direito na mesa, e, com isso, fazendo saltar algumas lascas de pão.
— Pois, foi uma vitória concludente, porque todos os que tinham sido nomeados pelo usurpador — bispos, arcebispos e abades — foram obrigados a depor o pálio, o anel e o báculo. Depois o concílio ocupou-se daqueles heréticos, como Arnaldo de Bréscia, e todos os espirituais que advogam os ideais de pobreza, de ascetismo e de despojamento. Enfim, o regresso à pureza original, como se fosse possível o mundo andar para trás.
— Gente lerda, senhor D. João — interrompeu o senhor D. Gonçalo Mendes da Maia, que permanecera atento e, até então, calado.
— Sim, como se fosse possível, agora que já estamos em Coimbra, voltarmos de novo a Guimarães. O nosso caminho só pode ser para a frente: Santarém, Lisboa, Alcácer e, quiçá, Évora, e todas aquelas praças que, ao longo do Odiana, defendem Badalhouce! — entusiasmou-se D. Afonso Henriques, como que antecipando as campanhas que, com os mais próximos, vinha, desde há algum tempo, congeminando.
— Por mim, só me dou satisfeito quando estivermos instalados no castelo de Silves! — exclamou Lourenço Viegas, conhecido por «o Espadeiro», pela sua habilidade no manejo da espada contra a moirama.
Subitamente, todos começaram a falar ao mesmo tempo, alimentados pelo entusiasmo gerado pela lembrança dos últimos sucessos alcançados contra os sarracenos. Bradaram-se hurras, bravos e vivas, gritou-se por Santiago e por Santa Maria, até que o rei resolveu pôr cobro à algazarra. De novo com uma valente punhada na mesa, que a todos fez estremecer.
— Sempre quero ver-vos, bravos cavaleiros, na hora da verdade. Agora, porém, deixai falar o senhor D. João Peculiar, que desde Zamora não o oiço com a atenção devida.
— E, mesmo aí, a nossa conversa versou apenas as questões relacionadas com o tratado que Vossa Alteza firmou com vosso primo D. Afonso VII. Por sinal um passo importante na concretização das nossas pretensões. Mas, se me permitis, disso falaremos mais à frente.
D. João Peculiar olhou propositadamente o rei, que prontamente lhe correspondeu com um gesto de concordância, e logo prosseguiu:
— Depois de todos aqueles leigos feitos prelados à força, sem vocação, concubinários e debochados, cujos comportamentos mundanos e licenciosos tanto feriram a Santa Madre Igreja, terem sido despojados das suas investiduras, procedeu-se à aprovação dos trinta cânones propostos, a começar pela homologação da concordata de Vórmia, em que o imperador renunciou à capacidade de investir, pelo báculo e pelo anel, bispos de sua livre escolha.
— Pecado que aqui não cometemos; quer dizer, todos os bispos que escolhemos foram nomeados de comum acordo.
— Infelizmente não é isso que consta, Majestade.
— Não acrediteis em tudo o que ouvis, senhor D. João. Olhai que de Leão sempre me lançam as piores atoardas. E até em Roma e Pisa muitos adversários de peso tenho.
— A quem o dizeis, Vossa Alteza. Que desacreditar essa gente tem sido o meu principal trabalho. Mas como eu ia contando, os cânones aprovados foram trinta. Muitos dizem respeito a questões internas como as vestes dos sacerdotes e o casamento dos padres. Dois ou três, porém, reputo da maior importância. E o primeiro dos quais é sobre a usura, o qual convinha ser posto em prática sem demora, porque muitos judeus, valendo-se das suas fortunas, põem e dispõem, a seu bel-prazer, da imposição de juros demasiado altos aos necessitados que deles se socorrem. E mesmo alguns príncipes e reis, e, até nalguns casos, a própria Igreja se têm visto enredados nessa maldita trama.
