O encerramento da época desportiva do Futebol de Rua serviu de pretexto para um triangular amigável que juntou equipas de Lisboa (O Companheiro IPSS), Setúbal (CRIAR-T) e Beja (PAX JOVEM). Este Futebol de Rua, com maiúsculas, não deve ser confundido com futebol na rua, jogado sem amarras, repleto de liberdade, criatividade e imprevisibilidade, embora estas características se repliquem nos dois campos.
Não foi só mais um jogo, nem só mais um torneio. Esta “final”, representou o cair do pano da temporada 2025 do projeto da Associação CAIS. Criado em 2004, usa o futebol como ponte para a inclusão social. É futebol, sim, mas não se restringe ao que se passa nas quatro linhas, como veremos.
No dia da final a manhã estava solarenga e contrastava com o cimento na sede da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, em Vialonga, Vila Franca de Xira, que foi o palco eleito para a despedida da época desportiva.
Num campo insuflável propositadamente montado para o efeito, Jorge Andrade, antigo internacional português, deu um toque de saída. A redondinha, com as dimensões equiparadas à usada no futsal, transitou entre os pares equipados a rigor. A tática e a técnica foram circulando na ponta das sapatilhas.
As vozes do “passa, passa” ou “bola, bola” esgotam a comunicação quase sem palavras, abafadas pelas instruções de treinadores e aplausos de quem assistia. O esférico é acariciado como seda e tratado como cristal. Circula de pé em pé até um disparo metálico abanar as redes. O som é abafado pelos gritos de golo.
As competições de Futebol de Rua vão de abril até ao início de outubro. Por isso, foi já dentro das férias desportivas que jogadores, no ativo ou “reformados”, árbitros, treinadores e selecionadores distritais pisaram um terreno diferente dos torneios regionais ou do Nacional, eventos que ocorrem, por norma, em “sintético ou piso de futsal”, outdoor sempre que a meteorologia o permite, indica Gonçalo Santos, da CAIS.
“O piso, hoje, é diferente. É uma demonstração. Fez sentido ser aqui na casa de um dos nossos stakeholders (Fundação Luso)”, adianta ao 24noticias o coordenador do Futebol de Rua da Associação Cais, ao exaltar “um dia de festa” durante o qual “reunimos um bocadinho de todo o ecossistema do Futebol de Rua”, detalha.
O futebol para todos e todas
Gonçalo Santos lidera este projeto da Associação Cais desde 2008, quatro anos depois da sua criação. Em poucas palavras descreve as razões de existência deste futebol jogado em campos de dimensão reduzida, que usa uma baliza à escala, soma jogos de 14 minutos (7x7) e pode envolver equipas mistas.
“Temos dois grandes objetivos: promover o acesso à prática desportiva, neste caso, o futebol de rua, e promover o desenvolvimento de competências pessoais e sociais e processos de capacitação em paralelo, através das atividades educativas, dentro e fora de campo”, resume.
A jusante, o propósito maior de “dar um espaço seguro onde todos e todas pertençam. Independentemente de onde vêm, de um contexto socioeconómico mais ou menos robustos, mais ou menos estruturado, podem jogar”, acrescenta.
“À medida que crescemos, a nossa estrutura cresce e que os stakeholders nos apoiam mais, conseguimos chegar a mais gente”, atira, convicto.
Destaca a interação como chave desbloqueadora. “Estou aqui, estou com outros e outras. Esta interação faz-me alargar horizontes, faz-me ver que há mais possibilidades na minha vida”, assevera Gonçalo Santos.
Viaja ao distante ano de 2014, ano da fundação. “Quando começámos, eram só IPSS’s”. Hoje, entra na cadeia de jogos, “associações culturais, recreativas, desportivas, grupos informais, jovens e menos jovens”, enumera.
A base cresceu e, consequentemente, outros indicadores acompanham. “Temos crescido em número de equipas e entidades participantes”, enfatiza. O crescimento conheceu um boom depois da pandemia da COVID-19, não só em número de jogadores, mas também nos eventos.
“Temos atividades em 16 dos 18 Distritos e Regiões Autónomas. Os 18 Distritos participam nas competições”. A cobertura é de “90% do território nacional”, diz. A competição divide-se em torneios distritais, regionais e culmina na final nacional que reúne todas as seleções distritais, disputada, por norma, na segunda quinzena de julho ou primeira de setembro. Beja recebeu a final, em julho que reuniu 27 comitivas.
Após a final do Nacional, a seleção portuguesa reuniu-se em estágio (11 dias) e viajou até Oslo, na Noruega, onde decorreu o campeonato do Mundo de Futebol de Rua (Homeless World Cup). Regressou vice-campeã desta competição que decorre desde 2003.
Gonçalo Santos faz uma pausa para explicar o percurso de cada um dos jogadores e jogadoras dentro de campo com a bola nos pés. Nas competições locais, não há limite de participação. No nacional, cada jogador pode jogar três vezes. No Mundial, que acontece anualmente, cada jogador (a) só pode vestir a camisola da seleção uma vez.
