A informação foi avançada hoje à agência Lusa pelo encenador Daniel Gorjão, que dirige a peça sobre o texto do dramaturgo Samuel Adamson, que transpõe para teatro o argumento do premiado filme de Almodóvar, estreado há quase 25 anos, e para a qual escolheu a atriz trans Gaya de Medeiros, no desempenho da personagem Agrado. Em causa, porém, está o papel de Lola, mulher trans, ex-marido da protagonista.
A substituição de André Patrício, ator cisgénero que aparece quase no final na pele de Lola, ocorre na sequência do incidente de quinta-feira à noite, quando a atriz e performer travesti Keyla Brasil saltou da plateia para o palco, interrompendo André Patrício, quando este surge como Lola, exigindo-lhe que saísse de cena.
Com vários gritos de protesto, Keyla Brasil repetiu várias vezes a palavra “transfake”, interrompendo o espetáculo e obrigando ao fecho do pano da boca de cena.
“Transfake! Desce do palco! Tenha respeito por este lugar”, insistiu a travesti, cujo comportamento foi alvo de vários comentários e de vários atos solidários nas redes sociais Facebook e Instagram.
Na plateia do S. Luiz estavam mais ativistas trans, de apoio a Keyla Brasil, assim como no balcão, onde foram afixados cartazes, como mostra hoje a dupla Fado Bicha, com imagens e texto, na sua página da rede social Instagram.
“Como já assumi, tentei fazer um gesto de representatividade que não foi bem acolhido pela comunidade trans”, disse hoje à Lusa Daniel Gorjão, numa reação à polémica em torno do papel de Lola ser feito por um ator cisgénero.
Daniel Gorjão mostrou-se “solidário” com “a sua luta pelo acesso ao trabalho e pela representatividade” da comunidade trans, com quem “sempre” esteve, discordando, porém, da forma “violenta” como o fazem.
“Estou com a comunidade, sempre estive”, frisou, ressalvando que “a mudança faz-se mudando”, pelo que já esta noite vão ter mais uma atriz trans no elenco, a fazer o papel de Lola, no caso a atriz Maria João Vaz.
A “possibilidade” surge agora, prosseguiu Gorjão, “depois de todos os acontecimentos”, uma vez "que se reuniram condições”, com “o total suporte dos teatros produtores”.
“Foi isto que aconteceu. Nem tudo sempre é apenas uma questão de vontade. Como eu já tinha explicado, existem sempre condicionantes na criação de um espetáculo”, lembrou Daniel Gorgão à Lusa, lamentando os acontecimentos e sublinhando “nunca ter tido a intenção de ofender quem quer que seja”.
“E o meu trabalho também pode falar por mim nestas questões”, concluiu.
O protesto direto liderado pela ativista Keyla Brasil antecede uma manifestação marcada para domingo, em frente ao teatro, organizada por um movimento de luta pelos direitos LGBT, no último dia de apresentação da peça no S. Luiz, em Lisboa.
Antes da estreia, em declarações à imprensa, Daniel Gorjão já admitira que a escolha de corpos 'queer' para o elenco de "Tudo sobre a minha mãe" foi um "ato político".
Daniel Gorjão mostrou-se expectante que esse ato político se torne corrente e adquira normalidade, como disse à Lusa no final de um ensaio, antes da estreia da peça, no passado dia 12.
Na altura, Gorjão acrescentou que pegar, em 2023, numa peça que se estreou em 2007, a partir de um filme realizado em 1999, permitiu também levar para palco “outro olhar” sobre questões que já eram atuais no filme, mas que hoje ganham nova dimensão.
Por isso abriu um 'casting' e encontrou uma atriz 'trans' que pudesse fazer o papel de Agrado, figura antes desempenhada por uma atriz e por um ator 'gay', no filme e na primeira versão em palco.
“Não pelo objeto em si, porque não mexemos na história, mas pela forma como percecionamos o objeto à luz do que é a sociedade hoje em dia”, sublinhou então o diretor artístico.
"Neste momento, em que essa questão é tão aberta na nossa sociedade, e em que o acesso de minorias ao mercado de trabalho e a sua representatividade está tão na ordem do dia, foi muito importante abrir um 'casting' e encontrar uma atriz 'trans' que pudesse fazer o papel”, frisou.
Na altura, Daniel Gorjão já tinha dito que gostaria que o papel de Lola também fosse interpretado por uma mulher 'trans', o que “em termos de produção não foi possível”, numa referência a questões orçamentais.
Agora sublinha que, "se há possibilidade de o fazer, pois então vamos fazê-lo”, porque também é “nossa obrigação dar corpo e voz a outros corpos”, uma constante no trabalho realizado tanto no Teatro do Vão como no de programador.
O elenco de "Tudo sobre a minha mãe" conta agora com Sílvia Filipe, Maria João Luís, Gaya de Medeiros, André Patrício, Catarina Wallenstein, Filipa Leão, Filipa Matta, João Candeias Luís, João Sá Nogueira, Maria João Vicente, Maria João Vaz e Teresa Tavares.
"Tudo sobre a minha mãe" fica em cena na sala Luis Miguel Cintra, no teatro S. Luiz, em Lisboa, até domingo.
De 27 a 29 de janeiro, a peça estará no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre.
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