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Os pais tinham casa na Reboleira, mas cedo se mudou para São Domingos de Rana. Tinha 13 anos quando se deu o 25 de Abril e 14 quando foi expulso dos Salesianos, "tinha a mania que era malandreco". Estudou à noite, enquanto trabalhava de dia, casou entretanto e terminou o curso aos 27 anos, já com duas filhas. Tem cinco, todas raparigas.
O primeiro emprego foi "em chão de fábrica" e só anos mais tarde veio a ser administrador do grupo Sousa Cintra, o "pequeno império" que o antigo presidente do Sporting viria a perder graças a uma má estratégia de internacionalização. Quando o negócio foi vendido à Jerónimo Martins, só não ficou na empresa, "porque não sabia distinguir uma alface de uma couve".
Militante n.º 3376 do Partido Social Democrata, do qual já foi vice-presidente, Carlos Carreiras é presidente em limite de mandatos de uma das cinco maiores câmaras do país, Cascais, que este ano gere um orçamento de 550 milhões de euros, incluindo fundos comunitários.
Esteve desalinhado quando, há dez anos, "a maioria dos dirigentes do PSD não queria apoiar Marcelo Rebelo de Sousa" e está desalinhado agora, que apoia Henrique Gouveia e Melo. Sobre Luís Montenegro, opta pelo silêncio, mas avisa que o PSD não pode substituir a visão para o país por um conjunto de truques, ou terá o mesmo destino do PS, condenado ao "esvaziamento".
"Agora sou um homem biónico. Na verdade, tenho um dispositivo que é um pacemaker e um desfibrilhador ao mesmo tempo"
Um ataque cardíaco levou-o a ser operado ao coração. Agora, diz, é um "homem biónico". Talvez seja isso que o aproxima dos projetos que ainda tem para o Autódromo do Estoril ou para o Aeroporto de Tires. No final de outubro, o autarca reforma-se, mas não arruma as botas e planeia, para já, abrir uma empresa de consultoria.
Passou, não há muito tempo, por um susto, um ataque de coração. Como se sente hoje?
A operação ao coração aumentou substancialmente a minha qualidade de vida. Agora sou um homem biónico. Na verdade, tenho um dispositivo que é um pacemaker e um desfibrilhador ao mesmo tempo, uma coisa a que chamam CDI. Se me acontecer alguma coisa, dispara automaticamente e ressuscita-me, entre aspas.
Fiz a operação no Hospital de Santa Marta e recomendo. Lá fora, havendo qualquer indicação de que há um problema de coração, já estão a fazer isto a partir dos 60 anos. Dá imensa serenidade do ponto de vista psicológico e mais capacidade física, porque o ritmo cardíaco é mais regular.
Um "homem biónico". Isso significa que é mais forte, mais rápido e mais inteligente, como na série dos anos 1970 The Six Million Dollar Man?
Sou biónico em dois aspetos, o outro tem a ver com os ouvidos, os ossos começaram a fechar, chamam-lhe a doença de mergulhador, e também tive de tratar do assunto.
Temos evoluído muito do ponto de vista médico. Hoje, como me dizia um professor desta área, somos como os carros, vamos substituindo peças. De resto, não me dá super-poderes, isso é coisa dos livros. Embora eu conheça algumas super-mulheres.
Quem vai ganhar a câmara de Cascais?
O povo. O povo ganha sempre.
Olhe que não, olhe que não.
Vai ganhar a coligação "Viva Cascais", temos boas sondagens.
Foi vice-presidente, presidente durante 15 anos e, agora, lança para a presidência o seu vice. É uma dinastia?
Sou republicano, não sou monárquico. A questão é que há valores inerentes ao cargo e o atual vice-presidente é, enquanto candidato, o mais bem preparado para vir a ser o futuro presidente da câmara.
Por outro lado, é uma pessoa que tem contacto, de forma muito permanente e há muitos anos, com os vários setores da sociedade de Cascais e, com isso, ganhou laços que se transformaram em confiança. Aliás, Nuno Piteira Lopes tem mais notoriedade do que eu tinha quando estava nas mesmas funções em que ele está.
"Nuno Piteira Lopes tem mais notoriedade do que eu tinha quando estava nas mesmas funções"
João Maria Jonet teria gostado de ter o apoio do PSD, agora vai concorrer como independente.
O choné? Não tem qualquer hipótese, é muito imaturo e parvinho.
Fez quase quatro mandatos à frente da câmara de Cascais, embora o limite seja três.
Sim, porque entrei no terceiro mandato do meu antecessor, ainda fiz três anos. E depois fui eleito três mandatos, por isso, estive três mandatos e três anos, 15 anos no total.
É a favor da limitação de mandatos?
Na minha opinião, o que existe é uma discriminação, só quem tem limitação de mandatos em Portugal é o presidente de câmara e o presidente da República. De resto, primeiro-ministro, ministro, deputado, vereador, não têm limitação de mandatos. A minha crítica é esta.
Ou evoluímos, e consideramos que a limitação de mandatos é alargada a muito mais áreas de intervenção política, ou consideramos que isso é uma limitação que não faz sentido e acabamos com ela. Já fui contra esta lei, exatamente por causa da discriminação, hoje sou a favor, porque nos liberta para outras atividades, designadamente na área privada.
Se tivesse de apontar alguma coisa, seria ao nível dos rendimentos dos políticos: um deputado em Portugal ganha mais do que um presidente de câmara, embora um presidente de câmara tenha muito mais responsabilidades. E tem maior exposição, também. Vai ser um tema a que me vou dedicar quando já não puder ser acusado de estar a trabalhar em causa própria.
"Ou a limitação de mandatos é alargada a muito mais áreas de intervenção política, ou consideramos que isso é uma limitação que não faz sentido e acabamos com ela"
Quinze anos é ou não demasiado tempo à frente de uma câmara?
Para mim é, se fizer uma análise económica. A minha reforma neste momento é muito superior ao meu vencimento como presidente de câmara, porque ganhei muito mais antes de estar na política do que na política.
Mas, em termos de indicadores, fui sempre subindo em percentagem de votos, em 2021 tive o melhor resultado que alguém alguma vez alcançou em Cascais em termos autárquicos.
O que vai fazer a seguir?
Vou trabalhar, embora já tenha condições para me reformar. Já agora, tinha 40 anos de descontos aos 60 anos de idade, neste momento já tenho mais. Vou ter que voltar a trabalhar, não escondo o objetivo de ganhar dinheiro, não para ficar rico — já não vou ficar rico —, mas para ter uma vida minimamente confortável na minha velhice.
Em que é que vai trabalhar?
Esse é um ponto de interrogação que coloquei a mim próprio há uns tempos: "Em que é que és bom? Em que é que te especializaste?" E, na verdade, nestas funções de presidente de câmara não nos especializamos em nada, somos conhecedores, e nalguns casos competentes, de uma grande diversidade de matérias.
O que tenho previsto é voltar às áreas a que profissionalmente estive ligado e aproveitar um pouco daquilo que tem sido a minha experiência e o meu conhecimento das autarquias. E aí tenho uma vantagem, não há-de haver nenhum assunto sobre o qual eu não tenha tido já alguma reflexão, algum pensamento.
