Quando o século XIX volta para atormentar o século XXI. Depois da Ucrânia e da Palestina, é a Guiana um novo foco de tensão internacional?

Rute Sousa Vasco
Rute Sousa Vasco

Este domingo, 3 de dezembro, a Venezuela realiza um referendo em que pergunta à população do país se concorda - ou não - com a incorporação de 70% de um país vizinho, a Guiana, no seu território. O território em causa chama-se Essequibo e tem a particularidade de ter as maiores reservas de petróleo ‘per capita’ do mundo - entre várias outras riquezas naturais, incluindo o ouro que no século XIX esteve na base da disputa entre a Venezuela e o Reino Unido. Nos últimos anos foram descobertas novas reservas petrolíferas, 46 no total, a mais recente aconteceu no mês passado, acrescentando pelo menos onze mil milhões de barris às reservas da Guiana, mais do que o Koweit ou os Emirados Árabes Unidos.

Se a disputa por este território não vem de hoje, a descoberta de novas áreas de extração petrolífera também não. Em 2015, a petrolífera americana ExxonMobil tinha identificado já uma nova reserva a que se somam as mais recentes e a respetiva concessão pela Guiana a oito empresas petrolíferas estrangeiras.

A Venezuela é, ela própria, o país com as maiores reservas comprovadas do mundo e, se somasse as da Guiana, ficaria numa posição reforçadamente privilegiada num mundo que, apesar da urgência na mudança de padrão energético, continua a mover-se fundamentalmente a petróleo.

Do ponto de vista histórico, a disputa por este território da Guiana - são cerca de 160 mil quilómetros quadrados, o que equivale a uma área superior à da Grécia - tem mais de 100 anos. A região de Essequibo aparece nos mapas da Venezuela como “zona em reclamação” e está sob mediação da ONU desde 1966, quando foi assinado o Acordo de Genebra.

Mas a história é mais antiga.

  • Em 1777, o Império Espanhol funda a Capitania Geral da Venezuela que inclui Essequibo.
  • Em 1811, a Venezuela torna-se independente da Espanha e Essequibo passa a fazer parte da nova república.
  • Em 1814, o Reino Unido adquire a Guiana Inglesa, com cerca de 51.700 km², através de um tratado com os Países Baixos que não define a sua fronteira ocidental (onde se localiza a Venezuela).
  • Em 1840, o Reino Unido nomeia o explorador Robert Schomburgk para definir essa fronteira. É então inaugurada a Linha Schomburgk, uma rota que ocupava quase 80.000 km² adicionais.
  • Em 1841, começa oficialmente a disputa do território
  • Em 1886, é feita uma nova versão da Linha Schomburgk, incluindo mais território.
  • Em 1995, os Estados Unidos intervêm afirmando que a fronteira foi ampliada de "maneira misteriosa" e recomendando que a disputa seja resolvida em arbitragem internacional.
  • O que acontece em 1899, sendo emitida a Sentença Arbitral de Paris com decisão favorável ao Reino Unido,e ficando o território oficialmente sob domínio britânico.
  • Pouco depois da segunda guerra mundial, em 1949, surgem evidências que apontam para a cumplicidade entre os delegados britânicos e o jurista Friedrich Martens para decidir contra a Venezuela na sentença arbitral de 1899.
  • Passaram-se quase duas décadas, quando, em 1966, o Reino Unido, três meses antes da independência da Guiana, reconhece a reivindicação da Venezuela e assina o acordo de Genebra tendo em vista a obtenção de uma solução negociada.

E até 2015, o tema ficou em suspenso. Tudo mudou com a descoberta de petróleo em 2015, a que acrescem as descobertas recentes.

Essequibo
Essequibo Aerial view showing the Essequibo River running in a section of the Amazon rainforest in the Potaro-Siparuni region of Guyana, taken on September 24, 2022. Despite the dispute with Guyana, the Esequibo region is a destination of migration from Venezuela. Guyana defends a limit established in 1899 by an arbitration court in Paris, while Venezuela claims the Geneva Agreement, signed in 1966 with the United Kingdom before Guyanese independence, which established the basis for a negotiated solution and ignored the previous treaty. But the Guyanese government is promoting a process in the International Court of Justice (ICJ) to ratify the current borders and put an end to the dispute. (Photo by Patrick FORT / AFP) créditos: AFP or licensors

A partir daí o governo venezuelano liderado por Nicolás Maduro tira mesmo da gaveta a "área sob reclamação" e organiza agora um referendo para legitimar as suas pretensões.

O que vai ser perguntado aos venezuelanos no referendo deste domingo?

  1. Rejeita a fronteira atual?
  2. Apoia o acordo de Genebra de 1966?
  3. Concorda com a posição da Venezuela de não reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça?
  4. Discorda do facto de a Guiana utilizar uma região marítima sobre a qual não há limites estabelecidos?
  5. (e a mais importante) Concorda com a criação de um estado da Guiana Essequiba com um plano para a população desse território que inclua a concessão de cidadania venezuelana, incorporando esse estado no mapa do território venezuelano?

Para o povo venezuelano, a disputa do território é uma espécie de questão nacional e, segundo analistas, é expectável que haja união na reclamação que está na base do referendo. Ou seja, é expectável uma vitória do sim às pretensões do país, aquilo que não se sabe é o que Nicolás Maduro fará com esse resultado, sobretudo quando negoceia o levantamento de sanções internacionais e tem no calendário eleições marcadas para 2024.

Para a Guiana, a manutenção do território é igualmente fulcral, até pelo peso que tem tido no desenvolvimento económico do país. O presidente do país já falou inclusive na instalação de bases militares com apoio estrangeiro.

O Tribunal Internacional de Justiça já se pronunciou sobre o referendo e, em concreto, sobre as pretensões de anexação de Essequibo, afirmando que a Venezuela não o poderá fazer. De volta recebeu a declaração de Caracas de não reconhecimento do tribunal nesta matéria.

Nas palavras de Maduro, a 8 de novembro, "recuperar a Guiana Esequiba é uma missão do povo, é uma missão do país". Para a comunidade internacional, este é um referendo sem validade jurídica.

Tal como na Ucrânia, na Palestina e em Israel, a história não nos larga. Vamos ver como será o dia de amanhã - e os seguintes.

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