Objetivo? Dar lugar a todos. A outros e a outras. “Se estou cinco anos ligado ao Futebol de Rua, posso ir a um Mundial, três Nacionais e cinco distritais. Mas posso continuar sempre nas distritais. Porquê? Porque depois entram nos progression pathways”, vinca o coordenador.
O Futebol de Rua não se resume à antecâmara da “febre dos estádios” e vai muito além do jogo jogado. “Ao longo destas duas décadas, criámos uma parte educativa. Não existia inicialmente”, avança Gonçalo Santos. Destaca o “Move-te, faz Acontecer”, parceria educativa com o Plano Nacional de Ética no Desporto e o Programa Juventude em Ação / Programa Erasmus+ JÁ.
“Trabalha um referencial de valores e competências destes jovens, na premissa de que as competências pessoais e sociais são as fundações para qualquer processo de capacitação, autonomização e cidadania”, cita.
Em paralelo, “fazemos progression pathways”. Por outras palavras, “quando findam o percurso de jogadores e jogadoras, todos os anos damos formação residencial para se tornarem treinadores e treinadoras, selecionadores e selecionadoras distritais, educadores sociais, árbitros e árbitras”, exemplifica.
A arbitragem tem uma particularidade no bolso. “Na parceria com a APAV, podem tornar-se árbitros de futsal ou futebol 11 federado. É a tal progression pathways, ou seja, o percurso de progressão deles dentro do projeto, que, depois, lhes abre também portas fora do projeto”, realça.
20 anos depois, novas e velhas problemáticas
O mundo e a sociedade portuguesa mudou, e muito, nos últimos 20 anos. Mudou rápido. Por isso, sem surpresas, “o nosso público-alvo também mudou”, reconhece o coordenador do braço futebolístico da CAIS. “Quando começámos, o projeto estava centrado essencialmente nas pessoas que viviam em centros de acolhimento, ou em respostas de alojamento pontuais”, lembra Gonçalo Santos.
Na década 2010-2020, o Futebol de Rua começou a trabalhar com mais jovens vindos dos bairros sociais e, hoje em dia, abriu o leque de intervenção. “As problemáticas que encontrávamos há 20 anos, são diferentes, mas as de hoje não são menos relevantes daquelas de há 20 anos”, compara.
Ilustra a mudança, exemplificando. “Quando comecei em 2008, encontrávamos muitos jogadores e jogadoras que tinham, ou os seus agregados, problemas de dependências. O álcool, nomeadamente, foi um flagelo durante muito tempo na sociedade portuguesa, e continua a sê-lo”, adianta. Atualmente, a realidade é outra. “Jovens com dependências do jogo”. Mas há mais. A violência nos agregados, encontrada em 2014, mantém-se, mas reveste-se de um novo dado. “A violência no namoro”, desvenda.
Bebé, um filho do Futebol da Rua
Em 20 de anos de muitas vidas, na pesquisa de nomes sonantes nascidos no Futebol de Rua que saltaram para a mediática montra do futebol de 11, “Bebé” é o cromo mais folheado.
“Foi connosco a um festival na Bósnia (2009), fez capa de um jornal, jogou uma época no Estrela, (no ano seguinte no Guimarães) e foi para o Manchester United. O resto como se diz, é história”, lembra, uma biografia onde constam passagens pelo Benfica, Rio Ave, Paços de Ferreira, Eibar, Rayo Vallecano, Zaragoza e Ibiza, onde joga.
No futsal, a estrela é Ricardo Miranda, pela própria boca, contou a sua história ao Canal 11 . E que Gonçalo Santos resume. “Jogou em criança, deixou, recomeçou no Futebol de Rua e voltou. Esteve num programa de empregabilidade da CAIS que lhe permitiu conciliar horários com treinos no futsal (federado) e teve uma ascensão meteórica, mas merecida, para a Liga Espanhola e para a Seleção Nacional, onde jogou ao lado do maior astro do futsal português, o Ricardinho”, aponta.
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“Tornei-me um homem diferente”
Nomes conhecidos à parte, a história do Futebol de Rua não ficaria completa sem a voz de quem fintou, simultaneamente adversários e o destino, que se reinventou e conseguiu ganhar uma nova vida e um novo rumo.
Gilson Ribeiro, 36 anos. Nascido em Cabo Verde, está em Portugal “há 25 anos”, refere ao 24noticias entre uma pausa do triangular que marcou o final da época. No passado, encaixou-se em todos os ângulos do retângulo de jogo, de guarda-redes a ponta de lança. Jogou quatro anos e foi ao Mundial do Chile (2014). “Agora sou árbitro de futebol de rua”, conta. Para além de arbitrar no Nacional, integra os quadros de árbitros do Campeonato do Mundo de Futebol de Rua.
A tranquilidade é a característica soprada desde os tempos de jogador. As orelhas aquecem enquanto caixa-de-ressonância de “muitas bocas”. Não liga. “Já fui jogador, sei o que acontece no calor do jogo, tento não ligar, faço o meu trabalho e eles tentam fazer o trabalho deles”, atesta. “Pela experiência, quando o jogo é mais difícil, para mim torna-se mais fácil de arbitrar”, analisa. O “mais difícil” é um jogo “de mulheres”, sorri, sorrateiramente.