Está a dizer que vai voltar à gestão?
Sim, gestão com certeza. Gostava que fosse em Cascais, porque a qualidade de vida que se ganha a trabalhar perto de casa é enorme. Mas ainda não sei exatamente o que vou fazer.
Defini que até fim de maio iria dedicar-me àquilo a que eu chamo prestar de contas. Gravei já uma série de vídeos onde faço isso, suportados em números, levantamento de dados, que vão dar origem a um livro que estou a fazer agora, com a ajuda de uma amiga jornalista, mas que só irei publicar depois das autárquicas.
Reservei os meses de junho e julho para me despedir de um conjunto de pessoas e instituições que trabalharam comigo e para começar a preparar a minha vida. Isto, para chegar ao fim do mês e ter um panorama de possibilidades e oportunidades para começar a concretizar em setembro.
Além disso, tenho mais duas campanhas para fazer este ano em que me vou aplicar bastante, as autárquicas e as presidenciais.
O que sei neste momento: um, pedirei a minha reforma no final de outubro — pensei que ia ser mais cedo, mas a data das eleições comeu-me esse mês, de acordo com os prazos legais a tomada de posse do próximo executivo será nessa altura; dois, constituirei uma empresa de consultoria.
Vai fazer um período de nojo?
Porquê? A minha mulher é arquiteta, não há nada na lei que a impedisse de fazer projetos para Cascais. Mas, quando vim para a câmara acordámos que ela não deveria fazer projetos para Cascais. Por vontade dela, dentro deste acordo que estabelecemos, não fez um único projeto para Cascais. Também nunca pus uma filha minha a fazer trabalhos para a câmara.
Se tive essa preocupação quando entrei para a câmara, há muitos anos, é mais do que evidente que terei essa preocupação agora, na saída. Somos todos muito bonzinhos, muito puros, mas a razão objetiva é que já não tenho pachorra, mas como não me represento só a mim, represento uma instituição, não posso dar dois pares de estaladas ao tipo que vier insinuar qualquer javardice que lhe passe pela cabeça como forma de ataque.
Antes de avançar na política, gostaria que falasse um pouco da sua infância e do seu percurso profissional. Não viveu sempre em Cascais.
Nasci em Lisboa, os meus pais tinham uma casa na Reboleira, na qual quase nunca vivi, porque nos meus primeiros anos vivi em casa dos meus avós maternos, em Santos-o-Velho. Quando tinha cinco anos fomos viver para Cascais, para São Domingos de Rana.
A primeira recordação que tenho, aliás, é de ter ido visitar a casa da Reboleira, de ter saído porta fora e de estar perdido na rua. Foi o meu primeiro grande susto, por isso me recordo ainda hoje. De resto, todas as minhas recordações são já de São Domingos de Rana.
A freguesia para onde fui viver era a mais desfavorecida no âmbito geral. Hoje continua assim, mas teve uma melhoria que, apesar de não estar ao nível que eu gostaria, não tem comparação com o que era. Lembro-me de que tínhamos um campo de futebol, no Seminário da Torre d'Aguilha, com chão em saibro; o centro de saúde era uma moradiazinha na rua que ia para a Rebelva. Tudo o que era equipamentos públicos e oferta pública era mil vezes inferior à que, felizmente, existe hoje.
"Em 2021 tive o melhor resultado que alguém alguma vez alcançou em Cascais em termos autárquicos"
Tinha quase 14 anos no 25 de Abril, foi apanhado em plena adolescência. Como viveu essa época?
O 25 de Abril marcou muito a minha geração. Antes, os meus pais já participavam em movimentos católicos, na JUC [Juventude Universitária Católica], na JOC [Juventude Operária Católica], já havia alguma conversa sobre política lá em casa, embora tudo muito abafado.
Lembro-me de que antigamente não se votava como agora, as pessoas recebiam o boletim de voto em casa e levavam-no para a urna. E eu tinha sempre aquela curiosidade de miúdo de saber em quem os meus pais votavam, coisa que nunca me disseram.
O meu pai acabou por ser fundador do PPD à época, a garagem dessa casa dos meus pais foi sede do PSD de São Domingos de Rana, com toda aquela confusão do pós-revolução. Lembro-me de ser miúdo, sair de casa e ter uma lata a dizer "isto é uma bomba para matar os fascistas". Ao princípio assustavam-nos, criavam alguma preocupação, mas passados uns dias — eles eram teimosos e todos os dias punham lá a lata — já ninguém ligava, saíamos, dávamos um pontapé na lata e íamos à nossa vida.
A primeira vez que me senti homem foi um dia em que o meu pai chegou a casa e me pediu — eu era o mais velho dos irmãos — para se reunir comigo e com a minha mãe, uma conversa a três. E explica: o pai provavelmente vai ficar sem vir a casa durante um tempo, não fiquem preocupados, e tu ficas o homem da casa. Isto porque ele estava numas listagens de pessoas a abater no 11 de Março [tentativa de golpe de Estado de Spínola, a Intentona] e, vim a saber mais tarde, ia para casa dos meus avós, em Aveiro.
Era uma notícia triste, até eventualmente perigosa, mas eu senti um orgulho enorme em ser nomeado o homem da casa.
Estudou nos Salesianos do Estoril, mas sei que foi expulso do colégio. Quer contar a história?
Fui estudar para os Salesianos do Estoril, uma marca muito evidente porque, na época, o liceu de referência da zona era o Liceu de Oeiras, no concelho ao lado, e os Salesianos recebiam gente de toda a espécie, de vários estratos sociais. Costumo dizer que não se conhece bem Cascais sem essa experiência, era o colégio mais democrático que podia existir.
Mas, como disse, o período a seguir ao 25 de Abril foi conturbado, e eu tinha a mania que era mais esperto do que os outros. Na verdade, era um pouco parvo, também, e nalguns casos até malcriado. É um período que não me engrandece muito, mas que tenho contado aos miúdos, até como exemplo.
Nessa altura, tive um desaguisado com um dos padres dos Salesianos, que não expulsavam ninguém e, por isso, convidaram-me a sair. Foi um escândalo, porque eu era capitão da equipa de hóquei em patins, os meus pais pertenciam à associação de pais, havia todo um enquadramento que não apontava nada para a minha saída. Mas lá saí e fui para o liceu de Carcavelos.
"Não escondo o objetivo de ganhar dinheiro, não para ficar rico, mas para ter uma vida minimamente confortável na minha velhice"
Que desaguisado foi esse?
Uma coisa parva. Nunca fui muito bom a línguas, mas havia nos Salesianos um padre francês que, a dada altura, disse qualquer coisa. Eu, armado em malandreco, respondo com uma asneira — para a malandrice já era bom —, e o padre dá-me um estalo, coisa que hoje em dia também seria inadmissível.
