Espanha e Escócia colocam-se na dianteira dos direitos trans, mas há quem queira reverter o processo

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

A partir de hoje, há mais a unir Espanha e Escócia do que começarem com a mesma letra e fazerem parte do mesmo continente.

Ambos os países aprovaram — ao fim de longos e árduos processos — legislação que autoriza a autodeterminação de género. Isto recorde-se, não significa uma mudança de sexo, mas sim do género com o qual cada pessoa se identifica.

No entanto, em ambos os casos, a legislação dividiu por vezes a mesma área política e pode ainda ser barrada de se oficializar. Vamos por partes.

Escócia e a sombra de Westminster

No caso escocês, ao fim de três dias de intensos debates no Holyrood, o parlamento da Escócia, foi aprovada uma polémica lei que auxilia a transição de pessoas transgénero, agora autorizada a partir dos 16 anos — antes era a partir dos 18.

Aprovada por 86 votos a favor e 39 contra, graças à maioria do Partido Nacional Escocês (SNP, na sigla em inglês), a nova lei elimina a exigência de um diagnóstico psiquiátrico para solicitar o certificado de reconhecimento de género. Além disso, o texto reduz de dois anos para três meses o período que a pessoa deve viver com o género indicado, com prazo adicional de três meses de reflexão.

A certidão pode ser obtida após seis meses, de acordo com a lei, defendida pelo Executivo pró-independência, chefiado pela primeira-ministra Nicola Sturgeon. "Sou feminista. Farei tudo que puder para proteger os direitos das mulheres enquanto estiver viva", declarou a chefe do governo escocês. "Mas também acredito que é uma parte importante das minhas responsabilidades tornar a vida um pouco mais fácil para as minorias estigmatizadas no nosso país", continuou.

O líder do Partido Conservador escocês, Douglas Ross, ressalvou o risco de que "homens predadores tentem explorar as lacunas" do texto. No entanto, o governo destaca as garantias previstas na lei, que criminalizam qualquer pedido falso.

Os conservadores escoceses não foram os únicos a levantar objeções. Após a votação, o governo britânico — que tutela hierarquicamente a Escócia, não obstante o seu estatuto autónomo — anunciou ainda antes da votação que considerava apresentar um recurso contra o projeto perante o Supremo Tribunal do Reino Unido, alegando que a medida pode criar disparidades legislativas em todo o território.

"Compartilhamos as preocupações de inúmeras pessoas a respeito de alguns aspectos do texto, em particular da segurança para as mulheres e as crianças", afirmou Alister Jack, o ministro responsável pela Escócia no governo de Westminster. Algumas das pessoas a que Jack aludiu incluem o grupo liderado pela escritora J.K. Rowling, frequentemente acusada de transfobia.

Os críticos do texto escocês consideram a lei um perigo para as mulheres, sob o argumento de que homens podem assim passar a ter acesso, mais facilmente, aos espaços reservados às mulheres. 

Fruto da divisão na sociedade, após o resultado da votação, tanto se ouviram gritos de “vergonha” como aplausos pela tomada de posição nas bancadas do parlamento escocês.

Espanha. A lei que dividiu a maioria governativa e ainda falta ir ao Senado

O parlamento espanhol aprovou hoje uma nova lei que permite a mudança de género no registo civil a partir dos 12 anos sem necessidade de pareceres médicos, sendo que a partir dos 16 basta a vontade da própria pessoa. No entanto, antes de entrar em vigor, tem ainda de ser confirmada pelo Senado (câmara alta do parlamento).

Com a nova lei, será possível mudar de género no registo civil em Espanha, a partir dos 12 anos, sem parecer médico, mas será necessária autorização de um juiz para os casos entre os 12 e os 14 anos e dos pais ou tutores legais entre os 14 e os 16 anos. Para maiores de 16 anos, bastará a própria vontade de quem quiser fazer a alteração.

No entanto, em todos os casos, deixam de ser necessários pareceres médicos e provas de qualquer tratamento ou terapia hormonal. Conhecida como lei da "autodeterminação de género", o diploma pretende retirar a carga de patologia à mudança de género.

"As pessoas trans [transexuais] não precisam de tutelas nem de testemunhas que lhes digam quem são. As pessoas trans são quem são e a nossa obrigação como Estado é reconhecê-las e proteger os seus direitos", afirmou a ministra da Igualdade, Irene Montero, no debate parlamentar final da nova legislação, que decorreu na quarta-feira.

A nova lei proíbe também cirurgias de modificação genital até aos 12 anos em crianças que nasçam com características físicas dos dois géneros (crianças intersexuais ou hermafroditas). Por outro lado, consagra o direito de lésbicas, bissexuais e transgénero com capacidade reprodutiva acederem às técnicas de reprodução medicamente assistida e permite a filiação dos filhos de mães lésbicas e bissexuais sem necessidade de casamento.