— Na verdade, senhor D. João Peculiar, eu próprio, para fazer face aos custos da guerra aos infiéis, já tinha pensado em utilizar esse recurso. Só não o fiz, ainda, porque as razias que vamos fazendo têm dado para as despesas. Porém, uma empreitada como a tomada de Santarém ou de Lisboa…
— Deus há de ajudar-nos, como sempre nos ajudou, quando for o momento azado, Majestade. Mas dizia eu, um outro cânone igualmente importante trata da «Paz de Deus».
— «Paz de Deus», senhor D. João, o que é isso da «Paz de Deus»?
— Doravante fica determinado que os lugares de culto, os conventos e as abadias são locais sagrados, onde os príncipes e os reis não têm jurisdição. Nem sequer para prender os perseguidos que neles busquem proteção.
— Mesmo os criminosos, senhor D.João!? — admirou-se o rei.
— Quando o arrependimento é sincero.
— Ora, ora, um criminoso é sempre um criminoso…
— Com bom senso sempre haveremos de alcançar algum equilíbrio, senhor D. Afonso.
— Muito bem, e que mais?
— Deixei para o fim a bula papal, Omne datum optimum, que aprova a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, fundada em 1118 por alguns dos mais proeminentes monges de Cister, e que, em toda a cristandade, já é conhecida por Ordem dos Cavaleiros Templários.
— E essa Ordem, como mui bem sabeis, senhor D. João Peculiar, já está a ser formada em Portugal — atalhou o cavaleiro Gualdim Pais, que, como os demais, em silêncio, se mantinha atento a tudo o que se dizia.
— Pois era minha intenção convidar os cavaleiros presentes, a começar por Sua Alteza Real, a aderirem a essa irmandade quanto antes. Até porque, para além da defesa do Santo Sepulcro, também a guerra contra os infiéis, na Hispânia, passa a estar equiparada, para todos os efeitos, a uma cruzada.
— Sendo assim, não vejo como não nos poderemos associar nessa santa iniciativa — interveio, de novo, Gualdim Pais, para logo se dirigir ao rei. — Se Vossa Majestade não vir inconveniente.
— Assim de repente e a frio, a ideia parece-me boa. Alguns monges-cavaleiros pediram-me, há algum tempo, o castelo de Soure para aí se instalarem. Pretextavam que minha mãe já lho teria prometido antes. Terei de ver a bula primeiro e discutir a questão com o senhor D. João Peculiar.
— Pois estas foram as principais decisões religiosas que trago de Latrão. Quanto à questão principal que me fez voltar à Santa Sé, que é o reconhecimento de Vossa Alteza como rei, tudo estava bem encaminhado. Infelizmente, quando cheguei ao Vaticano, depois de terdes assinado o Tratado de Zamora, o papa Inocêncio II tinha acabado de falecer.
— Mas que infortúnio, senhor D. João! — exclamou, claramente desapontado, o rei.
— Ainda por cima, o bispo D. Pedro Helías, de Santiago de Compostela, continua a sua campanha contra nós. Por isso lá fiquei durante todo este tempo, procurando, junto da nova cúria, os apoios necessários. Porém, o pontificado do papa Lúcio II nem durou um ano, o pobre de Deus logo se finou, com uma pedrada, quando combatia o patrício Giordano Pierleone, irmão do antipapa Anacleto II, já em fevereiro deste ano.
— E agora, senhor D. João, que papa temos em Roma e que esperanças nos trazeis? — interrogou o rei, profundamente agastado com tantas contrariedades.
— Pois agora temos o papa Eugénio III, um antigo monge de Cister.
— Dessa Ordem fundadora dos Templários, a quem autorizámos o Convento de São João de Tarouca!? Parece-me bom augúrio esse tal papa Eugénio III. E vós o que achais, senhor D. João?