Em vez de me calar, armado em esperto, digo: como ensinam aqui, devemos oferecer a outra face. Ofereço a outra face e o padre nem ensaia, tenta dar-me outro estalo. Aí, agarrei-o, empurrei-o e sou mandado para a rua. Quando vou a sair, atiro com a porta, mas, como a batente não estava suficientemente presa, a porta passa para o lado contrário e bate na cabeça do padre, que vinha atrás de mim.
E então fui enviado para um psiquiatra em Lisboa, porque na altura não havia psicólogos. Que me pôs logo à vontade, "podes contar tudo o que quiseres, nada sai daqui..." E decido logo testá-lo, perguntei se podia fumar. Que sim, podia. No fim daquilo tudo, perguntou: "Queres dizer mais alguma coisa?" Não, a única coisa que queria saber é se sou maluco. "Não, é tudo próprio da idade, quando muito maluco é quem te mandou cá", diz ele.
Estava feito. "O sotôr não me escrevia uma carta a dizer isso?", perguntei. E ele, que devia ser mesmo maluco, escreveu a carta. De maneira que no outro dia lá fui eu ao colégio, todo cheio de ares, entregar a carta ao padre diretor que me tinha mandado ao psiquiatra. Claro, a partir daí já não havia recuo.
Acabei por arrastar os estudos e comecei a trabalhar muito cedo.
Muito cedo é com que idade?
O convite para sair foi aos 14 anos, aos 16 anos comecei a trabalhar e a estudar à noite. Ou, para ser verdadeiro, comecei a trabalhar e a frequentar algumas aulas. Quando acabei o curso no ISCAL, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa, já era pai de duas filhas, tinha 27 anos (casei com 23 anos).
"Lembro-me de ser miúdo, sair de casa e ter uma lata a dizer "isto é uma bomba para matar os fascistas". Ao princípio assustavam-nos"
Tem cinco, não é?
Sim, todas raparigas. Agora, já tenho quatro netos e três netas, a coisa começa a ter algum equilíbrio. E tenho os inimigos, os que vão lá buscar as filhas. Ter cinco filhas marca, porque, de facto, não é comum, mas é muito bom.
E trabalhava em quê?
O meu primeiro emprego foi em chão de fábrica, durante sete ou oito anos, era um trabalho não qualificado. Só depois disso tive uma carreira profissional já mais qualificada e com melhores vencimentos, primeiro numa empresa de gestão hoteleira, participada pela TAP e pela Estoril Sol (50% cada), com muita atividade nos países de língua portuguesa, especialmente nos africanos.
Até que o braço direito de António Bernardo, da consultora Roland Berger, vai para a Vidago, Melgaço & Pedras Salgadas e convida-me para ir também. Ele tratava dos assuntos estratosféricos, eu dava-lhe o meu conhecimento da terra.
Quando o grupo foi vendido, fui com o acionista fazer investimentos na área imobiliária e na área de produtos de grande consumo, muito especialmente cerveja. E tivemos a ousadia de ir para o Brasil.
Isso já com Sousa Cintra, não foi? Mas correu mal, julgo.
Não, correu muito bem até começar a correr mal.
O que é que correu mal?
Alguns assuntos. Estive com ele durante sete ou oito anos, muito simpáticos, muito felizes, com muitíssimo trabalho. Depois houve um desentendimento, criei um conjunto de suspeitas de comportamento com o qual o acionista não concordou. Além disso, decidiu fazer um investimento em Portugal, com o qual eu e os restantes administradores éramos contra, com divergências já do ponto de vista estratégico, mesmo em relação ao Brasil. E a coisa acabou por correr mal.
Saí, mas passados seis meses Sousa Cintra começou a insistir para eu voltar. Voltei ao fim de um ano e, tudo o que tínhamos acordado que era necessário fazer e que justificava o meu regresso, não foi feito. Ainda estive a trabalhar com um filho algum tempo e, depois, vim para a Câmara Municipal de Cascais.
"Tive um desaguisado com um dos padres dos Salesianos, que não expulsavam ninguém e, por isso, convidaram-me a sair. Foi um escândalo"
Quando o grupo foi vendido à Jerónimo Martins?
No acordo de compra e venda, o grupo Jerónimo Martins, que já era forte, mas menos do que é hoje, convidou-me a ficar e ofereceu-me aquilo que para eles era uma coisa absolutamente extraordinária: ficar à frente de um mega-supermercado. Lembro-me de ir a alguns supermercados para sentir, para perceber o funcionamento, mas não tinha nada a ver comigo, ainda hoje não consigo distinguir uma alface de uma couve.
Onde é que entra a maçonaria?
Não entra. A maçonaria é de ter amigos. Quando cheguei a vice-presidente da câmara de Cascais, era recorrente dizerem coisas, uns diziam que eu era da Opus Dei, outros diziam que eu era da maçonaria. Ambos com uma matriz comum, o facto de alguém que não era muito conhecido no âmbito concelhio chegar logo a uma posição de relevo. Só havia uma justificação, fazer parte de um grupo que tivesse essa influência. Ainda para mais, tinha cinco filhas.
Havia nisso algum fundo de verdade?
Eu fazia parte de uma organização da Igreja, as Equipas de Nossa Senhora [têm como objetivo ajudar casais no seu caminho]. Mas os de fora baralhavam tudo.
Nunca pertenceu ao Grande Oriente Lusitano?
Não. Participei de algumas reuniões, umas sessões abertas que eles faziam. Porque foi uma época em que, de alguma forma, queria aprofundar o conhecimento sobre mim próprio. Mas participei numa percentagem ínfima do que será a organização. Faziam algumas sessões com pessoas de grande notoriedade, de grande respeito e de grande interesse, algumas a desempenhar cargos importantes, mas não foi nada a que me agarrasse.
O que aprendeu sobre si?
Cheguei à conclusão que não era ali que poderia encontrar o que eventualmente estava à procura. E hoje já nem sequer sou sócio de qualquer clube de Cascais, porque convidam-me para tantas organizações que, só em quotas, não há quem receba para isso. Portanto, nem sequer sou sócio de alguma coisa dessa natureza.
Chegou à câmara de Cascais pela mão de António Capucho, foi seu vice-presidente. Na altura, diversos jornais publicaram artigos a dizer que ele se tinha sentido pressionado pelo PSD local para o convidar. É verdade?
Em primeiro lugar, se alguém entrou na câmara de Cascais pela mão de alguém, foi António Capucho pela minha mão, porque ele estava completamente afastado de Cascais. Sobre essa matéria, tudo aquilo que foi insinuado por António Capucho não corresponde à verdade, mas ainda não é o tempo de eu colocar essa verdade cá fora.
Há pouco não perguntei, mas as suas filhas têm alguma diferença de idades.
A mais velha fez agora 40 anos, a mais nova tem 21, são 19 anos de diferença.
"Fui enviado para um psiquiatra em Lisboa, porque na altura não havia psicólogos"
Em 20 anos muda muita coisa. A educação, a maneira de educar, também foi muito diferente?
A mais nova é bióloga, a mais velha designer. Há uma alteração em termos de moda, até de costumes. De resto, nunca fomentámos muito as facilidades, nem eu nem a minha mulher. Sempre estivemos disponíveis para aconselhar, para transmitir a nossa experiência, porque somos mais velhos, mas as decisões foram sempre delas, nunca limitámos essas escolhas. Depois tudo dependeu muito mais do feitio de cada uma, porque se algumas têm mais pontos em comum, também consigo identificar diferenças.
