Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt

O que começou como uma solução sustentável para dar nova vida às roupas que já não usamos transformou-se numa espécie de Faroeste digital. As plataformas de compra e venda de artigos em segunda mão estão a enfrentar uma vaga de comportamentos abusivos, fraudes e até casos de assédio sexual que deixam muitos utilizadores a questionar se vale a pena o risco.

A Vinted nasceu em 2008 na Lituânia, da necessidade de Milda Mitkutė encontrar uma forma de vender as suas roupas em excesso. Durante anos, a plataforma manteve-se na sombra de gigantes como eBay e Depop, mas a pandemia acelerou o crescimento da empresa. Em 2024, o Grupo Vinted registou receitas de 813,4 milhões de euros (mais 36% face ao ano anterior) e lucros de 76,7 milhões de euros, um crescimento de 330% comparado com os 17,8 milhões de 2023. A empresa conta hoje com uma avaliação de 5 mil milhões de euros, com cerca de 70 milhões de utilizadores registados em mais de 20 países.

A promessa da Vinted é sedutora: transformar artigos em segunda mão na primeira escolha dos consumidores, promovendo a sustentabilidade enquanto permite que os utilizadores ganhem dinheiro com roupas que já não usam. A ausência de comissões de venda, ao contrário de concorrentes como Depop, ajudou a cimentar a sua popularidade. Mas à medida que a base de utilizadores cresceu, também aumentaram os problemas.

Fraudes cada vez mais sofisticadas

As queixas multiplicam-se nas redes sociais. Utilizadores relatam desde mensagens passivo-agressivas até situações consideradas bizarras: roupas enviadas embaladas em fraldas, artigos completamente diferentes dos anunciados, ou vendedores que desaparecem depois de receber o pagamento. Uma investigação da Science Feedback descobriu contas que usam imagens geradas por inteligência artificial para enganar compradores, vendendo roupas baratas de gigantes como Shein e Temu a preços inflacionados.

Estas contas suspeitas, algumas das quais fingem ser operadas por irmãos para justificar a venda de roupa masculina e feminina, usam imagens com características uniformes e “planas” que contrastam com as fotografias típicas tiradas com telemóveis. Algumas até apresentam anomalias óbvias, como logótipos da Apple que não aparecem invertidos em supostas imagens de espelho.

Um estudo da Which? divulgado em 2024 revelou que 32% dos compradores foram vítimas de burlas nos dois anos anteriores, sendo a Depop a plataforma com maior incidência (57%), seguida da Vinted (22%). Mas os vendedores também não ficam imunes: quase um quarto reportou ter sido burlado no mesmo período.

Do assédio à exploração sexual

Mais grave que as fraudes financeiras são os casos de assédio sexual que têm vindo à superfície. Na Alemanha, uma investigação conjunta de vários órgãos de comunicação social expôs um canal público no Telegram chamado “Girls of Vinted”, criado em junho de 2024, que reunia mais de mil fotografias retiradas da plataforma e colocadas num contexto sexual. O canal acumulou 2 mil subscritores, maioritariamente homens, antes de ser encerrado.

Mina, uma utilizadora alemã de 22 anos, tornou-se viral no Instagram ao denunciar que as suas fotografias da Vinted tinham sido copiadas e publicadas em sites pornográficos. “A ideia de uma plataforma de roupa em segunda mão é fantástica, especialmente considerando as alterações climáticas”, disse à revista alemã Der Spiegel. “Mas a Vinted já não é um espaço seguro para mim.”

As mensagens que recebeu através da plataforma incluíam pedidos como “Gostaria de comprar esta peça, mas queria que a experimentasses primeiro sem roupa interior” ou “Posso comprar-te também a ti?”. Situações semelhantes foram reportadas em França, Itália e Reino Unido.

O problema não se limita à Vinted. No Reino Unido, o Channel 4 descobriu um site chamado “Vinted Sluts” que funcionava de forma similar ao canal alemão no Telegram. Ambos foram encerrados após pressão mediática, de acordo com o The Guardian.

Outras plataformas também afetadas

A Depop, popular entre utilizadores mais jovens (90% têm menos de 26 anos), enfrenta problemas semelhantes. A plataforma registou a maior taxa de fraudes no estudo da Which? e é palco frequente de trocas de mensagens agressivas, conta o The Guardian.

Em Espanha, a Wallapop também não escapa às burlas. Os esquemas mais comuns incluem falsos compradores que enviam links de phishing disfarçados de páginas oficiais de pagamento, pedidos de depósitos para “reservar” artigos inexistentes, e vendedores fantasma que desaparecem após receber transferências bancárias.

Vinted quer usar fotografias para treinar IA

Paralelamente, a Vinted anunciou em agosto alterações aos seus termos e condições. A partir de setembro, a empresa passou a deter direitos sobre todas as fotografias, vídeos e descrições carregadas na plataforma, com o objetivo de desenvolver e treinar modelos de inteligência artificial.

“Ao carregares o teu Conteúdo, concedes-nos e aos Afiliados da Vinted uma licença mundial, não exclusiva, isenta de royalties (ou seja, sem pagamentos da nossa parte), perpétua (ou durante o período legal dos direitos aplicáveis), transferível e sublicenciável para usar o teu Conteúdo.”, especifica o ponto 5 dos novos termos. Esta licença permite à Vinted utilizar as fotografias dos utilizadores para “desenvolvimento e melhoria de modelos de IA e machine learning“.

Os utilizadores não têm opção de recusa. “Estes são agora os termos e condições predefinidos, e a única forma de não os aceitar é não usar a Vinted”, esclarece a empresa ao El Periódico.

Uma cultura tóxica?

São apontadas várias razões para a deterioração do ambiente nestas plataformas. O anonimato relativo e a distância física facilitam comportamentos que as pessoas não teriam cara a cara. A crise do custo de vida aumenta a tensão financeira em ambos os lados das transações, criando desconfiança mútua.

Escreve o britânico The i Paper que a “desinibição online permite que este mau comportamento se manifeste de formas novas”. “A distância e o anonimato fazem com que as pessoas se sintam capazes de se comportar de formas que não teriam cara a cara.”

A Vinted afirma ter uma “política de tolerância zero” para comunicação sexualmente explícita e oferece ferramentas de denúncia. Contudo, muitos utilizadores queixam-se de que as medidas são insuficientes e que contas problemáticas são facilmente recriadas, segundo o canal de notícias alemão Tagesschau.

Face a estes problemas crescentes, muitos utilizadores abandonam as plataformas ou limitam drasticamente a sua atividade. O que começou como uma forma democrática e sustentável de dar nova vida às roupas corre o risco de se tornar num território hostil onde muitos utilizadores têm dificuldade em usar as plataformas com segurança.

__A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útilCom o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.Assine a nova newsletter do 24notícias aqui.