Kléber Mendonça Filho acompanhou, no Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema, a exibição de “Bacurau”, o seu mais recente filme, correalizado com Juliano Dornelles, Prémio do Júri no Festival de Cannes, no passado mês de maio.
Questionado pela Lusa sobre se seria concebível que os cortes na Cultura no Brasil pelo governo de Jair Bolsonaro tenham como consequência uma quebra na criação artística do futuro, o realizador de “Bacurau” disse ter preocupações a dois níveis: por um lado, em relação ao “desaparecimento do produto artístico brasileiro” e, por outro, sobre a imagem do artista.
“Tenho duas preocupações nesse sentido: o desaparecimento do produto artístico brasileiro, que é extremamente grave porque o audiovisual é uma indústria como qualquer outra. Milhares de pessoas que trabalham. No ‘Bacurau’ trabalharam 800 pessoas, direta e indiretamente. Mas o que mais me preocupa é o fortalecimento de algo que já existe, que é a imagem nefasta do artista numa sociedade como o Brasil e isso está pegando”, afirmou o cineasta.
Para o realizador, premiado em Cannes e mais recentemente em Munique pelo seu mais recente filme, “já existe uma transformação do artista num inimigo da sociedade, num inimigo do povo, num vagabundo, num aproveitador, num embuste, num canalha”, e “isso é muito grave”.
“Claro que, mais uma vez voltando para o passado, isso a gente identifica, por exemplo, na Alemanha dos anos 1930. E isso me impressiona bastante. Porque podia ser, sei lá, ‘corta todo o dinheiro para a cultura’, mas o artista continua sendo importante. Não. É ‘corta o dinheiro, porque os artistas são praticamente criminosos’ e isso é muito estranho. E essas pessoas não lembram que elas chegam em casa e vão ver Netflix, ou seja, tudo feito por artistas”, declarou Kléber Mendonça Filho.
O realizador de obras como “O Som ao Redor” e “Aquarius” reconheceu que gostaria “de ver um cinema mais reativo, uma arte mais reativa” no Brasil.
Brasil sofre “completa ausência de compreensão do passado”
O realizador Kléber Mendonça Filho alerta para uma “completa ausência de compreensão do passado” que está a afetar o Brasil.
Em entrevista à agência Lusa, o realizador de “Bacurau” explicou que o seu mais recente trabalho, no qual partilha a realização com Juliano Dornelles, “é um filme futurista, ou seja, um filme que estaria fazendo uma projeção do que as coisas serão, mas na verdade muitos dos conflitos do filme são problemas crónicos históricos do Brasil e do mundo”.
“Para mim, é um filme de História, no sentido em que é um filme sobre o passado. E o passado está muito presente no filme e a relação da comunidade com a História. E a relação de um outro grupo de pessoas com a História, no sentido de não entender a História”, explicou Mendonça Filho.
Questionado sobre que diferença estabelece entre História e o passado, o realizador responde: “A História me parece que é a compreensão do passado. O passado são os factos isolados ou no seu estado puro, mas é difícil você olhar para o passado como uma máquina. O passado sempre vem acompanhado de uma interpretação ou de um sentimento, pode ser de nostalgia, pode ser a partir de um trauma, pode ser uma compreensão política ou social como os historiadores ou sociólogos fazem, mas o passado para mim é o facto absoluto isolado”.
Assim, fazendo ele próprio o exercício de olhar para trás, Kléber Mendonça Filho vê, há 10 anos, um “momento em que existia dinheiro para a cultura no Brasil e existia uma vontade política de apoiar e ajudar a cultura no Brasil”.
“Eu quando me formei, em 1992, não tinha absolutamente nada no Recife para quem gostaria de fazer cinema. Dez anos atrás, um garoto ou uma garota de 21 anos podia escrever um projeto de curta-metragem, submeter e ganhar 60 mil reais para desenvolver o seu filme. Eu falava para os meus amigos ‘atenção, a gente está vivendo uma época de ouro’”, lembrou o cineasta, que disse sublinhar na altura que tais circunstâncias não eram normais.
Esse apoio, num momento em que a presidência do Brasil era ocupada por Lula da Silva, explica “a construção de um novo cinema brasileiro e que hoje explica dois filmes em Cannes com dois prémios – um [‘A vida invisível de Eurídice Gusmão’, de Karin Aïnouz] na Certain Regard e outro [‘Bacurau’] na competição – um filme estreando em Sundance, dois filmes estreando em Berlim, já vai ter filme agora em Veneza, ou seja, é parte de uma construção”.
Esta constatação leva Kléber Mendonça Filho a registar como facto - e não com nostalgia - que o momento vivido há 10 anos era especial.
Por outro lado, o que está a acontecer hoje no maior país da América do Sul é “a completa ausência de compreensão do passado”.
Referindo-se à mais recente polémica causada por declarações do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que disse que “o trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, Kléber Mendonça Filho afirmou que “muita gente não entende que valorizar o trabalho infantil é uma repetição do que era um Brasil com trabalho infantil oficializado 50, 60, 70 anos atrás, e isso é algo que absolutamente não deveria estar acontecendo”.
“Não acho que ninguém está querendo reeditar os ‘grandes e bons tempos’ de crianças de 7 anos de idade trabalhando em fábricas, acho que é simplesmente alguém que não tem a menor noção do passado, falando qualquer coisa, falando ‘n’importe quoi’, como falam os franceses. Falando merda”, declarou o realizador.
*Tiago Dias (texto) e Estela Silva (fotos) | LUSA
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