O leque de idades largado trouxe-me a possibilidade de ter uma casa sempre muito frequentada, com amigos, sobrinhos, muita gente nova, porque sempre gostámos de ter uma casa aberta. Se uma geração tem 20 anos, consigo identificar três gerações diferentes que foram passando lá por casa.
Quando a mais velha fez 18 anos — no caso dela era também a primeira neta — decidi escrever-lhe uma carta, que na verdade é um livro, porque tem mais de 40 páginas. Não queria que fosse um regulamento, queria que fosse um conjunto de experiências e de sensibilidades.
Eu e a minha mulher namorámos sete anos antes de casar, vamos fazer 41 anos de casados. Na altura, a minha mulher sabia que eu queria muito ter um filho rapaz. Um dia fomos à feira de Cascais, que era à volta da Praça de Touros, e comprámos um mealheiro, um pote grande, em barro, e começámos a pôr lá moedas, chamei-lhe o pote da Catarina. Portanto, a Catarina já era Catarina muito tempo antes de ter nascido.
Tudo isto, todas estas histórias e grande parte da minha vida, também, estão nessa carta, senti que tinha entrado pelo escritório da vida, aqueles escritórios todos desarrumados, e tinha conseguido organizar tudo, pôr tudo dentro de pastas. Passado pouco tempo dos 18 anos da Catarina soubemos que estávamos grávidos novamente, tive a sensação de que alguém tinha entrado no escritório e tinha desarrumado tudo outra vez.
Conclusão, isso criou um precedente e o meu presente de 18 anos para todas elas é uma carta. O conteúdo da carta só cada uma delas sabe, além de mim e da mãe. Sei que uma ou outra já mostrou ao namorado ou ao marido, mas isso é com elas, têm liberdade para fazer o que quiserem. E têm algumas coisas em comum, uma delas é a importância do não, outra é que sabem que a porta de casa dos pais está sempre aberta para as receber, seja em que circunstâncias for.
Estão todas em Portugal?
Esta geração é uma geração global. No meu tempo, ir a Espanha, a Badajoz, era uma excitação de todo o tamanho. Hoje não têm essa limitação. Umas estudaram no estrangeiro, trabalharam no estrangeiro, mas voltaram, felizmente, voltaram todas. Aí, a grande preocupação era que não arranjem um 'inimigo' estrangeiro.
Pior do que isso, uma delas — se ler a entrevista, não vai ficar aborrecida, não vou dizer qual —, desconfio que namorou com um australiano. Que era o pior de tudo, porque a Austrália está na outra ponta do mundo. E eu a imaginar, se isto acontece, com netos, é uma chatice, porque fica longe e caro.
Cascais tem já uma percentagem de população estrangeira considerável. Que significado tem isso para o concelho?
Sim. Os residentes em Cascais representam 80% das nacionalidades do mundo. Ainda assim, gosto de dizer que em Cascais não há estrangeiros, porque estão todos minimamente integrados na nossa comunidade.
Estimamos que entre aqueles que mantêm cidadania de outros países e aqueles que têm a dupla nacionalidade, a população estrangeira começa a aproximar-se dos 25%. São dados estimados, porque há um fenómeno que as estatísticas não distinguem, os cidadãos com dupla nacionalidade.
Particularmente, a comunidade nascida no Brasil rondará os 20%. É muito comum andar-se na rua e ouvir-se falar brasileiro. Com uma alteração sociológica em relação à época em que assumi a presidência da câmara, os brasileiros eram, à época, uma população mais desqualificada e de baixa renda e hoje são uma população bastante mais qualificada e de alta renda, até de altíssima renda para aquilo que são os padrões portugueses (quando se é rico no Brasil, é-se mesmo muito rico).
Mas isto vem um pouco ao encontro daquilo que é uma identidade de Cascais, que pela sua posição geográfica, pela sua história, sempre foi um território de acolhimento, recebeu sempre a influência de várias partes do mundo, de várias culturas, de várias religiões, que ajudaram a desenvolver o concelho.
"Quando cheguei a vice-presidente da câmara de Cascais, era recorrente dizerem coisas, uns diziam que eu era da Opus Dei, outros diziam que eu era da maçonaria. Eu fazia parte das Equipas de Nossa Senhora"
Depois do chumbo do Tribunal Constitucional, o presidente da República vetou a Lei de Estrangeiros e devolveu o diploma à Assembleia da República. A lei era má ou o presidente está a fazer oposição ao governo?
Penso que ambos têm razão, o que falta discutir é a forma como nos organizamos para que tudo seja funcional. Não acredito em ruturas do ponto de vista sociológico. Nesta matéria, não podemos ficar naquela grande ideologia que é o achismo - eu acho, tu achas, todos achamos qualquer coisa, mas isto tem de ser feito de uma forma mais estudada e mais preparada.
É, acima de tudo, um tema que a sociedade portuguesa vai ter de aprofundar. Por um lado, há uma necessidade do país de receber imigrantes - a taxa de natalidade é um problema com décadas, estamos a viver um inverno demográfico. Por outro lado, o país tem de ter condições para receber esses imigrantes com a devida dignidade e isso passa pela forma como os integramos.
Houve uma iniciativa positiva por parte do governo, que foi ir às confederações patronais, às áreas setoriais, para fazer essa integração. Mas faltou, por exemplo, falar com as autarquias, porque estamos a falar de questões de proximidade, que exigem um conhecimento forte do território.
As câmaras têm também um papel direto com as camadas de imigrantes menos qualificadas e não tão bem remuneradas, com uma ação social muito forte, que é fundamental. Isto garante a coesão social e territorial, que é aquilo que também é necessário desenvolver a nível nacional.
Pergunto porque Cascais tem uma fatia grande de residentes estrangeiros, como disse.
Costumamos dizer que não temos estrangeiros, porque todos eles estão integrados na comunidade. A integração é absolutamente fundamental.
A realidade de Cascais pode ser replicada a nível nacional?
Um dos primeiros fatores de integração é a língua. Em Cascais promovemos aulas de alfabetização para imigrantes, exatamente para evitar que se criassem guetos, para estimular as pessoas a sair do seu bairro, a contactar com outros cidadãos.
A nível nacional, haveria todo o interesse em que essa população imigrante pudesse, logo à partida, ultrapassar a barreira da língua. Desta forma, também, já estaríamos a identificar os territórios de onde poderíamos importar pessoas.
Em Cascais temos hotelaria e restauração. E Portugal, temos grupos que têm unidades hoteleiras noutros países. Podem, como aconteceu no tempo do Covid, trazer pessoal desses países e dar formação a novos funcionários. É algo que tem de ser visto sempre numa lógica integrada. Pode acontecer na agricultura ou na construção civil, por exemplo. Isto na perspetiva dos menos qualificados.
Na perspetiva dos mais qualificados, temos necessidade de captar e potencial talento. Em Cascais temos vindo a aproveitar, mas a nível nacional não há uma estratégia neste sentido, a ligação entre universidades portuguesas e universidades de outros países.