— Em Roma a situação continua muito confusa, senhor D. Afonso. Se Vossa Alteza visse, aquele Arnaldo de Bréscia não desarma as suas intenções e, por causa destas, tornou-se no grande opositor ao poder temporal do papa. Para ele, a Igreja do Senhor não devia ter bens. É o tal regresso à pobreza original de que já vos falei. Não venho muito animado, por força que, depois de dispor das coisas em Braga, terei de voltar a Roma mais uma vez. Uma coisa vos digo, aquele Tratado de Zamora, para o qual tanto trabalhámos, é uma das peças mais importantes que temos neste xadrez.
— Zamora sempre me deu sorte, senhor D. João. Lembrai-vos de que foi aí, na Sé Catedral, que, com 16 anos, eu próprio me armei cavaleiro.
— Como não havia de saber, senhor D. Afonso? Nessa altura tinha eu acabado de fundar o Convento de São Cristóvão de Lafões.
— Donde nos mandam esses belos enchidos que tendes estado a comer.
— Por isso o seu sabor me era familiar. E do reino, que novidades me dais, senhor D. Afonso?
— Nestes dois últimos anos consolidámos o nosso poder. E também temos dedicado muito do nosso tempo à reconstrução do castelo de Leiria, bem como às obras da nova Sé de Coimbra e alguns trabalhos necessários na velha ponte romana. Mas não temos descurado a preparação da tomada de Santarém, o nosso próximo grande objetivo militar.
— Pois vai estando na hora de começardes a pensar também num herdeiro, que não um desses bastardos que tendes de algumas mulheres. Falo de um príncipe legítimo, de verdadeiro sangue real, que dê continuidade a todo o nosso esforço. Quando voltar de Roma, se ainda não tiverdes tomado nenhuma decisão, temos de trabalhar nesse sentido. O reino exige isso de vós, senhor D. Afonso Henriques.
Na verdade, D. Afonso Henriques estava, nessa altura, com 36 anos feitos. É certo que era um homem vigoroso, sem queixas e sem maleitas visíveis, mas destemido como era, sempre na linha da frente, o primeiro entre os primeiros em todos os combates, corria sempre o risco de, a qualquer momento, poder perder a vida ou, no mínimo, ficar incapacitado.
O sentimento de D. João Peculiar era, então, comum à grande maioria dos cavaleiros portugueses, seus vassalos, que muito teriam a perder, senão tudo, caso o infortúnio duma tal calamidade lhes caísse subitamente em cima.
E não era nova essa questão, porque, antes de D. João Peculiar, já o seu antecessor na arquidiocese de Braga, o senhor D. Paio Mendes, e o antigo chanceler-mor, D. Ermígio Moniz, irmão mais velho do seu antigo aio, bastas vezes tinham demonstrado grande preocupação com essa carência. O príncipe, depois rei, porém, educado nas artes montesas da falcoaria e da montaria, desde cedo habituado à rédea solta, não se coibia das suas conquistas, varrendo tudo quanto lhe passava à mão. E eram donas e donzelas — algumas, mesmo, damas casadas com alguns dos seus melhores vassalos, como Chamoa Gomes, filha do conde de Pombeiro e mulher do conde Mem Rodrigues de Tougues, que durante muito tempo foi sua barregã; isto quando não mesmo, a intervalos, uma ou outra moura ou moçárabe.
Convenhamos que este não era um tempo propício à galanteria, ao amor cortês, ao canto e à dança. A consolidação de um reino, ainda a dar os primeiros passos, a tatear, aqui e ali sofrendo alguns tropeções, algumas mazelas, uma ou outra contrariedade, fazia-se a fio de espada e os despojos eram tomados como presas de guerra. E as mulheres, igualmente.
