Doar gâmetas. O processo é relativamente simples, mas muito está em causa. Apesar do avanço da medicina da reprodução e dos tratamentos de fertilidade — que permitem resolver uma parte significativa dos problemas de fertilidade — muitos casos só encontram solução com recurso à doação de ovócitos ou de espermatozoides.
Associado a este processo está, também, a ajuda a terceiros, permitindo assim a concretização do sonho de ter um filho.
Em Portugal, a Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, estabelece os critérios de acesso às técnicas de procriação medicamente assistida (PMA). De acordo com o documento, "pode recorrer-se à dádiva de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões quando, face aos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários e desde que sejam asseguradas condições eficazes de garantir a qualidade dos gâmetas". Por isso, "os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer".
Neste sentido, todo o processo decorre sob sigilo médico: os dadores não sabem para quem estão a doar os seus gâmetas e os beneficiários da dádiva — os pais da criança que vai nascer — também não vão saber a identidade dos dadores. Mas tudo pode mudar quando a criança atingir a maioridade.
Cláudia Bancaleiro, da Associação Portuguesa de Fertilidade (APF), explica ao SAPO24 o que está em causa, recuando no tempo até abril de 2018, ao momento em que o Tribunal Constitucional considerou que as normas que impunham sigilo absoluto relativamente às pessoas nascidas com recurso à dádiva de gâmetas ou embriões eram inconstitucionais, possibilitando o levantamento do anonimato dos doadores.
"A lei foi devolvida ao Tribunal Constitucional para ver até que ponto estaria conforme à Constituição, a pedido do CDS-PP na altura. O que ficou depois decidido foi que — havia aqui retroatividade na lei — as doações feitas até 2018 continuavam a ser protegidas pelo anonimato. Ou seja, em todas as doações que tivessem sido feitas até essa altura e que fossem utilizadas em tratamentos mantinha-se o anonimato do dador. Após essa data, todas as doações que fossem feitas já não poderiam ser anónimas. Por isso, a partir dessa altura, tudo o que foi doado em termos de gâmetas, femininos ou masculinos, deixaram de estar abrangidos pela questão do anonimato", começa por dizer.
"O dador não é tido nem achado como progenitor em algum momento. Nunca foi e nunca será"
Contudo, mesmo tendo sido levantado o anonimato, tal como explícito na Lei n.º 48/2019, de 8 de julho, "só as crianças nascidas através de tratamentos com recurso a doação é que podem ter acesso a essa informação genética". E o processo não é assim tão direto.
"Há toda uma série de trâmites — porque não é só querer saber, tem de se fazer um pedido legal diante do Conselho Nacional de PMA com as razões para querer saber a identificação civil, que não vai além do nome completo do dador ou da dadora. A partir daí, toda a investigação por parte da criança nascida, que nessa altura já terá 18 anos, já será a nível pessoal, sendo que o dador tem todo o direito de se recusar ao contacto, porque não é tido nem achado como progenitor em algum momento. Nunca foi e nunca será", esclarece Cláudia.
Ainda no campo do anonimato, a lei esclarece que "quem, por alguma forma, tomar conhecimento da identidade de participantes em técnicas de PMA" é "obrigado a manter o sigilo sobre a identidade dos mesmos e sobre o próprio ato da PMA".
E quem doou gâmetas antes de 2018?
Apesar de, atualmente, não existir anonimato na doação, a situação quanto aos gâmetas anteriores a 2018 é diferente. Desta forma, estão abrangidos por um regime de confidencialidade da identidade civil do dador "os embriões resultantes de doações anteriores ao dia 7 de maio de 2018 e utilizados até cinco anos após a entrada em vigor da presente lei", "os gâmetas resultantes de doações anteriores ao dia 7 de maio de 2018 e utilizados até três anos após a entrada em vigor da presente lei" e ainda "as dádivas que tiverem sido utilizadas até ao dia 7 de maio de 2018".
E motivo para estas exceções é facilmente justificável, explica Cláudia Bancaleiro: "é tudo para não se desperdiçar estes gâmetas". "A nível de Sistema Nacional de Saúde (SNS), o número de gâmetas que existe está longe, muito longe, de responder às necessidades para tratamentos atuais. Assim mantém-se esses gâmetas a serem utilizados em tratamentos", esclarece.