Mudando de tema: porquê Gouveia e Melo e não Marques Mendes?
Porque reconheci no almirante Henrique Gouveia e Melo uma pessoa com competência para motivar e liderar um movimento de portugueses que tenha a capacidade de valorizar aquilo que nos une em detrimento daquilo que nos separa.
Considero que o almirante Gouveia e Melo tem esse poder de convocatória, como dizem os espanhóis, e acho que essa é uma necessidade urgente em Portugal.
Que, olhando para diversas sondagens, começou com força, mas está a descer.
O que as sondagens evidenciam é uma tendência. O que me parece que houve de alteração substancial, mas por via do aparecimento de mais candidatos, é que enquanto há uns tempos muitos apostavam que podia ganhar à primeira volta - coisa em que nunca acreditei -, hoje é quase certo que haverá uma segunda volta.
"Se alguém entrou na câmara de Cascais pela mão de alguém, foi António Capucho pela minha mão, porque ele estava completamente afastado de Cascais"
A segunda volta será com quem, se tivesse de apostar?
Pois, isso é o que não se sabe. Mas sabe-se que, havendo segunda volta, o almirante Gouveia e Melo estará lá. Luís Marques Mendes e António José Seguro são os dois potenciais desafiadores, com a liderança de Henrique Gouveia e Melo.
Há dez anos, em sentido contrário àquilo que era o pensamento da maioria dos dirigentes do PSD da época, fui dos que defendeu o apoio a Marcelo Rebelo de Sousa, não era um dos alinhados. Desta vez, acho que a candidatura de Luís Marques Mendes foi uma precipitação.
Marcelo Rebelo de Sousa foi, ou está a ser, um bom presidente?
Tem que se dividir os mandatos. O primeiro foi bom e só foi ao segundo pelas vicissitudes que o país estava a atravessar. O objetivo era fazer apenas um mandato. Não posso ser mais enfático, mas há dados objetivos, até da sua vida pessoal, que o levavam a nunca fazer um segundo mandato, não fosse o caso da pandemia. O cidadão comum não consegue avaliar o que foi a pandemia para quem tinha que tomar decisões e esteve envolvido naquilo.
O ele não querer fazer o segundo mandato acabou por prejudicar o segundo mandato. Depois, a instabilidade governativa, muita criada pelos partidos, mas alguma criada pelo presidente da República, não ajudou.
Voltando ao PSD, a Marques Mendes, à precipitação e à segunda volta...
Caso haja segunda volta e não seja um dos candidatos a passar, acho injusto para o próprio Dr. Marques Mendes e profundamente arriscado para o PSD.
Neste momento, embora António José Seguro tenha um distanciamento suficientemente reconhecido do Partido Socialista, a situação de maior risco que vejo é o esvaziamento do PS. Tenho dados a nível autárquico que mostram que o PS, nalguns casos, pode ter resultados perfeitamente desastrosos. Isto acaba por influenciar sempre as presidenciais.
"A mais velha [filha] fez agora 40 anos, a mais nova tem 21, são 19 anos de diferença [...] O meu presente de 18 anos para todas elas é uma carta"
Em que concelhos, e perde para quem, para o Chega?
Não posso generalizar, porque conheço dois casos, e duas andorinhas não fazem a primavera. Mas a perder é para o Chega. Isto é uma verdade de La Palice, há os que estão no poder e há os que não estão no poder. Os que não estão no poder são uma espécie de coligação dos que não gostam dos que estão no poder. O Chega é dos que estão contra, é o eleitorado que está contra, está frustrado. O PS quando perde, perde para o 'aliado', neste sentido, que é o outro grande da oposição, o Chega.
Tem receio de que, a prazo, o PSD venha a estar na situação do PS?
Não é uma questão de receio, é uma questão de consciencialização. Se o PSD não tiver cuidado, pode passar pelo processo que passou o Partido Socialista. E o que se passou com o Partido Socialista deveu-se, a meu ver, a dois fenómenos. O primeiro é que fez prevalecer a tática sobre a estratégia, fez prevalecer o truque sobre a visão. O PSD não pode, em momento algum, substituir a estratégia pela tática nem substituir a visão para o país por um conjunto de truques. E quem está no poder nos tempos atuais, que são tempos estranhos e diferentes de quaisquer outros, corre esse risco.
As pessoas comprometem as suas ideias em função do seu crescimento dentro do partido, isso acontece?
Se alguém entende a política como profissão, está completamente equivocado. Os movimentos que surgem no desenrolar de cada atividade política não se devem subordinar a prescindir de alguma ideia ou princípio a favor de salvaguardar qualquer tipo de posição.
Um líder deve ter uma visão, consubstanciar essa visão numa estratégia, que deve assentar em políticas e, depois assentar num ou outro truque. O problema é que em Portugal estamos exatamente ao contrário, truques há muitos, políticas há poucas, estratégia começa a não haver nenhuma e visão ninguém a tem. Ou seja, a hierarquia está completamente invertida.
O que é que Luís Montenegro e o seu governo não podem esquecer?
Considero que ser solidário, neste momento, é estar calado. Mas, além disso, ou temos capacidade para ler o mundo e, ao fazer isso, definir estratégias que resultem em benefício de Portugal, ou caímos na tal tática e no tal truque.
Uma das críticas que posso fazer - e isto até pode parecer cínico -, é que Portugal tem aproveitado mal os movimentos negativos que existem no mundo, a começar pela guerra e pelas migrações descontroladas. Porque estamos num sítio maravilhoso, num cantinho da Europa, em que aquilo de que nos acusavam, de sermos pobres, periféricos e pequenos, são hoje três ativos importantes. E não estamos a saber aproveitar isso.
"Entre aqueles que mantêm cidadania de outros países e aqueles que têm a dupla nacionalidade, a população estrangeira [em Cascais] começa a aproximar-se dos 25%"
Por exemplo?
O mar e a língua. Vou contar-lhe uma história curiosa, na altura era vice-presidente do partido e fui chefe da delegação do PSD a uma coisa organizada pelo governo chinês, que tinha como nome Encontro ao Mais Alto Nível Entre o Partido Comunista Chinês e os Partidos Irmãos da Europa. O primeiro choque é: o que é que o PSD tem de irmão do Partido Comunista chinês? Além de nós ia a Ana Catarina Mendes a chefiar a delegação do PS.
Cheguei a Pequim e percebi o que é que era um partido irmão para o chinês, era o que estava no poder e o que podia vir a estar no poder. E entre os vários irmãos da Europa foi-me apresentado, por exemplo, o Syriza e a CDU alemã. Mas a lógica, como digo, era muito pragmática: que decide ou quem pode ver a decidir.
Uma das iniciativas eram audiências com o número dois do Partido Comunista chinês, dez minutos por delegação. Comecei a fazer contas e, tempo útil, dava três minutos, por causa dos intérpretes. Então, fui falar com a Ana Catarina Mendes a sugerir que conciliássemos a comunicação. Era o PS que estava no governo e ela levava um documento do Ministério dos Negócios Estrangeiros e tinha de transmitir as ideias-chave daquilo.