Descendente direto do grande imperador Afonso VI, o mais poderoso dos reis da Hispânia, senhor de três reinos, o jovem infante portucalense, órfão de um pai que mal conhecera e que, aos 16 anos, se fizera armar cavaleiro, desde cedo sentiu-se predestinado para um grande futuro. Apoiado por um punhado dos mais rústicos senhores das terras de Ribadouro — os Moniz, os Sousas, os Maias, os Barbosas e os Azevedos —, ousara, aos 18 anos, revoltar-se contra a mãe e o padrasto, Fernão Peres de Trava, o galego que a seduzira, e iniciar em São Mamede, no ano já distante de 1128, um percurso sem ensejo de retorno. Percurso que ele soubera, com a ajuda dos seus, calcorrear, até então, com indesmentível sucesso.
Alargara o reino até para lá de Coimbra; iniciara, progressivamente, uma caminhada de autonomia face à fidalguia galega e minhota; rodeara-se dos nobres durienses que melhor conhecia; infligira, em Ourique, bem no interior do território mouro, a mais pesada derrota que os sarracenos tinham sofrido até então; e, o mais notável, conseguira, em Zamora, firmar as pazes com seu primo e ser reconhecido, pelo cardeal D. Guido de Vico, legado do papa, como vassalo de Roma.
Não se esquecia, porém, daquela maldita frase dita por sua mãe, quando, depois de São Mamede, a prendera no castelo de Lanhoso:
«Afonso Henriques, meu filho, prendestes-me e metestes-me em ferros, e deserdastes-me da terra que me deixou meu pai, e quitastes-me de meu marido; rogo a Deus que preso sejais, assim como eu sou, e porque me metestes nos meus pés ferros, quebrantadas sejam as tuas pernas com ferros. E mande Deus que isto se cumpra.»
Quando nasceu, no castelo de Guimarães, sede do condado, na altura nada fazia crer que aquela criança tolheita de pernas que Egas Moniz levara, à sua guarda, para ser educada em Britiande, pudesse vir a transformar-se no homem que depois foi: ágil, desenvolto e grande de corpo, como então se dizia.
Acarinhado pelos cavaleiros de Ribadouro, que se opunham ao poderio dos cavaleiros galegos do tempo de seu pai, que desde logo tomaram o seu partido, soube rodear-se de bons e leais conselheiros, à cabeça, além de Egas Moniz, o irmão deste, D. Hermígio, e o arcebispo de Braga, D. Paio.
Quis a fortuna que, em Coimbra, para onde se mudou após São Mamede, viesse a conhecer um jovem mestre-escola, viajado e poliglota, que havia estudado em Paris: João Peculiar, homem de muitas qualidades, discípulo dileto de D. Paio, que haveria de tomar a peito a tarefa hercúlea de fazer do jovem príncipe rebelde um rei reconhecido por toda a cristandade.
A primeira vez que D. Afonso Henriques se encontrou com D. João Peculiar foi em 1131, quando, com D. Telo e D. Teotónio, preparava a fundação do mosteiro de Santa Cruz. D. João Peculiar tinha chegado de Paris, onde estabelecera relações de amizade com os monges de Cluny, e era agora mestre-escola da Sé de Coimbra. A circunstância de ser estrangeirado, aliada a esse outro facto de o próprio rei ser filho de um estrangeiro, originário do mesmo reino dos francos, fê-los, desde logo, aproximarem-se. Fascinava ao rei, também a grande erudição, o discurso fácil, a convicção e a argúcia com que o jovem mestre-escola expunha as suas razões.
Nessa altura, havia pelo menos três anos que D. Telo, então arcediago da Sé, vinha sonhando com a instalação de uma comunidade de cónegos regrantes de Santo Agostinho na cidade de Coimbra. Faltava-lhe, porém, um espaço suficientemente amplo para os instalar.
— Temos de falar com o rei, senhor D. Telo — terá alvitrado o jovem mestre-escola certo dia, em que, mais uma vez, discutiam esse propósito, sucessivamente adiado.
Não era, porém, esse desejo de fácil concretização porque, ao tempo, vivia-se um grande diferendo em Coimbra, no cabido da Sé, por causa da escolha de D. Bernardo, arcediago da Sé de Braga, para bispo de Coimbra, para substituir o falecido bispo D. Gonçalo Pais.