"Após esse prazo de três a cinco anos, a decisão é que os gâmetas serão destruídos — o que não é o objetivo e vai-se evitar isso sempre — ou que vão para investigação. Mas, para já, não nos parece que isso vá acontecer, deverão ser todos utilizados dada a necessidade extrema que há atualmente", frisa.
Com esta mudança, temeu-se que o impacto no número de dadores fosse notório — mas posteriormente verificou-se que o problema era outro.
"Inicialmente tivemos ideia de que ia ter impacto. Era um dos grandes receios, tanto por parte da Associação como por parte da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução e dos centros de PMA", recorda Cláudia. "O que aconteceu foi que foram contactados os dadores que já tinham feito as suas dádivas, para saber se estariam disponíveis para abdicar do seu anonimato e a resposta acabou por ser positiva. Não em todos os casos, longe disso, mas foi positiva — mais nas mulheres do que nos homens", lembra.
Desta forma, "foi possível utilizar os gâmetas que tinham sido doados entretanto, até porque os centros não podiam parar os tratamentos e então estavam a tentar arranjar uma forma segura de garantir que não havia ilegalidade", frisa Cláudia.
Feitas as contas, o receio dos dadores era apenas um: não era claro o que era a identificação. "As pessoas pensavam que ficavam com uma espécie de ficha acessível a qualquer pessoa, o que não é o caso. Isso deixou as pessoas desconfortáveis, mas quando se percebeu que a identificação era o nome e que há determinadas condições para ter acesso a esse nome, as coisas ficaram mais tranquilas".
Ultrapassado um problema, veio outro à tona: o número de dadores no país é muito baixo, muito insuficiente. E isso também tem relação direta com os espaços onde podem ser feitas as doações.
A necessidade de promover doações
Atualmente, existem em Portugal três centros de colheita que realizam consultas de recrutamento de dadores de esperma e óvulos, localizados no Centro Hospitalar Universitário do Porto, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central. Além destes, pertencentes ao SNS, são vários os centros a nível privado.
"Neste momento estão a ser respondidos os pedidos de gâmetas de 2018, estamos com um atraso considerável"
Contudo, a distribuição geográfica pouco equilibrada é vista como um problema. "Só temos três centros onde é possível fazer essa doação, não há nada de Lisboa até ao Algarve. A zona sul está completamente desprovida de centros de PMA ou de bancos públicos", ressalta Cláudia.
"Às vezes somos contactados na Associação por pessoas que estão no Algarve ou no Alentejo e querem doar, mas não podem vir até Lisboa. É incomportável, porque é longe e a despesa é grande. No caso do homem é um bocadinho mais fácil, mas no caso da mulher implica várias deslocações até ao centro. E depois há a falta de sensibilização e a falta de resposta, porque as pessoas tentam contactar o banco público e não há a resposta esperada, não há um acompanhamento ou um registo".
"Apesar de as pessoas poderem doar no público, é difícil de chegar ao contacto com o SNS para fazer doações. Estamos a tentar perceber o porquê, aliás, neste momento estamos a trabalhar nisso. Começou hoje [18 de março] um grupo de trabalho de PMA, onde estão envolvidos cerca de 18 responsáveis para falar sobre essa e outras questões. Uma delas é a sensibilização da sociedade, alertar que são necessários gâmetas para ajudar estas pessoas que não podem ter filhos a não ser assim, com recurso a estes tratamentos", adianta.
Devido ao baixo número de doações, Cláudia aponta a principal consequência: a lista de espera que vai crescendo. "Neste momento estão a ser respondidos os pedidos de gâmetas de 2018, estamos com um atraso considerável. Primeiro responde-se a estes e a partir daí vai-se tentando responder aos que entretanto acumularam. Todos os meses há casais a precisarem de recorrer a doação para serem pais e é um sem fim de capacidade de resposta".
Neste sentido, em fevereiro de 2021 o governo criou um grupo de trabalho para avaliar o alargamento dos programas de acesso à procriação medicamente assistida e definir estratégias para promover doações ao Banco Público de Gâmetas, segundo um despacho publicado em Diário da República.
O despacho reconhece, por outro lado, que "ao longo dos anos tem crescido a consciência na sociedade sobre a importância da doação de gâmetas e ovócitos, ainda que a disponibilidade verificada de gâmetas no banco público esteja aquém das necessidades", defendendo a necessidade de "estimular a participação de novos candidatos a doadores, sempre observando que, enquanto doação inter vivos, deve ser sempre voluntária, altruísta, solidária e desinteressada".