Eu queria captar a atenção do senhor, para isso tinha de ser provocador. O óbvio era não lhe dizer que nós éramos uma porta de entrada para a Europa ou para qualquer parte do mundo, porque se o chinês chega e a porta está fechada, dá um pontapé na porta e ela abre-se.
Então fui dizer que havia uma coisa em que Portugal é muito maior do que a China. "Maiores? Em quê?" No mar, porque a China tem pouco e existem disputas sobre o mar que tem. Apostar no mar permitiria à China não cometer o mesmo erro que os russos e os americanos. "Qual erro?" Apostar no espaço e em vez de termos astronautas, termos argonautas. Passaram 20 minutos.
Pediu desculpa e perguntou se podia mandar uma delegação a Portugal para ser recebida pelo PSD. Achei que me estava a despachar de forma simpática, mas o que é certo é que na semana a seguir veio um contato da Embaixada da China para termos reuniões com os senhores.
E o que produziram essas reuniões?
Ah, não produziram nada. O que me fascinou e me continua a fascinar é que, para quem como eu nasceu na década de 60 do século passado, afinal há dogmas que se podem questionar. Hoje sinto uma aproximação maior com a estratégia e o pensamento do líder chinês do que sinto em relação ao líder norte-americano. Alguma coisa se baralhou aqui.
O curto prazo, para a China, é dez anos e isso vai consolidando pensamento, uma coisa que falta ao mundo ocidental.
Vamos voltar a Cascais. Foi presidente de diversas empresas municipais. As empresas municipais estão condenadas a ser sorvedouros de dinheiros públicos?
Não, antes pelo contrário, pelo menos é essa a nossa experiência em Cascais. Em primeiro lugar, reduzimos o número de empresas de forma substancial, criando uma orgânica e uma lógica completamente diferente. Em segundo lugar, o público não tem de fazer pior do que o privado, e temos um caso de maior sucesso, a Cascais Ambiente, que começou por substituir uma empresa prestadora de serviços de recolha de resíduos e de limpeza urbana.
Com a criação dessa empresa poupámos anualmente cerca de seis milhões de euros ao orçamento municipal, que afetámos a áreas estratégicas, como o setor social, a educação, a saúde e também a investigação e desenvolvimento.
As restantes empresas também não dão prejuízo. Não foram criadas para dar grandes lucros, mas estão perfeitamente estabilizadas do ponto de vista económico e financeiro.
Uma das críticas que lhe é feita tem a ver com o aumento do número de funcionários municipais. Proporcionalmente, aumentaram muito mais do que a população.
Tenho ouvido algumas críticas dessas. vale a pena ver qual era a função da câmara há 15 ou 20 anos e qual é a função que tem hoje. Por exemplo, a componente ambiental era o abastecimento de água, o saneamento, resíduos sólidos urbanos e um ou outro parque verde urbano. Hoje é muito mais do que isso, e se incorporarmos a componente de investigação e desenvolvimento, então nem se fala.
"Em Cascais promovemos aulas de alfabetização para imigrantes, exactamente para evitar que se criassem guetos"
Qual é o orçamento da câmara?
Este ano, mas estamos a falar de anos atípicos, poderá ultrapassar os 550 milhões, se incluirmos as ajudas comunitárias, o PRR é um dos maiores contribuintes.
Os dados mais recentes do INE sobre preços da habitação revelam que Cascais é o segundo concelho do país com casas mais caras, depois de Lisboa. Fez diversas promessas ao nível da habitação, o que falhou?
Em primeiro lugar, não fiz promessas, consegui passar estes anos todos sem promessas. Defino objetivos e corro atrás desses objetivos.
Defendeu habitação acessível e medidas para fixar jovens. A Estratégia Local de Habitação aprovada em 2021 identificou 4.085 famílias com necessidade de realojamento. Não aconteceu.
O que definimos como objetivo em Cascais foi conter a expansão dos perímetros urbanos. Hoje, quase 50% do território é espaço natural, que estava a ser comido por alcatrão e por betão a uma velocidade muito grande. Isso teve um efeito positivo, que foi virar o mercado para o interior da urbe e para a recuperação do parque habitacional privado, que estava muito deteriorado, e teve um efeito pernicioso que foi conter a construção - nunca se licenciou tão pouco quanto nestes anos em que estive como presidente de câmara.
A consequência negativa é que a oferta diminuiu de forma substancial, ao mesmo tempo que a procura aumentou. Cada vez somos mais procurados para viver, quer por cidadãos estrangeiros, quer nacionais.
No caso em concreto que menciona, parte dessas famílias foram realojadas, mas, manifestamente, numa percentagem muito menor do que aquela que gostaríamos.
Como se pode resolver o problema da habitação?
A questão da habitação é uma responsabilidade do governo da República, não é uma responsabilidade das câmaras. E não há que fugir disto. Razão pela qual os vários governos criaram institutos próprios, como o INH, agora o IHRU, para promoverem o setor.
O que é certo é que, sobretudo nos últimos anos, especialmente o IHRU, é de uma incompetência e de uma desorganização total. O cliente da casa vive ao lado da câmara e, por isso, pressiona a câmara.
As câmaras têm, de uma forma muito voluntariosa, tentado contribuir para atenuar o problema, porque lhes está à porta. O último grande plano de construção de habitação pública (não gosto de chamar habitação social, porque cria um estigma sobre o bairro), é de 1993, era primeiro-ministro o professor Aníbal Cavaco Silva.
E mesmo esse programa era para acabar com os bairros de barracas no país, estamos a falar da maior indignidade humana. Cascais era dos concelhos com mais bairros de barracas na Área Metropolitana de Lisboa. Ou seja, o Estado central esteve estes anos todos sem olhar para o problema.
"Reconheci no almirante Henrique Gouveia e Melo uma pessoa com competência para motivar e liderar um movimento com capacidade para valorizar aquilo que nos une em detrimento daquilo que nos separa"
Mas as câmaras sempre gostaram de chamar a si diversas competências, a habitação é uma delas.
E chamámos, não temos é a capacidade.
Vieram milhões da Europa para a habitação. Cascais vai conseguir executar esses fundos?
Para construir habitação é preciso terreno. E o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] para a habitação não contempla terrenos. Quem vai entrar com os terrenos, que não existem, são as câmaras municipais.
Alguns projetos lançados pelo IHRU, de que falou há pouco, incluem terrenos.
Como se costuma dizer, pão de pobre quando cai, cai sempre com a manteiga virada para baixo. No caso de Cascais não incluem terrenos.
Quando se fazem loteamentos, a lei obriga o proprietário a dar uma parte do terreno para espaço verde e outra parte para equipamentos - sendo que ninguém sabe que equipamentos vai pôr, quando vai lá pôr ou com que dinheiro os vai fazer.
O que eu disse ao então primeiro-ministro, Dr. António Costa, que tem experiência nisto, foi presidente da câmara de Lisboa alguns anos, é que bastava fazer uma pequena alteração na lei para considerar como equipamento a habitação pública. O governo socialista fez essa alteração, e passou a haver terrenos (mas é preciso projetos, concursos, uma série de trâmites).