— Já tentei, por duas vezes, falar com o rei, mas o mordomo-mor D. Hermígio Moniz tem-me dito que não é oportuno — respondera D. Telo.
— D. Telo, vou fazer-vos uma proposta que vai resolver o nosso problema. Vossa Mercê comprou, em Montpellier, aquela magnífica sela que ainda não teve azo de estrear. Pois eu proponho que, este domingo, monteis e passeeis com ela pela rua régia, que eu farei chegar a D. Afonso Henriques, que tão devoto das montarias é, como essa sela é mais digna de um rei do que de um arcediago.
Aceite a proposta, o mestre-escola, a pretexto da necessidade de um privilégio mal definido, tratou de falar com o mordomo-mor, contando-lhe a intenção de D. Telo estrear, finalmente, a dita sela, enaltecendo a sua beleza ímpar e manifestando a convicção de que D. Telo não poria oposição em dá-la ao rei, se este a desejasse.
Como estava combinado, D. Telo passeou-se nesse domingo pela rua régia, sob o olhar pasmado dos cortesãos, que, atiçados por D. João Peculiar, logo levaram a notícia ao rei, enaltecendo o desenho e o recorte dessa verdadeira obra-prima. O rei, instigado por D. Hermígio, logo se apossou do desejo de a possuir.
— Senhor, o que tendes para me dar em troca, porque esta sela custou-me uma fortuna? — perguntou D. Telo, ao ser chamado ao paço.
— Pois colocai-lhe um preço — disse o rei.
— Que tal Vossa Alteza dar-me aqueles banhos régios, ao fundo da judiaria? Desejo acomodar uma comunidade de cónegos regrantes e faltam-me instalações.
D. Afonso Henriques, embora desejoso de possuir a sela, quis demonstrar, como rei assisado, alguma prudência e remeteu a resposta para mais tarde.
— Mas guardai-me bem a sela, que já a tenho por minha.
Passados quatro dias o acordo chegou, e, durante todo esse tempo, o mordomo-mor do rei não deixou de o aconselhar. E assim lhe foi passado um documento autenticado com as armas reais, consignando o que seria uma mera troca numa doação definitiva, com o objetivo preciso de aí ser construído um convento para instalar a obra de Santo Agostinho. A relação de D. Afonso Henriques com o Convento de Santa Cruz ficou, assim, vinculada, desde o início, a uma obra de que irão resultar benefícios múltiplos e mútuos. Mal iniciadas as obras, ainda em 1131, logo em fevereiro do ano seguinte já estavam a ser instalados os primeiros membros. As obras, contudo, até à sua conclusão, seriam ainda muitas e demoradas.
Os membros regrantes de Santo Agostinho não eram contemplativos como os monges, nem assistenciais como os hospitalários, nem cavaleiros como os templários, mas cónegos porque seguiam uma regra, um cânone que determinava uma vida mais austera, diferente do clero secular das dioceses. Porém, enquanto a regra de São Bento era mais fechada ao mundo, a de Santo Agostinho apostava na concretização de uma vida cristã exemplar, fraterna e comunitária, mas aberta à sociedade. Os regrantes de Santo Agostinho não viviam no ermitério, como os cistercienses, mas às portas da cidade, recebendo hóspedes e peregrinos, produzindo textos e realizando serviços efetivos a toda a comunidade.
Por isso, Santa Cruz de Coimbra foi, desde o início, um centro cultural de grande excelência. O primeiro do reino, onde as obras de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio e de São Gregório Magno foram, desde cedo, lidas e comentadas. Onde os cónegos puderam começar a escrever a história dos fundadores, a vida dos santos e os Anais do Reino.
Foi aqui que, no início de 1136, deu entrada um jovem moçárabe de Santarém, destinado pelo pai a subir na vida. E tal ocorreu pouco depois de D. João Peculiar e D. Telo terem regressado de Pisa. Teve, pois, esse jovem ainda tempo bastante para conhecer o velho cónego, fundador do mosteiro onde agora era admitido, que, talvez pelo cansaço da viagem, na adiantada idade de 60 anos, haveria de morrer antes do final desse mesmo ano.