Representa “O Companheiro”, associação de apoio a ex-reclusos. Não viveu essa realidade. Nem de perto, nem de longe. Entrou ali através do “Moinho da Juventude”, fez um estágio na carpintaria e decidiu mostrar que as suas mãos são talhadas para outros materiais e também sabem jogar. Tal como os pés.
Trabalha no crematório do cemitério do Alto de São João. Regressa à porta de entrada que lhe proporcionou uma nova vida. “Deu uma volta de 90 graus. Fui criado pela minha mãe, sem pai, somos três irmãos e, naquela altura, era muito jovem, não tinha visão da vida e estava um bocadinho sem rumo”, traça.
Neste processo, “nunca fiz coisas que não se devem fazer”, salvaguarda, reconhece os apoios, conselhos do Futebol de Rua e da CAIS e agradece as voltas que a vida deu. “Agora já sei o que é que quero daqui para frente”, antecipa Gilson Ribeiro. “Tornei-me um homem diferente”, confessa o árbitro que vive com a namorada, ex-jogadora e o filho de nove anos, um craque da relva contratado pelo Sporting ao Real Massamá.
A criança mais conhecida do Futebol de Rua nacional tornou-se galáctica
Fábio Pacheco, foi, no Futebol de Rua, jogador, treinador e selecionador Distrital de Beja do. Estudou no Politécnico de Beja, escalou para fora das fronteiras do futebol de rua, foi jogador de futsal e integra a equipa técnica da Associação de Futebol de Beja. Falou do percurso de vida ao 24noticias, um caminho que foi para além dos golos.
“No Futebol de Rua, comecei no torneio distrital, em Beja, pelo meu bairro, bairro do Pelame. Integrei a seleção distrital, em 2014 e fomos campeões nacionais, em Braga. A partir daí, fiz os três anos de nacionais, integrei a seleção nacional em 2016, na Escócia, em Glasgow e ficámos em 5º lugar”, abrevia Fabian, como é conhecido.
“Quando fui à Seleção Nacional estava numa fase da minha vida que não sabia se queria estudar, se queria trabalhar, estava farto da universidade (Politécnico de Beja). Depois da Seleção vim com outra mentalidade, focadíssimo na minha vida, em ser licenciado em desporto...”, explica o personall trainer.
Fábio Pacheco, 30 anos nos pés, pisou também os terrenos do futsal. “Comecei aos 16 anos, deixei de jogar há dois porque não podia acumular funções de jogador com o cargo de selecionador distrital na Associação de Futebol e abdiquei de jogar”, acrescenta.
No futsal, representou o Desportivo de Beja, Grupo Desportivo Cultural Baronia, Portimonense (2.ª divisão), a vontade de acabar a licenciatura levou-o para o Vidigueira, representou o Farense e o Covid-19 fechou-o no Alentejo, no Baronia, de onde não voltou a sair. Pendurou as botas no final da temporada 2022-2023.
De carreira feita, uma oportunidade caiu-lhe no colo. “O coordenador do projeto, Francisco Seita (equipa técnica da seleção nacional), saiu por motivos profissionais e passou-me a pasta”, esclarece o presidente da Associação Pax Jovem.
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“No primeiro ano, foi difícil, tive que organizar o torneio de Beja sozinho, com a ajuda da Cais. Foram apenas 9 equipas”, num Distrito que “vai de Barrancos a Odemira”, distância de mais de 200 quilómetros. Essa realidade foi, entretanto, enterrada. “Atualmente, somos o torneio Distrital com o maior número de participantes, 150 no último, 21 equipas masculinas, mistas, e um torneio feminino com 9 equipas”, recorre à contabilidade.
Fabian ostenta um título nacional enquanto jogador, dois campeonatos na qualidade de treinador masculino e o dobro (4) como treinador da equipa feminina, troféu conquistado em cinco anos de competição .
Nas andanças do Futebol de Rua, Fábio Pacheco é sempre acompanhado da mulher e da filha, Alice, 5 anos. Desde que nasceu. “Foi ao primeiro torneio de futebol de rua com um mês de idade”, lembra. “Toda a gente a conhece”, assegura.
A criança mais conhecida do Futebol de Rua nacional tornou-se galáctica. Na final da Champions League feminina, em Alvalade, entre as equipas do Arsenal e FC Barcelona, transportou a bola do jogo e ocupou o centro do palco, juntando-se ao presidente da UEFA, Aleksander Čeferin, na entrega das medalhas às jogadoras.
“A Alice estava sozinha com a Joana, da CAIS e teve envolvência com toda a gente, o Čeferin, o Laporta, presidente do Barcelona. No final, quis entregar uma prenda à Kika Nazaré.
. Correu o mundo ”, garante, orgulhoso do momento. “Não tenho nenhuma fotografia em casa, mas tenho nas redes sociais tudo o que se passou”, transmite Fábio Pacheco. “A Alice é um bom exemplo do que é que o Futebol de Rua pode fazer”, remata Gonçalo Santos, coordenador do projeto da CAIS.
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