"O PSD não pode substituir a estratégia pela táctica nem substituir a visão para o país por um conjunto de truques"
O que ficou assegurado com esse dinheiro?
Do PRR habitação - o dinheiro mais barato que vai haver -, e já tendo em conta todos estes procedimentos, garantimos a requalificação dos bairros de habitação pública já existentes, os tais de habitação social, que são obras relativamente pequenas. Aí vamos conseguir tudo.
Depois, aproveitámos o facto de ter direito de preferência sobre vendas realizadas no território: definimos que agiríamos em todas as vendas suspeitas de fuga aos impostos, ou seja, sempre que o valor era 30% abaixo dos indicadores do Instituto Nacional de Estatística [INE] que, por sua vez, estão muitas vezes abaixo daquilo que é a média do concelho. Só neste caso comprámos mais de 70 fogos, tudo casas para arrendar.
Em terceiro lugar, comprámos uma grande extensão de terrenos (como toda a área do El Corte Inglés, em Carcavelos), para garantir a capacidade de a câmara municipal, permanentemente, ir colocando novos fogos no mercado de arrendamento.
Tudo isto, permite-nos assumir o objetivo de, depois de passar esta fase do PRR, termos uma capacidade de produção de 600 a 800 fogos por ano durante os próximos 15 anos.
Que contas fez, em que baseou esses números?
Não há estatísticas suficientes para podermos fundamentar a decisão, mas estas foram as contas que fiz: em Cascais nascem por ano entre 1500 a 1600 bebés. Se uma grande parte ficar na cidade... É por isso que estamos a preparar a tal capacidade de produzir 600 a 800 fogos por ano.
Ainda em relação ao PRR, quantas habitações foram incluídas no plano?
3.500 habitações.
Quantas vão conseguir executar?
Acho que o que não conseguirmos será um valor meramente residual. Isto tendo em conta a versão oficial que passou do governo socialista para o governo de coligação da Aliança Democrática, de que não vai haver nenhuma extensão do prazo. Mas no ano passado, ainda me telefonavam a perguntar se eu tinha algum projeto para meter no Portugal 2020.
Acredito que o PRR vai ter algum prolongamento. Se for prorrogado por mais um ano, aí estaremos a completar a 100% daquilo a que nos candidatámos, cerca de 365 milhões de euros no total - também aqui se percebe que não há câmara para este nível de investimentos; fazer as escolas nós fazemos, fazer os centros de saúde nós fazemos, mas habitação para este nível de investimento não é possível, por isso é que tem de ser o Estado central.
António Costa é criticado por ter estado oito anos à frente do governo, os últimos anos com maioria absoluta, e ter feito pouco. Esteve 15 à frente do executivo de Cascais. Isso não dá para muita coisa?
E fizemos muita coisa, naquilo que era a nossa dimensão. O exercício do direito de preferência não começou agora com o PRR, já vínhamos de trás a travar a fuga fiscal. E tive grandes dissabores, porque algumas figuras não gostaram que eu tivesse exercido esse direito de opção. E algumas com influência, em que era mais fácil ceder do que manter, e mantivemos.
Nesta matéria, fizemos uma coisa muito importante que não foi feita na generalidade dos municípios, que foi recuperar casas abandonadas. Durante estes anos todos entregámos por ano 60 a 70 fogos para famílias sem habitação.
Outra coisa: discutiu-se muito a lei dos solos, poderem passar de rural para urbano, sendo que muitos destes terrenos eram urbanos no passado, portanto voltaram à sua classificação inicial. Pretendemos aproveitar uma pequena parte desses terrenos, nomeadamente num novo conceito, que é criar uma cidade à volta do aeródromo de Tires, a Aeropolis.
O Aeroporto de Tires tem os segundos voos mais poluentes da aviação, aqueles voos Tires-Lisboa, Lisboa-Tires.
O 'voo' mais poluente em Portugal são os barcos de cruzeiro. Mas sabe porque é que fazem, Lisboa-Tires e Tires-Lisboa? Por via da pista que há e que ninguém quer aumentar, por via da capacidade de colocação de combustível para fazer os intercontinentais. Mas, quando falamos em aeroportos, temos que ter em atenção a perspetiva geral.
No geral, todas as infraestruturas aeroportuárias vão sofrer grandes alterações. Ouvimos falar na Portela, ouvimos falar em Alcochete, mas temos de falar na Ota, na base aérea adstrita ao Aeroporto Humberto Delgado. Cascais arriscar-se-ia a ter um ativo, um património construído por todos, que, de um momento para o outro, podia ficar completamente desvalorizado.
Definimos lá atrás que iríamos vocacionar o aeródromo de Tires para formação em terra - porque a formação no ar custa dinheiro e CO2. Já lá estão dois simuladores de voo, que conseguem andar 365 dias no ar, 24 horas por dia, coisa que um avião não consegue. Nós temos essa perspetiva.
E formação especializada em três áreas de que a aviação mundial está a precisar. As estimativas dos grandes construtores de aviões dizem que vão ser necessários 2,5 milhões de novos profissionais nos próximos anos: pilotos, manutenção (mecânicos) e serviços (nomeadamente pessoal de bordo). Cascais tem todas as condições para ficar com uma parte substancial dessa formação, empregos qualificados e mais bem pagos.
Estamos a desenvolver a componente de formação especializada e de formação técnico-profissional nestas áreas de grande procura, que exige também uma cadência de formação permanente.
Esta aposta pode incluir outras possibilidades, que têm que ver com a Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova - Engenharia Aeronáutica, Engenharia Aeroespacial ou investigação ao nível da inteligência artificial -, que a este nível está a fazer parcerias com as melhores universidades da Europa e não só, porque há uma do Brasil. Isto permite uma dupla certificação, algo que é muito valorizado.
E não faltará muito para termos uma oferta de drones tripulados. Os Estados Unidos já estão a projetar para os Jogos Olímpicos de Los Angeles [2028] uma rede de transporte aéreo urbano com ligação entre os vários pontos onde vão decorrer as provas das várias modalidades.
"Aquilo de que nos acusavam, de sermos pobres, periféricos e pequenos, são hoje três activos importantes. E não estamos a saber aproveitar isso"
Isto casa com outra questão: não vamos ter mais fundos europeus idênticos aos que tivemos agora com o PRR.
Ainda agora a Comissão apresentou a sua proposta de orçamento plurianual e deixou tudo em polvorosa.
Ah, isso, o dinheiro nunca chega. Como dizia o outro, há vidas melhores, mas são mais caras. Neste caso, temos de nos adaptar à vida que temos que desenvolver. Mas o que sabemos, isso é uma evidência, é que se vamos ter de aumentar o investimento na defesa, não é indiferente a forma como o vamos fazer, como dizia o secretário-geral do Partido Socialista, José Luís Carneiro. Se for contratar um milhão de soldados, é uma coisa, se for gastar em investigação, será outra.