Chamava-se o moço, ainda criança, Geraldo Pestana e era o filho mais novo, de cinco irmãos, do mestre cordoeiro Pero, o Pestana, a quem os moçárabes chamavam Pero Bistana, ou «o das cordas», que em árabe se diz Bi-ashtân.
Mestre Pero Pestana, desde cedo percebera que o seu filho mais novo era diferente dos demais. Pouco interessado na manufatura da tábua, do junco, do esparto ou da palma, o garoto cedo se mostrou mais astuto, mais desembaraçado e mais destemido que os restantes irmãos. Mestre Pestana viu, no caráter do rapaz, uma oportunidade de ascensão social. Porventura um filho clérigo e instruído que podia muito bem chegar a presbítero, quiçá a deão de uma boa diocese, ou a cavaleiro-vilão, se o moço, após o noviciado, entendesse enveredar pela carreira das armas, como tantos monges-cavaleiros que ele conhecia.
Por mor de uns cordames fornecidos para as obras de Santa Cruz, mestre Pestana conheceu D. João Peculiar e este, embora o jovem moçárabe fosse muito pequeno, tomou-o a cargo, admitiu-o e protegeu-o, ensinou-lhe a gramática e o latim, de que rapidamente começou a desembaraçar-se. Passados quatro anos, já com D. João Peculiar como arcebispo de Braga, o mestre copista Pedro Salomão viu no rapaz, então com cerca de 11 anos, méritos suficientes para o puxar para a caligrafia. E, assim, ainda donzel, Geraldo passou a copista-aprendiz com tarefas, entre outras, de passar a limpo os vários documentos da cúria régia, que ali funcionava: forais, doações, cartas de privilégio, confirmações e outros documentos que o mordomo-mor fazia chegar a mestre Bernardo, chanceler-mor da cúria régia.
Deste modo o jovem Geraldo se aproximou do rei, muitos anos antes de o vir a conhecer e com ele privar. Conhecimento gerado pela manipulação de documentos e cartas e, também, de uns Anais do Reino, que o cónego Pedro Salomão, por essa altura, começara a escrever.
Quis o diabo, porém — que nunca deixa de rondar as criaturas de Deus, mormente as mais incautas —, que Geraldo, na feliz idade dos seus 14 anos, se perdesse de amores por uma jovem noviça, do mosteiro de São João das Donas, filha de um rico-homem de Montemor-o-Velho, que conhecera quando ambos enfeitavam a Sé para as celebrações do Pentecostes. E que, por tal inclinação, começasse a descurar as suas obrigações, a refratar nos horários e a distrair-se no ofício, a tal ponto que mestre Pedro Salomão, até então atencioso e cordato, encetasse a admoestá-lo, pouco depois a ameaçá-lo e, por fim, a puni-lo, sem que nenhuma dessas ações corretivas conseguisse repor a antiga ovelha mansa, agora tresmalhada, no caminho casto dos vergéis do Senhor.
E assim, de um dia para o outro, o jovem Geraldo começou a fugir do convento, a saltar muros e fossos, a escalar paredes e telhados, precipitando-se, imprudentemente, nos prazeres carnais que a noviça, com igual afã, lhe prodigalizava.
Emparedado entre a disciplina da regra e a pressão dos sentidos, passava as poucas horas de sono, constantemente vígil, a congeminar a melhor maneira de se ver livre daquele dilema, que lhe minava a razão, porque, em cada novo dia, mais desejava dar vazão aos seus ensejos mais terrenos. Até que uma noite, completamente cego pelo diabo que albergava no corpo, o qual está sempre pronto para dar asas aos pecadores, tomou uma decisão que haveria de mudar completamente o curso da sua vida.
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