O dia em que o terror transbordou para a Polónia

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Tornou-se infelizmente hábito quotidiano receber notícias de mortes e atrocidades cometidas na Ucrânia, esse que tem sido o grande palco da barbárie desde o início da invasão russa em março deste ano.

O que não tem sido comum é saírem notícias de última hora de um outro país que não a Rússia ou a Ucrânia a ver a sua integridade territorial afetada pelo conflito. Mas foi o que aconteceu hoje, com notícias de que a vila polaca de Przewodów, localizada junto à fronteira com a Ucrânia, foi alvo de engenhos explosivos durante a tarde, resultando na morte de duas pessoas.

Dado que a Polónia é um país membro da NATO, uma potencial agressão a si cometida poderia significar uma escalada sem retorno do atual conflito, mas antes de se entrar nessas considerações, convém perceber que houve outras ações durante o dia que precipitaram este incidente.

Poucos dias depois da retirada de Kherson — recorde-se, a primeira grande cidade ucraniana a ser ocupada desde o início da guerra —, a Rússia disparou uma série de mísseis contra Kiev e outras cidades ucranianas nesta terça-feira.

Segundo o exército ucraniano, a Rússia lançou uma centena de mísseis, "do Mar Cáspio", da "região [russa] de Rostov" e "do Mar Negro", principalmente "contra infraestruturas energéticas", o que, segundo a presidência ucraniana, deixou a rede elétrica em todo o país em estado crítico.

Os últimos bombardeamentos indiscriminados da autoria da Rússia datavam de 10 e 17 de outubro, tendo como alvo a infraestrutura de energia no início do inverno. O Kremlin alegou então que se tratava de retaliação pela destruição parcial da ponte que ligava a Rússia à península da Crimeia.

Ao mesmo tempo que estes bombardeamentos foram ocorrendo, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, pediu que as potências industrializadas e emergentes reunidas em Bali para a cimeira do G20 se pronunciassem sobre os atentados russos. 

O tema teria, infelizmente, ficado por aqui, somando-se a mais um dia de violência na Ucrânia. Mas os mísseis caídos na Polónia viraram a comunidade internacional do avesso, dado o risco de arrastar um membro da NATO diretamente para o conflito.

Entenda-se que, numa fase inicial, ainda não era certa a proveniência dos mísseis, apesar das primeiras notícias a circular citavam um alto funcionário dos serviços de informações dos Estados Unidos que apontava a responsabilidade à Rússia.

A Polónia e os EUA, contudo, não foram tão perentórios numa fase inicial:

  • O Governo polaco, que convocou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança para avaliar o caso, exortou os meios de comunicação a não publicarem “informações não confirmadas”.
  • Já os EUA, tanto através do Pentágono como da Casa Branca, evitaram entrar em especulações sobre o que realmente aconteceu na Polónia. O porta-voz do Departamento de Defesa dos EUA, em conferência de imprensa, adotou uma postura cautelosa, dizendo que “ainda estamos a apurar o que aconteceu para apurar os factos”. “Quero ser muito cuidadoso quanto a avançar com hipóteses nesta fase, até se determinar o que aconteceu”, sublinhou Vedant Patel.

Em contraste, os vizinhos da Polónia não só manifestaram publicamente solidariedade com o país, como, de forma mais ou menos explícita, apontaram o dedo à Rússia. A Ucrânia, sem surpresas, acusou o Kremlin de cometer um “ataque à segurança coletiva”, provocando uma “escalada muito significativa” no conflito, como disse Volodymyr Zelensky.

“Quanto mais a Rússia sentir impunidade, mais ameaças haverá para qualquer um que esteja ao alcance dos mísseis russos. Para disparar mísseis em território da NATO. Este é um ataque de mísseis russos à segurança coletiva! Esta é uma escalada muito significativa. Devemos agir”, salientou o chefe de Estado ucraniano numa mensagem na rede social Telegram.

Mais tarde, a Polónia acabou por confirmar, através de perícias no local, que os mísseis são de fabrico russo, descartando-se assim a hipótese de serem engenhos ucranianos que acidentalmente caíram em território vizinho.

No entanto, não se sabe ainda se os explosivos foram enviados de propósito, se por engano ou se foram derrubados por sistemas de defesa ucranianos. O que é certo é que o ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Zbigniew Rau, convocou o embaixador russo na Polónia de urgência para exigir “explicações detalhadas”.

A Rússia, de resto, negou responsabilidades, falando antes numa “provocação deliberada para escalar a situação”. Num comunicado, o Ministério da Defesa da Federação Russa acrescentou que os destroços nas fotografias divulgadas por vários meios de comunicação ocidentais “nada têm a ver com os meios de destruição russos”. “Nenhum ataque foi realizado contra alvos perto da fronteira entre a Polónia e a Ucrânia através de meios de destruição russos”, esclareceu o Ministério.

O caso não vai ficar por aqui, até porque a Polónia convocou os embaixadores dos membros da NATO para uma reunião esta quarta-feira. E é aí que está a chave dos próximos passos, porque o estado polaco desencadeou esta reunião baseando-se no artigo 4.º dos estatutos da Aliança Atlântica.

O Artigo 4.º, de acordo com o tratado assinado pelos membros da NATO, indica que "as Partes consultar-se-ão sempre que, na opinião de qualquer delas, estiver ameaçada a integridade territorial, a independência política ou a segurança de uma das Partes".

Ora, dada a queda dos mísseis alegadamente russos em território da Polónia, que é membro da NATO, este estado pode invocar ter sido ameaçada a sua integridade territorial para convocar os restantes aliados.

Importa distinguir este artigo do artigo 5.º da NATO, que especifica que um ataque deliberado a um membro da aliança significa um ataque a todos os parceiros, merecendo assim uma resposta proporcional da sua parte.

"As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a acção que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte".

"Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque serão imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais", lê-se ainda neste artigo do tratado.

Por outras palavras, ficamos em suspenso para já, porque esta ação da Polónia não significa guerra aberta da Rússia com os membros da NATO, mas também não significa que esta vá ser evitada. O campo minado rumo à paz na Europa ficou um pouco mais difícil de atravessar.

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