Decorrente do estado em que está o mundo, mas também decorrente do que virá a seguir ao Relatório Draghi, a Europa vai ter de encontrar a sua força. O que para mim é claro é que dentro de pouco tempo a Europa vai ter de criar pacotes de apoio comunitário, que já não é para a habitação, para a escola, para os centros de saúde, mas é para criarmos condições de a Europa voltar a ganhar competitividade em relação a dois grandes blocos: China e Estados Unidos.
Quem tiver a capacidade de antever estas situações, quanto mais cedo melhor, e de se preparar para elas, é quem mais vai beneficiar. Em Cascais temos essa experiência, até porque beneficiámos muito com o PRR na questão da educação, dos centros de saúde, do ambiente. Porque decidimos, muito antes de se falar no PRR ou o que quer que fosse, decidimos criar um conjunto de investimentos, muitos deles substituindo-nos à obrigação do Estado central.
O autódromo, um ato falhado. A câmara já tentou comprar, mas o Tribunal de Contas inviabilizou o negócio. Qual a solução?
Estamos em vias de chegar a um entendimento com a Parpública e o governo.
Ainda há dois anos a Parpública anunciava que tinha seis interessados no autódromo.
E há três anos também tinha, há dez anos também tinha. A questão é que, entretanto, não fazem investimento.
E agora ainda há a questão do ruído.
Quem foi viver para junto do aeródromo ou do autódromo sabia que estas infraestruturas estavam ali. E estamos a falar de estratos socio-económicos completamente diferentes, uns classe média/média baixa, outros classe média-alta/alta, no caso do autódromo.
Mas o autódromo é um equipamento que, se a Parpública não fizer nada, está-se a deteriorar e a perder valor. É fruto de um mau negócio do Estado há uns anos, porque o aceitou como pagamento de dívidas fiscais e à Segurança Social dos proprietários do autódromo, num valor muito elevado e que aquilo não valia.
O pior do negócio, é que o que foi dado como dação em pagamento das dívidas foi o autódromo, ponto. O hotel ao lado e o parque de estacionamento não foram incluídos. Foi um péssimo negócio. E estas coisas devem ter nomes, para as pessoas se situarem, à época era primeiro-ministro o engenheiro António Guterres.
Mas qual é agora a proposta da câmara?
Há uma outra possibilidade que o Estado tem de considerar, que é um terreno devoluto do outro lado da autoestrada, abaixo da prisão do Linhó. Antes de cair o governo, tivemos uma reunião com a senhora ministra da Justiça para fazer uma avaliação desses terrenos para que a câmara os possa promover (mediante cedência de direito de superfície durante xis anos, para ser possível amortizar o investimento que a câmara lá possa fazer).
E o valor que saísse disto seria para resolver situações ligadas também à Justiça, ligadas às prisões do Linhó (homens) e de Tires (mulheres). O estado precário em que estão as infraestruturas destas cadeias é absurdo. Em Tires, por exemplo, a parte de saneamento está toda rebentada. Enfim, cada cordel que a gente puxa vai lá parar ao fundo.
Estamos a falar de um grande volume de investimentos e estamos a falar de grande geração de emprego. Os parceiros que se estão a reunir para fazer este investimento são parceiros mais do que credíveis.
Qual é o projeto da câmara para o autódromo?
A ideia é transformar o autódromo numa grande feira de diversão para adultos na área automóvel, na área do motor. Há 'n' casos pelo mundo fora com grande procura. Além disso resolve outro problema: a Área Metropolitana de Lisboa anda à procura, há muitos anos, de um sítio para ter uma feira de diversões.
Neste projeto há um conjunto de funções que podem ser colocadas lá dentro. Cascais, Oeiras, Sintra têm-se desenvolvido muito a nível de grandes eventos. Não temos nesta zona uma área coberta para acolher esses eventos. O autódromo também pode servir para isso, aí até com um investimento bastante mais reduzido. O que colocamos como condição é que a pista do autódromo tem que se manter - mas a pista pode ter um sistema que permita que em determinadas alturas possa ser coberta.
Estamos a desaproveitar em Portugal um ativo nosso e que com o tempo, pela ordem natural da vida, vai-se perder e morrer. O país não tem dinheiro para bancar os fees da Fórmula 1. O que fizemos foi adaptar e ir para mercados secundários ou complementares a esse, como é o caso dos clássicos, que têm uma particularidade, já estão descontinuados do ponto de vista da indústria, alguns deles são do tempo em que nem sequer havia indústria, as peças são feitas à mão, é artesanato puro. Ora, nós temos excelentes profissionais para fazer essas peças. Muitas vezes estamos focados no nosso pedacinho na ponta da Europa, mas isso a nível global significa um mercado muito valioso. E estamos a desaproveitar isso.
Como estamos a desaproveitar uma coisa que estou em vias de conseguir: gostava de ter dois hotéis em Cascais, um grande hotel para cavalos e um grande hotel para clássicos. Porque há um mercado brutal para as duas coisas. Além disso, cavalos e clássicos são grandes produtos financeiros, forma de as pessoas investirem, salvaguardarem e rentabilizarem o seu dinheiro.
Há movimentos a nível mundial, para quem é investidor em cavalos. Por exemplo, em determinada altura do ano, o Norte da Europa precisa de colocar os cavalos em zonas mais amenas. Noutra altura, o Norte de África e o Médio Oriente precisam de colocar os cavalos em regiões mais frescas. Estas duas grandes movimentações originam grandes feiras relacionadas com o cavalo, onde se transacionam milhões. Muitas vezes, a pensar pequenino e a atacar pequenino, não temos a ambição de assumir estas oportunidades.
E ainda não falámos numa área que para Cascais é fundamental, que é o mar, o maior desperdício que temos tido. Das competições que patrocinamos, como o Estoril Open - que também ninguém acreditava que fosse possível -, o desporto náutico é o mais rentável para os hotéis, para a restauração, para o comércio local, mas, também, para a câmara.
"Depois de passar esta fase do PRR, termos uma capacidade de produção de 600 a 800 fogos por ano durante os próximos 15 anos"
Como é que gostava de ser lembrado em Cascais?
Ficarei realizado se andar por Cascais, porque espero continuar a viver em Cascais - e isto não é displicente em termos políticos, porque muitos daqueles que exercem funções saem e desaparecem (como o Judas e a Roseta) -, e, já velhinho, ouvir num café, numa loja, em algum lado: "Este tipo foi presidente da câmara e foi um bom presidente". Essa seria a minha maior glória.
Há quem diga que é megalómano. Concorda?
Não. Não, o que estou a fazer é lançar as bases. Considero que alguns projetos que apresento são disruptivos, mas megalómanos não. São fundamentados em números produzidos por quem sabe, por quem conhece.
O seu prazo de validade, como lhe chamou, acaba em outubro. No entanto, chego ao fim desta entrevista com a sensação que ainda tem muito projetos. Vai continuar a mandar na câmara, mesmo do lado de fora?
Não, não, não, de todo. O que tenho, com base na experiência acumulada e em alguns projetos que lancei, é disponibilidade para poder colaborar com o presidente de câmara na medida em que ele entender que isso é positivo.
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