É com otimismo que Hélder Fernandes responde ao desafio colocado pelo Presidente da República, de erradicar a condição de sem-abrigo até 2023. Para o coordenador da equipa de rua da Associação Novo Dia, que acompanha cerca de 150 pessoas sinalizadas como sem-abrigo ou em risco de exclusão social, “a mensagem que é dada pelo Presidente é no sentido de termos uma visão mais otimista e de procurar novas metodologias e estratégias na erradicação da pobreza”.
“Acho que devemos acreditar que isso é possível e que, com o trabalho e com os esforços de todos nós, enquanto sociedade e enquanto profissionais, devemos ter essa visão de que é possível resolver os problemas”, prossegue.
Ainda que possível, o caminho é difícil, reconhece, já que esta “é uma problemática que não se resolve num dia ou num ano – é uma problemática que se arrasta no tempo”.
Quanto às novas estratégias, identifica uma prioridade: “No que toca à intervenção, a maior dificuldade é na questão laboral, que é essencial para garantir estabilidade, permitir ganhar competências e assegurar autonomização”.
Foi precisamente por essa via que Rui Silva, de 37 anos, encontrou o caminho para a reinserção social.
Depois de, em 2011, ter feito um tratamento de desintoxicação no continente, um processo de 15 meses, que o manteve por lá ainda “mais uns dois anos e tal”, uma vez que “só tinha amigos de consumos, não tinha amigos fora disso”, acabou por regressar a São Miguel.
“Tinha acabado de fazer tratamento à Hepatite C e não tinha condições nenhumas para a alimentação. Eles [Casa dos Manaias] é que me orientaram”, confessa Rui.
A Casa dos Manaias é um centro ocupacional da Câmara Municipal de Ponta Delgada, que serve a população sem-abrigo, garantindo refeições quentes, atividades de ocupação, como artesanato, carpintaria, agricultura ou informática e acompanhamento psicológico, e por onde passam, em média, cerca de 25 pessoas diariamente.
Agora, Rui frequenta a casa como monitor. Há três anos, começou a trabalhar para a câmara através de um programa de inserção socioprofissional, e foi integrado, no ano passado, no âmbito da regularização de vínculos precários da administração pública.
A sua experiência de vida é uma importante ligação aos utentes: “Eu sei aquilo que eles passam, aquilo que eles sentem, porque eu já passei o mesmo. É mais fácil eu lidar com eles. Dou apoio aos outros utentes por causa disso mesmo”.
“Essa casa, se não existisse, muita gente ia estar... tipo eu. Eu não tinha arranjado trabalho, não tinha tido alimentação, não tinha tido psicólogos, não tinha tido psiquiatras, porque eu não tinha dinheiro para pagar isso e eles dão isso tudo”, acrescenta.
Mas o processo é sinuoso, até nos casos de sucesso.
Margarida Pais, chefe de divisão de Ação Social da Câmara Municipal de Ponta Delgada, orgulha-se do caso de Rui: “Acho que o facto de ele estar aqui integrado, a trabalhar, estar ocupado, ter responsabilidades, isso tem-no ajudado imenso, e, para mim, acho que esse é um caso de sucesso, que deve ser frisado”.
Mas lembra que existe um potencial de recaída e que o monitor “também precisa de alguma ajuda, porque ainda não está a 100%, como é evidente”.
Quando se fala em prazos, Margarida não é capaz de se comprometer, já que “não será muito fácil erradicar o problema, isso nunca irá acontecer”.
“Agora está-se a trabalhar, e temos trabalhado para o objetivo de minimizar os riscos, reduzir os danos, ajudar as pessoas a ter uma vida mais digna (…), mas isso não quer dizer que a gente vai acabar com o problema”, considera.
No diagnóstico das prioridades que visam a inclusão social, a capacitação para o mercado laboral está no topo das prioridades.
Mas outro dos problemas apontados é a mendicidade. Em entrevista à agência Lusa, a secretária regional da Solidariedade Social, Andreia Cardoso, alertou que “a mendicidade não é uma solução”, um apelo também feito pelo presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada, José Manuel Bolieiro, que aponta para um “exercício de mendicidade mais por opção própria, do que por um estado de necessidade e de abandono”.
Mas ninguém defende o fim da mendicidade com tanto fervor como Conceição Correia, monitora da Casa dos Manaias, que considera que “a própria sociedade fomenta a desgraça das pessoas”.
“É isso que eu condeno. A sociedade. Pessoas que ganham tão pouco e, muitas vezes, a gente vai atrás e diz às senhoras para não lhes darem dinheiro, dizemos para eles fazerem tratamento e eles não querem e as pessoas dão-lhes dinheiro que vai para a droga”, exclama.
Com mais serenidade, Margarida Pais explica que “ainda existem algumas necessidades que precisam de ser respondidas, algumas pessoas que ainda são sem-abrigo, que praticam mendicidade, e que precisam de ser mais trabalhadas”.
“E nós precisamos de mais disponibilidade para ir junto deles, porque existe grande resistência da parte deles em aderirem às nossas propostas e virem connosco”, prossegue.
Os Açores são a região do país, segundo o INE, onde o risco de pobreza ou exclusão social é mais elevado.
Segundo o Governo Regional, "no que diz respeito ao número de sem-abrigo na rua, a expressão da pobreza mais severa, está circunscrita ao centro de Ponta Delgada".
"Atualmente pernoitam pontualmente na rua, porque não aceitam acolhimento, 17 indivíduos, perfeitamente identificados e acompanhados ao nível da alimentação, higiene pessoal, metadona e saúde. Em acolhimento institucional encontram-se 96 indivíduos", afirma o executivo, em resposta à Lusa.
