“Não saía de casa”. Disse, a seco, Carlos, guarda-redes internacional angolano. O “não saía de casa”, que assume frontalmente e sem rodeios, aconteceu quando se adivinhava o fim da carreira profissional de futebolista. Não estava preparado. “Queria estar sozinho. Não tinha vontade de fazer nada”, recorda ao SAPO24 durante a apresentação do estudo “Indicadores da Saúde Mental de Futebolistas Profissionais em Portugal”, levado a cabo pelo Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol.
“Estive no Moreirense, no Feirense, subi à I Liga, mas depois tive que sair do país, outra vez, porque não tinha clube”, recua o homem que defendeu as balizas do Boavista, Rio Ave e Steaua de Bucareste, entre outros clubes. “Via-me com capacidades para fazer o que mais gosto, só que era-me negado por causa da idade. Fui-me abaixo ao ser vetado na I Liga, as portas estavam fechadas e a prioridade era dada aos mais novos”, relembra. “E aí abanei. Não queria jogar mais”, soltou, admitindo que nunca recorreu a um psicólogo, embora seja hoje acompanhado pelo mesmo que ajudou André Gomes, atual jogador do Everton, então no Barcelona.
“Gastava dinheiro, em almoços e jantares, ia às compras com a minha filha. Dia após dia, cansava”, reconhece. “Levava a minha filha à escola, que é atleta e reparou. Estava a degradar-me”. Depois, fechou-se entre quatro paredes. De lá saiu com a ajuda da família e amigos. Destaca um: Jorge Andrade, antigo internacional português que vestiu a camisola do FC Porto.
“Ligava-me para eu ir... jogar à bola”, disse com um brilho nos olhos, dando razão à máxima de que o “melhor remédio é jogar à bola”, atira. “Era a melhor maneira e acabei por sair de casa”, admite o jogador, que ainda passou pelo Vilafranquense. Joga atualmente no Amarante, do Campeonato de Portugal, onde foi “bem recebido”. “Recuperei a alegria”, confessa, e enquanto isso prepara o “plano B”. “Estou a fazer o 12.º ano e vou seguir um curso de Gestão Desportiva”, anuncia.
Lutar contra o cancro com ajuda da família e do balneário
Nuno Pinto, lateral esquerdo do Vitória de Setúbal, foi diagnosticado com cancro. No dia em que recebeu a notícia, 8 de dezembro de 2018, jogou com o Benfica. À data, não a partilhou com o balneário.
Decidiu aceitar “interiormente a doença e os tratamentos”, recorda. Assumidamente católico, explica que a fé que tem “não mudou”. Confrontado com a situação em que se viu, reconhece que “é difícil deixar de jogar”. E acrescenta. “Não devíamos deixar de frequentar o estádio e o balneário”.
A “maior ajuda veio da família e dos filhos” e do “balneário”, que foi um dos “maiores suportes”. Não recorreu a ajuda de nenhum profissional, nesse caso, embora “IPO e o clube” tenham oferecido um psicólogo. “Queria ir vendo se precisava e entendi que não”, atira. Mas deixa uma ressalva: “Não é isso que eu defendo”.
Ajuda, sim, recebeu, mas por causa dos amarelos com que foi admoestado em campo. “Levava muitos amarelos por causa das minhas reações às decisões dos árbitros. Tive a ajuda de Rui Lança (coaching motivacional) e na época seguinte andei seis meses com quatro amarelos” sorri. “Não acredito em coincidências...” deixou escapar.
Mudanças de clube, lesões, ordenados em atraso e doenças: as causas de stress dos jogadores
Se Robert Enke, guarda-redes alemão que se suicidou em 2009, é o caso extremo da luta dos jogadores contra a depressão, Buffon, histórico homem da baliza da Juventus, assumiu ter tido ataques de ansiedade, assim como Mertesacker, do Arsenal.
A saúde mental dos desportistas é um tema cada vez mais debatido, mas em Portugal parece não ter, ainda, saído dos balneários. “Não é fácil os jogadores abrirem-se para falar destes temas. Os nossos delegados que percorreram o país desempenharam um papel fundamental”, assinala Joaquim Evangelista, líder do Sindicato, que falou a propósito do estudo que a organização levou a cabo junto de 217 jogadores da 1.ª e 2.ª Liga e do Campeonato de Portugal, 73% dos quais de nacionalidade portuguesa e com uma média de idades de 27 anos.
“A mudança de clube é um fator com enorme peso (43%) para o futebolista”, conclui o estudo. Os futebolistas indicam como principais acontecimentos de vida no último ano, “a mudança de casa (45,6%) e de clube (43,3%), uma lesão grave com paragem forçada (24,4%), morte de um familiar próximo (20,3%), perder o estatuto de jogo na equipa (20,3%), e uma mudança significativa do estilo de vida (19,8%)”. Dos que responderam, “35,8% dos jogadores tiveram mais de seis fatores stressantes na carreira — mudança/mobilidade, doença, salários, entre outros -, em comparação com a população geral”, lê-se no documento.
“Alertados pela FIFpro” e depois de “dois anos de trabalho”, este é um “diagnóstico para reestruturar o futebol em Portugal”, aponta Evangelista, que, no entanto, reconhece “não ter o mapa de quantos clubes da 1.ª e da 2.ª Liga recorrem a psicólogos nos departamentos de futebol”.
Por fim, Joaquim Evangelista fez notar que o Sindicato produziu um “booklet” (brochura) de saúde mental, um manual prático de informação sobre 11 situações que podem perturbar a saúde mental dos jogadores “que contou com a ajuda da Ordem dos Psicólogos” e que aborda questões como as “lesões, o match-fixing, passando pelo desemprego ou pela pressão por resultados”, fatores que provocam os distúrbios, como problemas alimentares, de sono, ou de ansiedade e depressão.
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