"Trata-se de uma área em que o progresso científico é contínuo, com inúmeras implicações médicas, éticas, jurídicas e sociais na esfera jurídica dos interessados, mas também de terceiros, razão pela qual é indispensável refletir e problematizar sobre todas as questões inerentes ao recurso a métodos deste tipo", sustenta o despacho.
O documento reconhece, também, "a necessidade de aumentar capacidade de resposta dos serviços públicos", justificando a criação de um grupo de trabalho, para que, "após análise da situação, possa apresentar propostas no sentido de melhorar o acesso à procriação medicamente assistida, bem como a promoção de doações ao Banco Público de Gâmetas".
Também para promover as doações, foi criada a campanha Dá vida à esperança. "Escolheres doar os teus óvulos para alguém que precisa é um ato incrível e altruísta que dá esperança a milhares de mulheres que são incapazes de conceber naturalmente", pode ler-se em jeito de convite às mulheres. E o mesmo aplicado aos homens: "A doação de espermatozóides é um ato voluntário, solidário e altruísta que pode ajudar casais com problemas de fertilidade ou com doenças genéticas graves, mulheres sem parceiro ou casais de mulheres que desejem engravidar e constituir uma família".
2020, o ano em que o Banco Público de Gâmetas quase não recebeu dádivas
O ano passado, o Banco Público de Gâmetas não recebeu nenhuma dádiva de espermatozoides e houve apenas oito doações de ovócitos para tratamentos de procriação medicamente assistida.
"Em 2020, houve uma redução das dádivas de gâmetas a nível nacional, na ordem dos 20 a 30%. No entanto, a redução foi ainda mais significativa no banco público de gâmetas", disse à Agência Lusa Pedro Xavier, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR).
O especialista adiantou que as dádivas de ovócitos já eram poucas, cerca de 30, no banco público, mas em 2020 caíram para oito e no caso das doações masculinas não houve nenhuma. "Eu acredito que em 2021, da forma como as coisas estão a começar com este pico pandémico, não se possa melhorar muito a perspetiva a nível de doações e, portanto, é importante que estratégias de motivação, de angariação de dadores, porque só assim se pode inverter esta tendência", defendeu.
Esta redução também se observou nos centros privados, mas o decréscimo foi "muito mais acentuado" nos bancos públicos.
"Os bancos públicos de gâmetas estão inseridos em estruturas que também foram afetadas no seu funcionamento pela pandemia e, portanto, 2020 é um ano que não permite fazer a interpretação clara e objetivo do que se está a passar no que diz respeito à doação de gâmetas", adiantou.
No entanto, ressalvou, esta situação não é de agora: "já era um problema em 2019, em 2018 e 2017 e a disparidade de dádivas dos centros privados e no público já era muito grande. Portanto, a pandemia apenas veio agravar aquilo que já era um problema instalado”.
Esta situação vai levar ao agravamento das listas de espera que, antes da pandemia, já estava na ordem dos três anos para tratamentos com a utilização óvulos doados e de 2,5 a três anos com espermatozoides.
Também Cláudia aponta esta situação, agravada pela covid-19. "Os tratamentos, além de serem demorados, tinham já antes da pandemia uma lista de espera considerável. A chamada para consulta é relativamente rápida, pode demorar 2 a 4 meses, 5 meses no máximo. Mas para fazer o tratamento demora mais. Já era complicado e agora houve aqui paragem em alguns centros em março do ano passado e até junho. A atividade foi gravemente afetada devido às condições de segurança e isso adensou ainda as listas de espera", reflete.
E há ainda outro problema: a falta de atenção que por vezes se dá a esta temática, diz Cláudia. "A questão da infertilidade, apesar de ser uma doença reconhecida pela OMS, a nível nacional continua a não ser encarada como uma doença propriamente dita — e isso reflete-se na forma como as coisas são tratadas em cada unidade hospitalar, em como os centros de PMA funcionam em termos de equipa, orçamento e listas de espera", refere. "Ouvimos falar em listas de espera para cirurgias, mas não ouvimos falar em listas de espera para tratamento de PMA. Não fazem parte das estatísticas do Ministério da Saúde. E isso tem de mudar", conclui.
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