Fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e neuropsicologia são valências do Centro de Reabilitação do Norte (CRN), localizado em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto, que desde maio recebe doentes com sequelas pós infeção covid-19.
O CRN permite a realização de programas de reabilitação intensiva, abrangente e multimodal, em regime de internamento, delineados e coordenados por médicos fisiatras, com diferentes valências: enfermagem de reabilitação, neuropsicologia, fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, Serviço Social e nutrição.
O vírus que está a mudar e a paralisar o mundo, é vulgarmente associado a sintomas respiratórios. Contudo, são muitas vezes referidas alterações da força muscular, da deglutição e da voz, bem como alterações neuropsicológicas, mas estas decorrem do internamento prolongado em cuidados intensivos e não do vírus, uma vez que a chamada "síndrome pós internamento em cuidados intensivos" (SPICI) pode ocorrer após uma estadia em cuidados intensivos por qualquer outra causa.
"A nossa amostra é a de um doente grave, um doente que esteve nos cuidados intensivos. Depois cada um tem um perfil diferente. A fadiga e o descondicionamento ao esforço são sequelas frequentes, e a dispneia menos frequente. [São situações que se traduzem] no ficar com falta de ar ao fazer exercício ou na dificuldade em fazer coisas às vezes aparentemente simples, como o vestir e o despir”, descreve à Lusa a coordenadora da Unidade de Reabilitação Geral de Adultos do CRN, Ana Machado Lima.
Rui Ribeiro, de 53 anos, residente no Porto, é um dos 22 doentes quer o CRN já recebeu desde maio pós-infeção pelo novo coronavírus. Passou por três hospitais – Matosinhos, São João, no Porto, e Valongo – até chegar a Gaia há uma semana.
Esteve quatro meses em coma. É o paciente que “mais tempo esteve ligado a ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) no mundo e sobreviveu”, segundo lhe contaram. Quando acordou ainda tinha uma “máquina que substitui o coração e os pulmões” agarrada a uma das pernas e percebeu que não sentia algumas partes do corpo.
“Há quem recupere rapidamente e quem fique com sequelas para toda a vida. Só o tempo o dirá. A esta distância nenhum médico arrisca dizer-me se vou ou não voltar a andar”, conta Rui à Lusa, depois de passar da marquesa para uma cadeira de rodas com a ajuda de um fisioterapeuta e antes de se dirigir ao refeitório onde cada paciente tem uma alimentação especifica.
Ana Machado Lima explica que, a par de situações relacionadas com lesões musculares ou nervosas, existem doentes que “quer pela fraqueza muscular, quer pelo entubação ou pela acamamento prolongada ficam com alterações na deglutição [no engolir] e na fonação [voz]”.
“As situações dependem de doente para doente. Em alguns casos é preciso reeducar a voz. A terapia da fala tem um importante papel”, descreve a coordenadora, acrescentando como sequelas de uma doença do foro respiratório as decorrentes da entubação que podem implicar traqueostomias o que faz com que a alimentação deixe de ser segura pelo risco de que algum alimento se aloje na área respiratória.
Rui Ribeiro já passou por vários passos de uma dieta completamente nova. Passou dos sumos para o iogurte e, entretanto, já fez a progressão da dieta pastosa para dieta mole e depois dieta normal, uma vez que os líquidos devem ser espessados devido à alteração na deglutição. Também já sentiu na pele a dificuldade em levar a colher de sopa à boca sem tremer ou redescobriu o gosto pelo peixe por este ser mais fácil de partir face à carne.
Também António Rodrigues, de 53 anos, assistente operacional numa escola em Braga, está a “reeducar” o corpo. Decidiu treinar a mão esquerda para a escrita, uma vez que perdeu movimentos do lado direito e porque não admite a hipótese de não regressar o mais rápido possível ao trabalho.
“Quero ser útil ao meu país, como o meu país, através dos hospitais, me é útil a mim. Salvaram-me e continuam a tratar de mim”, diz à Lusa, enquanto pedala sentado numa cadeira e conta que esteve em coma induzido “alguns meses porque já não respirava bem”. Descobriu que estava infetado no final de março. Foi entubado a 22 de abril.
“Fiz quatro testes e só o quarto deu negativo. Ganhei uma úlcera e apanhei uma bactéria. Estive até 15 de outubro no Hospital de Braga. É impossível saber onde apanhei [o vírus]. No princípio de agosto não dava um passo. Agora já só não levanto os dedos dos pés e mexo pior o lado direito. Lembro-me de ter sonhos. Lembro-me de ter pesadelos, mas é passado. Tinha de fazer muita força para me levantar e agora já me levanto sozinho. Já não me sinto cansado”, resume à Lusa.
António está internado no CRN, onde Fernando Soares, de 67 anos e residente em Gaia, também já esteve, mas agora frequenta em regime de ambulatório com sessões de fisioterapia três vezes por semana.
Ao longo de cerca de uma hora e meia faz exercícios para fortalecer os músculos e sessões de eletroestimulação. Fernando fala à Lusa em pé por opção: “orgulhoso” das suas “conquistas diárias” depois de ter perdido 18 quilos e de ter passado um mês em cuidados intensivos e outro numa enfermaria no Hospital Santos Silva, em Gaia.
“Quando vim para aqui deslocava-me numa cadeira de rodas, passei para um andarilho e passado algum tempo comecei a andar a pé. Cheguei a pensar ‘como é que eu vou viver numa casa com escadas?’. Na primeira semana foi complicado. Agora subo e desço as vezes que forem precisas”, conta.
Fernando Soares foi o único do seu agregado familiar que teve de ser internado. A mulher, que também teve covid-19 “só” sentiu cansaço e apresentou sintomas gripais como febre e tosse. O filho “só” passou por dois dias de febre.
As sessões de eletroestimulação que faz no CRN servem para recuperar movimentos, um vez que tem uma lesão de um nervo do membro inferior direito.
Usando uma linguagem pouco científica, a situação de Fernando é explicável como a "falta de força e formigueiro" que ocorre quando uma pessoa tem as pernas cruzadas durante muito tempo. No caso deste bancário reformado o que levou a esta situação foi provavelmente um posicionamento durante a passagem nos cuidados intensivos.
“Não me lembro de nada. Só sei o que me contam”, refere. Mas sabe que teve alucinações e que “imaginou coisas que nunca existiram”.
“As alterações psicoemocionais são frequentes. Este é um evento traumático na vida dos doentes (…) pessoas que acordaram depois de um período de coma com um cenário de equipamentos de proteção individual que os impede de ver a equipa que os trata. Sentem medo. As sequelas pós-traumáticas, as alterações cognitivas – memória, atenção, orientação, velocidade do raciocínio – todas elas são avaliadas cá pela neuropsicologia”, explica Ana Machado Lima.
De acordo com a responsável "já foi possível identificar várias síndromes" que não são exclusivos da covid-19, mas que estão a ser detetados em pacientes que “arrumam” o novo coronavírus, mas partem para outra batalha: a recuperação.
A título de exemplo são referidas a Síndrome de Guillain-Barré, que está associada a paralisias, e a Síndrome PRES (Encefalopatia Posterior Reversível), associada a alterações visuais. No CRN já foram admitidos alguns doentes com SGB e dois com PRES associados ao vírus, um destes últimos ficou com uma cegueira de que não recuperou.
[Artigo corrigido às 10h15 de 25 de novembro, para alteração de termos técnicos e declarações de Ana Machado Lima, corrigidas ao SAPO24 na sequência do texto publicado pela Agência Lusa]
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