A nova legislação demorou mais de um ano a ser aprovada e pelo caminho dividiu o Partido Socialista (PSOE), que governa Espanha em coligação como a plataforma de extrema-esquerda Unidas Podemos. Como resultado, o texto recebeu 188 votos a favor, 150 contra e sete abstenções.

Tal como na Escócia, a lei contou também com a oposição de algumas associações feministas, consideradas representantes de um "feminismo clássico". Como a ala crítica do PSOE, estas associações condenaram a possibilidade de mudança de género só com base na manifestação da vontade da pessoa que o pretende fazer por considerarem que isso pode prejudicar os avanços alcançados pelas mulheres na luta pela igualdade de direitos.

Para estes movimentos, ser mulher não é uma identidade subjetiva e o feminismo é a luta contra a discriminação de uma identidade objetiva, baseada no género biológico.

"Quando o género é reivindicado sobre o sexo biológico (...) parece-me um retrocesso” para as mulheres, avaliou a ex-número dois do governo Sánchez, a socialista Carmen Calvo, em entrevista ao jornal El Mundo em setembro. "O Estado tem de responder às pessoas trans, mas o sexo não é voluntário, nem opcional", acrescentou.

Em perpetuação destes temores, os socialistas apresentaram uma emenda para estender a necessidade de autorização judicial para jovens de 14 a 16 anos. A proposta foi rejeitada e aceitando a sua derrota, o partido de Sánchez votou a favor do texto como estava. A exceção foi Carmen Calvo, que quebrou a disciplina de voto do partido para se abster, segundo reportou a imprensa.

A nova lei foi também aprovada com os votos dos partidos da esquerda e nacionalistas bascos, catalães e galegos, além de outras formações mais pequenas.

Votaram contra os partidos da direita, que invocaram não ter havido no parlamento um processo legislativo suficientemente tranquilo e duradouro para permitir todos os debates e audições que seriam necessários. Estes partidos referiram ainda a divisão social em relação à legislação e as críticas de associações de pais, juristas e profissionais de saúde, que consideraram não haver segurança e garantias suficientes na lei, sobretudo, em relação aos menores de idade.

A deputada do Partido Popular (PP), Rosa Romero Sánchez, alertou para "o impacto nos menores", que estão em "etapas em que são muito vulneráveis e muito influenciáveis". "Pretendem deixá-los sozinhos, sem acompanhamento", afirmou a deputada, dirigindo-se à esquerda, referindo também que a legislação permite "terapias irreversíveis" de que os adolescentes poderão um dia mais tarde arrepender-se.

Em resposta a estas críticas, Irene Montero, que faz parte do Unidas Podemos, agradeceu a luta e o contributo para a elaboração da lei das associações de pessoas transexuais e de profissionais de saúde, além de que disse que "as mulheres trans são mulheres" e falou em "transfobia" durante o processo de debate da lei.

O processo pode ter chegado a um ponto fulcral, mas há feridas que ficaram abertas. Esta lei "simboliza a maior derrota legislativa do PSOE contra o Unidas Podemos nesta legislatura" desde a formação do executivo no início de 2020, escreveu o jornal conservador El Mundo. Por sua vez, o El País, de centro-esquerda, fala de "uma das leis que mais tem desgastado o governo de coligação".

Em protesto contra a intenção de modificação do projeto de lei, a militante LGBTQIA+ e primeira mulher trans eleita deputada regional em Espanha, Carla Antonelli, deixou o Partido Socialista em outubro. "Vimos um setor do PSOE e do feminismo passar de defensores dos direitos da minoria trans ao violento boicote da nossa própria existência", disse Antonelli na quinta-feira, em um artigo publicado no El País.

E Portugal?

A parte de países como a Dinamarca ou a Argentina, Portugal já tinha aprovado uma lei de autodeterminação de género.

A lei n.º 38/2018 veio estabelecer o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, tendo sido aprovada em 12 de julho de 2018 e publicada em agosto seguinte. Esta iniciativa possibilitou a mudança de sexo e nome próprio no Cartão de Cidadão a partir dos 16 anos e sem relatório médico.

No entanto, o Tribunal Constitucional declarou-a inconstitucional em 2021, não por discordar do seu conteúdo, mas porque houve uma violação da competência exclusiva do parlamento para legislar sobre a matéria.

Este é um dos temas que têm vindo a ser adiados na atual legislatura, sendo que o BE já tinha avançado com um projeto de lei para colmatar essa situação, mas com a dissolução do parlamento no final do ano passado esse foi um dos diplomas que caiu, tal como os do PS e do PAN sobre o mesmo tema.

Os novos projetos deverão ser discutidos na Assembleia da República em 2023.

*com agências

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