Na última dúzia de anos tivemos relatos de execuções cuja autoria teve engenho para não ficar imediatamente devassada. Foi o que aconteceu com o envenenamento fatal, em 2006, em Londres, de Alexander Litvinenko, um ex dos serviços secretos de Moscovo. Ou a tentativa, já neste ano, de eliminação de Sergei Skripal, ex-oficial da inteligência militar russa. Em ambos os casos houve recurso a substâncias químicas, parece óbvio que ativadas por atuais agentes Moscovo. Mas com rasto difícil de detetar, até mesmo pelo muito experiente MI-5 britânico.

Se Khashoggi tivesse sido abatido a tiro numa ruela do Grande Bazar de Istambul, não deixaríamos de pensar na alta probabilidade de um crime político encomendado pelo novo poder na ditadura teocrática de Riade. Haveria que investigar quem executou e a mando de quem, mas o mais provável seria que a história ficasse diluída no rol diário de malvadezes.

A verdade sobre a eliminação de Khashoggi ainda tem muito por definir, mas os relatos que parecem mais coerentes apontam para um crime macabro, praticado no interior de um lugar que se esperaria fosse de segurança e respeitável, como deve ser um Consulado Geral.

Vale anotar os factos que estão confirmados: às 13:14 de terça-feira, 2 deste outubro (conforme a inscrição nas imagens divulgadas pela TRT World, canal turco em língua inglesa), Jamal Khashoggi entrou no consulado saudita em Istambul. Cumpria atempadamente a recomendação que lhe foi feita dias antes para naquele dia, às 13:30, ir tratar os documentos que tinha pedido para o casamento nos dias seguintes.

Nessa mesma manhã dois aviões privados tinham aterrado no aeroporto de Istambul. Desembarcaram 15 homens, vestidos de negro, poderiam ser visitantes como quaisquer outros, mas a análise da expressão deles nas imagens das câmaras do aeroporto deixa-nos a pensar que não seriam inocentes homens de negócios. De facto, aquele desembarque marca o início de uma séria intriga internacional do nosso tempo.

Esses 15 homens seguiram em duas “vans” Mercedes, com vidros escuros, do aeroporto para o consulado saudita. Chegaram lá antes de Jamal Khashoggi.

Essas duas “vans” voltaram a entrar no parque fechado do consulado a meio da tarde. Saíram, presume-se que com os 15 homens, a meio dessa tarde. Voltaram ao aeroporto e tomaram os mesmos aviões que de manhã os tinham transportado.

No momento em que estes 15 saíram do consulado já a noiva, que tinha ficado à espera no carro, dava o alerta para a ausência de Khashoggi: tinha entrado às 13:14, tinham passado quase três horas e ele não saía.

Às primeiras perguntas já de autoridades turcas, o consulado declarou que ele tinha saído do consulado. Há câmaras vídeo que captam todo o perímetro do edifício consular. Fica demonstrado que não saiu a pé. Sabe-se agora, tal como se suspeitou logo nos dias seguintes, que pode ter saído, mas com o corpo desmembrado, numa daquelas carrinhas Mercedes.

O jornal The New York Times citou entretanto uma fonte dos serviços secretos turcos: foi possível, com sofisticados recursos digitais, chegar a registos do que aconteceu no interior do consulado: Khashoggi foi torturado e seu corpo desmembrado com uma motoserra.

Não será especulação deduzir que aqueles 15 homens são de facto um esquadrão da morte, com missão bem definida: eliminar o jornalista que tinha sido atraído aquela instalação do estado saudita na Turquia.

Khashoggi era um jornalista muito bem informado e com muitos acessos em todo o Médio Oriente. Tinha tido portas abertas na casa real saudita. Não se tornou dissidente mas tinha passado a assumir críticas a Mohamed bin Salman (conhecido como MBS), aos 33 anos o filho favorito do velho rei Salman – MBS é filho da terceira e última esposa do rei, e tem três irmãos mais velhos.

Salman mostrou sempre que MBS era o preferido dele, tanto que o nomeou ministro da Defesa quando tinha apenas 29 anos – o mais jovem ministro da Defesa em todo o mundo. Logo no ano seguinte, MBS foi posto à frente do poderoso monopólio estatal de petróleo e da agência saudita de investimentos. O príncipe que ultrapassa os irmãos para ser rei assumia poderes sem precedentes. Hiperativo, ao mesmo tempo que anunciava reformas modernizadoras da economia e dos costumes na Arábia Saudita, lançou uma desastrosa campanha militar no vizinho Iémen, montou um boicote ao Qatar e está associado ao rapto do primeiro-ministro Hariri, do Líbano, que quis submeter. MBS conduziu a aproximação saudita a Israel, pôs-se nos braços da família Trump e radicalizou a hostilidade ao Irão. É reconhecida a inteligência de MBS, mas há quem lhe veja traços paranoicos. MBS destroçou o consenso que sustentava os equilíbrios dentro da extensa família real: promoveu acusações de corrupção a vários dos familiares e outros poderosos e mandou prendê-los, embora fechados num hotel de cinco estrelas.

Khashoggi não sendo um dissidente era crítico dos métodos de MBS. Escreveu que ele estava a abrir uma era de “medo, intimidações e prisões”. Deduz-se que ao escrever isto estava a assinar a sentença de morte. Faltou-lhe acrescentar que é um déspota que encomenda assassinatos à maneira dos ditadores.

A ação do esquadrão da morte no consulado saudita só pode ter sido realizada com aval do topo do poder saudita. É sabido que MBS tem na mão todo o poder. A responsabilidade de MBS neste macabro crime político é evidente.

No entanto, ao longo destas três semanas com várias versões, o regime saudita que começou por dizer que Khashoggi tinha saído do consulado pelo seu pé, agora procura arranjar bodes expiatórios no aparelho saudita de segurança.

Toda a narrativa que Riade tem arranjado e que Trump se apressa a subscrever é, de facto um insulto à inteligência.

Quando o presidente do país que se afirma farol da liberdade no mundo foge a criticar, e até aconchega, abusos praticados por regimes como o da Arábia Saudita, Israel, Egito, Rússia, Filipinas, Coreia do Norte e outros mais, está a ser dado o inquietante sinal de que entramos num tempo de vale tudo.

Neste caso do assassinato de Khashoggi, ao menos, que a Europa se não deixe levar pelos interesses do petróleo e dos investimentos sauditas e que, em defesa dos princípios, assuma a condenação do crime com medidas punitivas ao regime. Merkel já mostrou como é estadista ao mandar parar a venda de armas aos sauditas. Talvez o congresso dos EUA, conforme a tradição democrática do país, ainda venha a obrigar Trump a deixar de ser cúmplice da repugnante ditadura teocrática de Riade. Mas é pouco provável.

A TER EM CONTA:

Um apelo hoje no The Guardian: no tempo de MBS e de Trump , os jornalistas precisam do apoio dos leitores.

A opinião no The New York Times sobre “a triste escolha” do Brasil.

Análise no El País: o problema no Real Madrid não é Lopetegui, é Cristiano Ronaldo.

Será que o homem ajoelhado para fotografar é mesmo Robert Capa?

Duas primeiras páginas escolhidas hoje: esta e esta.