"Vejo abandono, esquecimento", começa por lamentar Wlodzimierz Szymaniak, polaco, reitor da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde e um dos maiores dinamizadores no arquipélago da história dos hidroaviões da companhia eternizada nos livros do também piloto Antoine de Saint-Exupéry.

"O mito da Aéropostale é conhecido universalmente e noutras paragens é aproveitado. Por exemplo no Senegal, em Saint-Louis, há um belo museu da Aéropostale e o famoso hotel 'La Poste' e restos da base. Tal como em Marrocos. E muitos turistas vão lá", explica, em entrevista à Lusa, enquanto contempla o que hoje existe da antiga hidrobase da companhia - que esteve na origem da criação da Air France -, em Calheta de São Martinho, Ribeira Grande.

A história da companhia, pioneira, remonta a 1918, em França, com a popularização da aviação mundial.

O empresário Pierre-George Latécoère reaproveitou os hidroaviões e os experientes pilotos da primeira guerra mundial para criar o primeiro e emblemático serviço aéreo postal - face às demoradas ligações marítimas -, inicialmente com rotas entre a Europa e África, até ao Senegal, e depois para a América do Sul, servindo o Brasil, Uruguai, Argentina e Chile.

Estes hidroaviões acabaram por utilizar o arquipélago de Cabo Verde para entregar o correio de dois continentes através do Atlântico e levaram à construção, em 1927, de uma base da Compagnie Générale Aéropostale na ilha de Santiago. Funcionou durante cerca de duas décadas, até ser abandonada, passando hoje quase desapercebida, além de uma simples e pequena placa que sinaliza a proximidade na estrada entre a Praia e Cidade Velha.

Através de artigos científicos, conferências internacionais, estudos ou exposições, Wlodzimierz Szymaniak e a Universidade Jean Piaget, cujo polo da Praia fica a cerca de 10 minutos de viagem da hidrobase, têm sido os maiores impulsionadores da divulgação da história local da Aéropostale. Uma história que Szymaniak ficou a conhecer muito antes de se radicar em Cabo Verde, ao ler os livros de Saint-Exupéry, o piloto que eternizou aquelas aventuras.

"Em todo o trajeto da Aéropostale havia três etapas muito difíceis. A primeiro era o deserto do Saara, muitos aviões caíram lá e ali nasceu o famoso livro 'O principezinho'. Outra etapa crítica eram os [cordilheira] Andes, também imortalizada pelos livros de Saint-Exupéry, e o Atlântico. Mas feliz ou infelizmente, Saint-Exupéry não participou como aviador na travessia do Atlântico, talvez por isso não temos nenhuma epopeia parecida com outros livros", lamentou.

Naquela pequena baía, com quatro a oito metros de profundidade e águas de cor azul turquesa, os antigos edifícios da estação de rádio e da torre de controlo, da base da grua que retirava os hidroaviçeos para manutenção em terra, colocando-nos nos carris da plataforma que também ainda existe, e as ruínas do hangar, da estação elétrica, das oficinas ou da casa dos pilotos partilham hoje o espaço com as cinco famílias que ali se instalaram, vivendo da pesca e algumas descendentes dos antigos trabalhadores da hidrobase.

"Imaginem aqui uma 'Marina Aéropostale', muitos velejadores seguramente ficariam seduzidos só pelo nome e as condições naturais são ideais", considerou Wlodzimierz Szymaniak, que ao mesmo tempo lamenta a falta de uma aposta clara na potencialidade turística daquele local, até pela proximidade à Cidade Velha, classificada como Património da Humanidade.

"Este lugar podia estar incluído nas rotas turísticas", assumiu, recordando que junto à baía está ainda afundado, a 20 metros de profundidade, um antigo navio a vapor, supostamente português e que apoiou a construção da base da Aéropostale.

Apesar do potencial e da história que reúne, o reitor lamenta que esteja classificado apenas como património municipal, desconhecido de todos e votado ao abandono, defendendo que "merecia mais".

"Escolheram esta baía maravilhosa, tranquila mesmo quando o mar está bravo, para o poiso dos hidroaviões. E que já tinha sido escolhida [no século 16] por Francis Drake. Antes do assalto à Cidade Velha [que provocou a destruição da primeira capital do arquipélago], desembarcaram aqui e foram tranquilamente a pé, até entrarem pelo lado da fortaleza [que protegia a Cidade Velha] onde não havia canhões", recordou.

Uma herança que Szymaniak continua a investigar e que, através de parcerias que envolvem a Universidade Jean Piaget e outras entidades internacionais e locais, como a Associação de Ecoturismo de Cabo Verde, tenta dinamizar. Inclusive com estudos dos seus alunos, como o de Cleiça Vieira Moreira, licenciada em Ciências da Comunicação, que desenvolveu em 2019 um projeto para potenciar turisticamente o local, inclusive criando uma página na Internet e sinalética.

"É completamente desconhecida e abandonada por nós, cabo-verdianos. Podia ser um potencial turístico, como a Cidade Velha", explicou a aluna, assumindo que até ser desafiada por Szymaniak, reitor e seu orientador, simplesmente desconhecia o local, apesar de morar na mesma localidade.

"Nós, cá em Cabo Verde, não sabemos quase nada desta aldeia", lamentou.

Em 1981, numa homenagem à história do local, a Air France chegou a colocar uma placa, que permanece como uma das poucas explicações sobre os edifícios ainda de pé.

"Esta base nunca teve anos dourados. Criou expetativas em 1927/1928, mas depois caiu em desuso, porque a partir de 1933 já conseguiam fazer a travessia regular com aviões normais", recordou o reitor. Funcionou como estação de rádio para os aviões da companhia aérea até meados dos anos 1940, os quais, com autonomia reforçada, já ali não aportavam.

Abandonada, à sua entrada, a base do farol que ali funcionava, montado numa rocha no mar, ainda recorda as aventuras de então, quando a aproximação dos hidroaviões era feita com uma bússola e "um mapa em cima dos joelhos".

"Eram corajosos. E muitos pilotos da Aéropostale não chegaram aos 30 anos de idade. Saint-Exupéry morreu com 45 anos e era considerado velho", observou Szymaniak.

Atualmente, e depois de vários projetos apontados para o local que ficaram por concretizar, a esperança passa pela recuperação do espaço na instalação de um megaempreendimento turístico nas proximidades, incluindo um campo de golfe.

Até lá, Szymaniak garante que a universidade vai continuar a tratar do 'vizinho' e enquanto aguarda pela nova vida daquele local, confessa que com 19 anos de Cabo Verde, já se sente mais crioulo que polaco: "Sinto-me em casa em Cabo Verde".

PVJ // VM

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