O ditado diz que olhos que não vêem, coração que não sofre, e a estatística toma esta verdade por boa, quase que nos protege de entendermos a realidade.
Este número - 2,4 milhões - é esmagador e inadmissível e conta histórias reais. Deste número, 18,8% refere-se a crianças ou jovens, menores. Quantos são? 451 mil, diz quem sabe de números. Quase meio milhão de menores que vivem sem o básico.
Ninguém se pode orgulhar destes números e tão pouco das histórias envolvidas: pessoas que não conseguem emprego, que perderam o emprego, que abdicaram dos estudos para ajudar os agregados familiares. Sim, Mário Centeno diz-nos todas as semanas que estamos muito melhores.
Uma das coisas boas dos números é que podem ser interpretados e virados ao contrário. Podem mesmo ser atirados como areia para os olhos. Estes números, de um inquérito que começou em 2004 com entrevistas pessoais, prova que temos muito para andar, porque, caramba, não podemos ser festa e glamour, não podemos ser cumpridores face à Europa e as suas regras, e depois descartar esta informação concreta sobre a forma como as pessoas vivem. Pessoas para quem o rendimento de inserção social chega? Não chega? Encaixam nos critérios, não encaixam?
Com esta realidade bem viva na minha cabeça, fui hoje à farmácia e assisti a uma cena de partir o coração. Um casal já com alguma idade não tem como pagar a medicação toda e a senhora, vestida de forma muito modesta, diz: "Não faz mal, este mês tomas tu, para o próximo mês tomo eu".
Saíram dali com a dignidade de quem enfrenta todos os dias um limiar de indignidade. Podia escrever mais vinte linhas sobre isto, mas não adianta. Este mês, a saúde do marido é a que vale. No próximo mês é a dela.
Fala-se muito de acção e responsabilidade social. Fazem-se muitos inquéritos, até se fazem comissões parlamentares todas as semanas, parece-me. Há uma queixa constante face ao sensacionalismo de alguns órgãos de comunicação social que, afinal, espelham o que é o país, para o bem e para o mal. A pobreza e a exclusão social são questões apartidárias, e precisam de ser combatidas. Com eficácia. Não através de um quadro com curvas ascendentes e descendentes que provam que estamos muito melhor.
Podemos estar muito melhor, mas não estamos bem.
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