Câmara de Ponta Delgada garante que a situação não é caótica
O presidente da Câmara de Ponta Delgada garantiu hoje que não se vive uma situação “caótica” em relação aos sem-abrigo no município, adiantando que “há mais um exercício de mendicidade por opção”.
“Nós temos muita pobreza – no país, somos a região que tem, proporcionalmente, mais pessoas e famílias apoiadas pelo Rendimento Social de Inserção, e isso é revelador -, mas, por outro lado, não temos essa lógica dos sem-abrigo tão caótica como acontece em Lisboa ou noutras cidades do continente”, assegura José Manuel Bolieiro.
Em declarações à Lusa, o presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada adianta que “há mais um exercício de mendicidade por opção própria, do que por um estado de necessidade e de abandono, isto é, por não haver soluções para eles”.
O autarca social-democrata acredita que, no maior concelho do arquipélago, e aquele onde o problema tem maior expressão, é possível acabar com a condição de sem-abrigo até 2023, como propõe o Presidente da República, “porque o estado atual não é calamitoso”.
“Atingir ou colocar uma meta para integrar ou eliminar a pobreza, que está reconhecida e sinalizada, eu penso que é possível. Isso não significa que não exista o risco de depois surgirem novos excluídos e nova pobreza”, já que o desenvolvimento acarreta, “por um lado, a vantagem de combater pobreza e exclusão, mas, por outro lado, o risco de gerar nova pobreza e nova exclusão”, afirmou.
A solução passa por “definir projetos de vida e de integração de pessoas através de uma empregabilidade dignificante”, um trabalho que deve ser feito através da “criação de uma rede de sinergias entre a região, as instituições e as autarquias”, e que “é para se ir fazendo sempre”, concluiu José Manuel Bolieiro.
Habitação é "fácil de solucionar", mas há variáveis "mais profundas"
A falta de habitação é “fácil de solucionar” nos Açores, garante a secretária regional da Solidariedade Social, ressalvando que a condição de sem-abrigo “está associada a outras variáveis”, “mais profundas e mais difíceis de resolver”.
Em declarações à Lusa, Andreia Cardoso afirmou que “a questão da habitação é a mais fácil de solucionar”, o que se nota, segundo a governante, “até pelo caminho que a região tem feito ao nível da disponibilização de espaços adequados para uma abordagem mais consistente de integração plena das pessoas na sociedade em que vivem”.
O problema, indicou, é que “a condição de sem-abrigo não está exclusivamente associada à ausência de uma habitação ou de um espaço condigno para viver – muitas vezes está associada a outras variáveis, que têm a ver com situações de dependência, quer de álcool, quer de drogas, problemas de saúde mental, ruturas familiares” e “estas questões são mais profundas e mais difíceis de resolver”.
“Por isso é que a questão de, até 2023, assegurar habitação às pessoas que atualmente estão na rua, não me parece uma meta difícil de alcançar. O que me parece difícil, sim, é a capacitação das pessoas acolhidas”, explicou.
Andreia Cardoso alertou ainda para um problema que “acontece em todo o mundo, e os Açores não são exceção”, que é o aumento da mendicidade em virtude do crescimento do turismo.
“É fundamental, também, manter a população informada sobre os recursos que existem na comunidade e sobre o facto de que, se aquelas pessoas reconhecerem, nas respostas que existem, uma boa resposta, têm soluções – a mendicidade não é uma solução”, afirmou.
Para combater a mendicidade, a Secretaria Regional da Solidariedade Social criou um Plano de Intervenção que garante o acompanhamento técnico das pessoas, num trabalho que é feito em cooperação com os centros ocupacionais RIZE, da Associação Novo Dia e da Casa dos Manaias, com a coordenação da Câmara Municipal de Ponta Delgada, e está a ser preparada uma campanha de sensibilização "com vista à dissuasão da mendicidade".
"No que diz respeito ao número de sem abrigo na rua, a expressão da pobreza mais severa, está circunscrita ao centro de Ponta Delgada. Atualmente pernoitam pontualmente na rua, porque não aceitam acolhimento, 17 indivíduos, perfeitamente identificados e acompanhados ao nível da alimentação, higiene pessoal, metadona e saúde. Em acolhimento institucional encontram-se 96 indivíduos", informa a Secretaria, em resposta enviada à Lusa.
Em resposta a este fenómeno, foi criado, em 2018, "um grupo de trabalho constituído pela Associação Novo Dia, ARRISCA, Cáritas de Ponta Delgada, Centro Social e Paroquial de S. José, Centro Social e paroquial de S. Roque, Associação Alternativa, Instituto de Segurança Social dos Açores, através da Divisão de Ação Social de Ponta Delgada, Esquadra da PSP de Ponta Delgada e Câmara Municipal de Ponta Delgada".
A ideia é refletir "sobre o fenómeno, sobre as causas e eventuais propostas de medidas dissuasoras da prática da mendicidade, com a particularidade de se ter envolvido nesta reflexão os cerca de 20 indivíduos que na altura praticavam a mendicidade e viviam em situação de sem teto".
Na região onde o risco de pobreza e exclusão social é o mais elevado do país, o executivo regional criou a Estratégia Regional de Combate à Pobreza e Exclusão Social, um documento com um período de implementação de dez anos - entre 2018 e 2028 -, mas que prevê planos de ação bianuais.
*Por Inês Linhares Dias, da agência Lusa
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