A “Sopa dos Pobres” comemora este mês 100 anos, ao longo dos quais acompanhou as transformações dos problemas sociais e diversificou as respostas aos mais desfavorecidos de Lisboa, apoiando atualmente cerca de 400 pessoas por dia.

Apesar do refeitório ser a “resposta principal e mais visível”, servindo diariamente cerca de 200 refeições ao almoço e 140 ao jantar, o centro tem “ateliers ocupacionais”, um centro de acolhimento temporário, balneários e uma lavandaria, onde os utentes podem tomar banho ou pôr a sua roupa a lavar e a passar, disse à agência Lusa o diretor do CASA, Bruno Caldeira.

As refeições são servidas a partir do meio-dia, hora a que se começa a formar uma fila junto ao edifício na avenida Almirante Reis, desenhado pelo arquiteto Lino de Carvalho, para acolher a Cozinha Económica dos Anjos, cuja gestão foi entregue em 1914 à Sociedade Protetora de Cozinhas Económicas de Lisboa e mais tarde, em 1928, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).

créditos: MIGUEL A. LOPES/LUSA

Ordeiramente, homens e mulheres dos 18 aos 80 anos entram no refeitório e mostram à “D. Nazaré” o seu número de código, atribuído pela Santa Casa, que lhes dá acesso ao equipamento.

Aos poucos, as 25 mesas do refeitório vão sendo ocupadas pelos utentes que, numa quarta-feira de março, podiam escolher entre um prato de peixe frito, com arroz e salada, e frango assado, acompanhados de sopa e fruta para a sobremesa.

Há pessoas que frequentam o refeitório “há bem 20 anos”, contou Bruno Caldeira, explicando que “são situações em que há alguma cronicidade e que é necessária esta intervenção”.

“Aquilo que também temos que perceber é que a reintegração social e profissional nem sempre é um processo fácil”, sendo, por isso, importante garantir que “as pessoas têm a melhor qualidade de vida possível, tendo em conta as suas circunstâncias”, sublinhou.

Para Bruno Caldeira, “é bom” que existam este tipo de respostas, porque permitem uma intervenção duradoura “sem nunca pôr de parte a possibilidade de as pessoas encontrarem uma resposta mais adequada” para si.

Carlos Cunha, 59 anos, é cliente do centro dos Anjos há quase 12 anos, e os agradecimentos são muitos: “Dão roupa lavada, banho, boa comida, os funcionários são impecáveis, temos enfermeiros e temos cinema ao domingo. Só falta darem o pequeno-almoço”.

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À Lusa recordou os onze anos vividos com dificuldade na rua. “Os primeiros dias para dormir na rua é complicado, as pessoas a passar, sentia-me envergonhado, depois habituei-me”.

“Agora estou no albergue de São Bento, também é um grande albergue. Quem tem rendimentos dá um euro, tem pequeno-almoço e jantar. Eu venho aqui almoçar e janto lá”, contou.

Considera o refeitório como “o pai, a mãe, o filho, a sogra”. “É uma casa que alimenta muito, com “muito asseio”, disse Carlos Cunha, apontando com um sorriso para Nazaré Valoroso, funcionária da Santa Casa, a quem chamou “mãe dos pobres”.

Nazaré Valoroso trabalha no refeitório há quase 16 anos e conhece bem os que o frequentam. “Uns são desempregados, outros são excluídos das famílias”, mas também há “jovens que andam à procura de emprego e não têm como sobreviver e aqui recebem uma pequena ajuda para seguirem em frente”.

Muitos chegam com “alguma vergonha, porque chamam a isto a sopa dos pobres”, mas ela diz-lhes para não ficarem embaraçados. “Isto é um refeitório normal e a gente não sabe o dia de amanhã”, vincou.

Ao longo dos anos, Nazaré Valoroso fez muitos amigos e disse ser “muito gratificante trabalhar” com esta população.

“Eles são amigos das pessoas, se a gente for a algum lado e for maltratada, eles defendem-nos. Gostam muito de nós, tratam-nos bem, não tenho razão de queixa de ninguém”, frisou.

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Virgílio Alves, 57 anos, reside há um ano no centro de acolhimento temporário, onde estão mais 14 pessoas. Em comum, têm o facto de terem tido alta hospitalar e não terem para onde ir.

A vida de Virgílio sofreu um revés quando ficou sem uma perna num acidente em Inglaterra. Regressou a Portugal, onde teve um AVC. "Não subia nem descia escadas, não fazia nada. Nem conseguia comer", recordou.

