“Talvez regionalização seja o novo nome da globalização. Não estamos ainda num momento de completa reversão da globalização, mas estamos pelo menos numa fase mitigada de desglobalização, numa globalização que apresenta contornos de maior incerteza, e de maior fricção e maiores custos económicos”, afirmou Durão Barroso, no X Fórum Jurídico de Lisboa, que decorre entre hoje e quarta-feira em Lisboa.
O cenário, segundo o antigo primeiro-ministro português, é “agravado pela situação na Ucrânia” e, por causa da invasão da Ucrânia pela Rússia, estamos “a testar a separação de dois sistemas”.
“Há aqui um perigo de desconexão das economias mundiais”, disse.
Este estado de coisas, considerou Barroso, resulta de um “acumular de tendências de vários fenómenos”, e se, estamos “muito preocupados com os desenvolvimentos que derivam da invasão da Ucrâmia pela Rússia”, a verdade é que já antes tivemos “tendências que se vinham a aprofundar”, como as notadas “com o desenvolvimento da pandemia de covid-19”.
Segundo o ex-presidente da CE, “mesmo antes da pandemia já tínhamos um crescimento, a intensificação de um conflito económico e social, geopolítico e tecnológico entre Estados Unidos e China”, cujo crescimento económico foi “o acontecimento mais importante nos últimos 30 anos”.
Barroso sublinhou que o Ocidente tem que “estar preparado para o longo prazo” no conflito russo-ucraniano e avisou: “Não haja ilusões. Mesmo que houvesse um milagre de um acordo de cessar-fogo a curto prazo, não vai haver reconciliação possível no futuro previsível entre Rússia e Ucrânia”.
“Como é que se pode reverter as sanções quando se designa o atual líder russo como criminoso de guerra?”, questionou.
“Aprendi [em resultado da funções em Bruxelas] que, por vezes, é muito difícil a União Europeia [UE] tomar decisões, mas é ainda mais difícil mudar as decisões, uma vez tomadas. Há uma grande rigidez no sistema”, acrescentou, e deu um exemplo: “As sanções que tomámos em 2014, quando foi a invasão e anexação posterior da Crimeia pela Rússia, foram alvo de várias tentativas para as levantar, mas foram ficando. Agora, o que há é uma nova dimensão dessas sanções”.
Durão Barroso prevê que a clivagem entre Ocidente e Rússia se vai prolongar “por muito tempo e isto vai levar, cada vez mais, a Rússia a uma dependência da China”.
Quanto à “China, que há cerca de 30 anos estava mais ou menos no mesmo nível económico do produto interno da Rússia e que hoje é dez vezes superior, que hoje representa cerca de 20% do PIB [mundial], está obviamente preocupada com aquilo que se está a passar com a Rússia, porque vê que poderá também ficar, de certa forma, desligada dos grandes mercados ocidentais, nomeadamente Europa e Estados Unidos”, afirmou.
A situação é agravada pelo desajustamento das organizações multilaterais existentes para enfrentar problemas como os que estão a paralisar a arquitetura institucional global.
“Hoje em dia, a Organização Mundial do Comércio está basicamente paralisada. As organizações internacionais só podem atuar onde os seus ‘stakeholders’, os seus membros, nomeadamente os Estados com maior influência, permitem que elas vão. As Nações Unidas estão paralisadas, o Conselho de Segurança está paralisado pelo sistema de veto da Rússia”, ilustrou.
“Apesar de toda a boa vontade de todos aqueles que querem que as Nações Unidas tenham um papel decisivo, a verdade é que isso não vai acontecer. Razão pela qual estamos, de facto, num momento de crise da ordem internacional”, referiu.
O antigo chefe da CE salientou que “o mundo está numa encruzilhada entre fricção e fluxo”.
“Por um lado, o fluxo da livre circulação das ideias, de pessoas, de bens, de capitais e serviços, por outro lado, a fricção do nacionalismo extremo, do protecionismo, do isolacionismo, da xenofobia”, explicou, acrescentando o alerta: “Não está, à partida, garantido quem vai ganhar”.
Para já, algo que parece “evidente” ao ‘chairman’ da Goldman Sachs é que a chamada ordem internacional - tal como foi concebida a seguir à Segunda Guerra Mundial, essencialmente criada pelo Ocidente e pelos Estados Unidos – “está em crise”.
“Hoje o que está a passar-se é a contestação dessa ordem internacional, o que tem evidentes consequências do ponto de vista do direito internacional. Porque, se considerarmos que o direito internacional representa apenas um legado ocidental e que está determinado por uma visão enviesada do ponto de vista ideológico, então isso alimenta o ressentimento contra esse direito e contra essa ordem internacional”, aadvogou.
No ocidente, considerou Barroso, não se tem “bem a noção do ressentimento que há contra o mundo ocidental, nomeadamente nos países em vias de desenvolvimento”, pelo que, concluiu, coloca-se cada vez mais a questão de se saber se, do ponto de vista normativo, seremos “capazes de manter um mínimo de funcionalidade na ordem internacional”.
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