Esteve internado em hospitais e noutras instituições, até que acabou a viver na rua. Por intermédio de um amigo, conheceu o centro dos Anjos, onde diz ter encontrado o apoio que precisava.

Marceneiro de profissão, Virgílio Alves passa os dias na carpintaria do centro, a construir objetos em madeira. “É um entretém para mim, eu gosto do que faço”.

A história de Virgílio e de Carlos cruza-se com a de muitos que todos os dias almoçam e jantam no refeitório dos Anjos, que 100 anos depois, ainda é conhecido como “a sopa dos pobres”.

Problemas velhos com "maquilhagem nova"

A “Sopa dos Pobres” surgiu durante a I Guerra Mundial para matar a fome da população de Lisboa. Cem anos depois mantém-se para responder a problemas que ainda hoje persistem, mas com uma “maquilhagem nova”.

Criada em abril de 2017, por iniciativa do jornal O Século, com a ajuda das paróquias, a “Sopa dos Pobres” surgiu num contexto marcado pelo agravamento das condições de vida, pela escassez de alimentos e pela “pobreza esmagadora do país”.

A “Sopa dos Pobres” e as “cozinhas económicas” surgiram para “cumprir uma função social”, mas “foram paliativos para uma situação dramática vivida por uma população com 80% de analfabetos”, disse em entrevista à agência Lusa o investigador José Lúcio, coautor do estudo “A pobreza em Lisboa na I República”.

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O investigador do Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas contou que a guerra “fez vir à superfície a realidade de um país profundamente rural”, “atrasado, pobre”, muito pouco competitivo a nível internacional, com “taxas de mortalidade infantil avassaladoras” e “carências alimentares gravíssimas”.

Naquela época, os produtos que Portugal produzia eram exportados, a comida racionada e “as pessoas passavam fome”, contou, por seu turno, a investigadora Filomena Marques, coautora do mesmo estudo.

Muitas vezes, a única refeição diária que comiam era a sopa servida naquelas instituições. Por isso, era uma “sopa forte”, com grão, feijão, toucinho, acompanhada por um “naco de pão”.

Para Filomena Marques, “quase que seria impensável que, um século depois, estas medidas viessem a ser retomadas”, com a abertura de cantinas sociais para responder a novas situações de pobreza geradas pela crise.

As cantinas sociais são “uma consequência quase lógica dos problemas que se estão a viver”, acrescentou José Lúcio.

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Fazendo um paralelo com a realidade vivida há 100 anos, o investigador disse que “os meios que hoje existem para apoiar a população carenciada são incomparavelmente mais eficazes, mais seguros e maiores”.

“A Câmara de Lisboa não é a mesma de há 100 anos, a Misericórdia também e temos uma instituição que não existia, a Segurança Social”, adiantou.

Segundo o investigador, são estas instituições que “conseguem criar um quadro de apoio que não existia e que permite maquilhar melhor as carências das pessoas”, porque, “apesar de terem passado 100 anos, há certos problemas que continuam presentes” a nível da pobreza urbana.

“A população, felizmente, já não tem o analfabetismo que tinha, existem questões que estão ultrapassadas, existe o Serviço Nacional de Saúde, mas atenção, costuma-se dizer ‘maquilhagem nova para problemas antigos’”, sublinhou.

Também é preciso “ter consciência” que estes “problemas rebentam imediatamente” quando surge uma crise, os rendimentos baixam e o desemprego aumenta brutalmente em setores como a construção civil.

“Em 1917 foi uma guerra, em 2012/2013 foi uma crise económica muito grave, que automaticamente fez vir ao de cima problemas muito complicados da sociedade urbana portuguesa”, disse José Lúcio.

Apesar de todos os problemas vividos pela população, “aprende-se muito pouco com as crises”.

“A memória dos portugueses não alcança mais do que três meses” e já está a acontecer uma “situação preocupante”.

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“Saímos há um ano de um problema muito grave e já estamos a assumir comportamentos que permitem entender que está em formação uma bolha especulativa imobiliária na cidade de Lisboa” e a “história económica recente diz-nos, sem qualquer margem para dúvida, que geralmente as crises” são desencadeadas por estas situações, disse o investigador.

Perante a história que se repete, José Lúcio aconselha “muita prudência”: “Não é por se crescer 1,4% ou 1,5% que de repente o país ficou muito rico e que o que se passava em 2015 era a pré-história e que agora estamos no Renascimento”.